Thamirys Nunes é presidente da ONG Minha Criança Trans. Foto: Reprodução/Instagram
Thamirys Nunes é presidente da ONG Minha Criança Trans. Foto: Reprodução/Instagram
direitos humanos

‘Não quero sorte para minha filha, quero direitos’, diz presidente da ONG Minha Criança Trans

Convocada a depor na CPI da Transição de Gênero, da Alesp, Thamirys Nunes aponta arbitrariedades na instalação da comissão; ativista é mãe de uma menina trans de 8 anos

A comunicóloga Thamirys Nunes, 33, seguiu a cartilha da maternidade cisheteronormativa à risca. Ela sempre teve o sonho de ser mãe de um menino, e quando engravidou, comprou o enxoval azul, mesmo sem ainda saber o sexo do bebê por meio de exames de imagem. Porém, foi contemplada com uma menina trans, e antes que pudesse compreender a identidade de gênero de sua filha, tentou de todas as maneiras fazê-la corresponder às suas expectativas enquanto mãe.

Orientada por uma psicóloga, Thamirys chegou a deixar de usar maquiagem para não oferecer uma referência tão feminina à criança. Também a proibiu de brincar com as bonecas da irmã e ofereceu os melhores brinquedos do Max Steel, sem sucesso. Prestes a completar 4 anos, Agatha verbalizou que morreria se pudesse renascer menina. Foi quando deixou de ter sua identidade cerceada pela família.

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Thamirys saiu em busca de conhecimento e acolheu a transgeneridade de Agatha, permitindo que ela escolhesse o próprio nome social — e assim também começou sua história como ativista de direitos humanos, fundando a ONG Minha Criança Trans.

Hoje a organização criada para reivindicar políticas públicas para crianças e adolescentes trans brasileiros acolhe 580 famílias de todo o Brasil e incomoda o conservadorismo, que recentemente emplacou na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Transição de Gênero para questionar o atendimento ofertado pelo Hospital de Clínicas da USP (Universidade de São Paulo) às crianças e adolescentes trans. 

Thamirys foi convidada a prestar depoimento na CPI, e o fará assim que a Alesp retornar às atividades após recesso parlamentar, em agosto. 

Em entrevista à Diadorim, a presidente da ONG Minha Criança Trans lamenta a incitação ao pânico moral em torno da CPI e critica o deputado estadual Gil Diniz (PL) por ter protocolado, no começo do ano, um projeto de lei para proibir tratamentos de transição de gênero em menores de 18 anos no estado de São Paulo. 

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AGÊNCIA DIADORIM – Quando você se sentiu confiante o suficiente para, não apenas legitimar a sua filha, mas também se tornar uma ativista pelos direitos das crianças e adolescentes trans?
THAMIRYS NUNES – São dois processos diferentes. Desde que a Agatha era muito pequena, eu percebia que tinha uma questão ali com o gênero, que tinha um pesar, um lamentar de não ser menina, mas eu só consegui compreender a importância de eu acolher a condição de gênero da minha criança quando eu percebi que podia perdê-la, porque eu tinha uma criança triste. Com 3 anos, 11 meses e 15 dias, ela me disse: “Mamãe, eu posso morrer hoje para nascer menina amanhã?”. E entender que a minha criança preferia morrer… Claro que não foi só essa fala, foram outras falas. Esse lamentar já tinha uns dois anos. Ela dizia: “Ai que pena que Deus não me fez menina”, “Eu seria muito mais feliz se eu fosse menina”. Uma preferência pelo que é feminino, uma recusa do masculino… Tudo isso foi me gerando uma angústia muito grande, e aí, quando ela chegou aos 4 anos, eu entendi que a gente estava num momento que não daria mais pra continuar daquela forma, porque tínhamos uma criança infeliz em prol de nos adaptarmos melhor na sociedade, em prol dos meus sonhos enquanto mãe. Esse foi o primeiro processo. Foi quando eu percebi que não adiantava, eu já tinha tentado incentivar [a masculinidade], já tinha testado todas as alternativas, e eu precisava de uma nova forma de conduzir aquela situação. 

Depois, eu comecei a vivenciar situações complicadas externas, com órgãos, escolas. Passamos por uma situação muito difícil numa rodoviária. Eu ainda morava em Curitiba, na época, e viajei de carro para São Paulo, mas depois tive que voltar de ônibus com a Agatha, e eu tinha um documento de um menino e tinha uma menina comigo, claramente uma menina. Aí o motorista falou que estava sequestrando a criança, que eu não tinha como comprovar que aquele menino daquele documento era aquela menina que estava comigo. Só que no Paraná, na época, não se podia incluir nome social de criança em documento. Diferente de outros estados do Brasil, o Paraná tinha uma norma de que o menor de 18 anos não podia, então eu não podia ter um documento da minha filha. Foi muito difícil entrar naquele ônibus, levou uma hora e meia, foi um barraco, uma confusão. E o motorista me ameaçou, falou que se tivesse em qualquer situação na estrada, uma blitz ou coisa assim, ele deixaria as duas. Eu fiquei muito chateada, fui chorando de São Paulo a Curitiba, e ali eu entendi que as poucas políticas públicas que existiam para pessoas trans não necessariamente abarcavam as crianças. Então eu comecei a procurar as ONGs para saber o que elas falavam a respeito, as grandes ONGs LGBTI+, as grandes ONGs trans, mas elas não falavam e também não faziam. Com isso, eu falei: bom, eu vou ter que fazer porque minha filha precisa de um documento e a gente vai ter que dar um jeito nisso. 

A essa altura eu já compreendia melhor a questão de gênero dela, já tinha feito alguns cursos, já estava com a parte emocional melhor. E aí eu fui pro ativismo para tentar garantir o direito da Agatha, porque muita gente falava assim: “Pra que precisa disso? Ela tem sorte de ter uma mãe como você”. E eu sei que a sorte acaba. A minha filha não precisa da sorte de ter uma mãe como eu; a minha filha precisa de direitos fundamentais bem constituídos, e aí ela não vai precisar da mãe para defendê-la, porque em qualquer lugar ela vai poder existir. Então, eu não quero sorte pra minha filha, eu quero direitos. Por isso eu resolvi vir pro ativismo.

Thamirys e Agatha. Foto: Reprodução/Instagram

Thamirys e Agatha

Foto: Reprodução/Instagram

DIADORIM – Na prática, hoje, como a Minha Criança Trans atua? Quantas famílias atende?
THAMIRYS – Nós temos hoje 580 famílias do Brasil inteiro, em todos os estados brasileiros. A nossa criança mais nova tem 3 anos e meio e a nossa criança mais velha tem 18 anos. Nós temos várias frentes de atuação. Nós temos a frente de acolhimento das famílias, que é conversar, orientar, explicar como faz a retificação, como faz com a escola, acolher a mãe que está ali preocupada. A gente tem um grupo de apoio, de troca entre as famílias de pessoas trans, que é um grupo bem legal, onde os pais podem conversar. 

Temos a coordenação de saúde mental, que é conduzida por psicólogos voluntários que fazem o acolhimento das famílias em condição de vulnerabilidade econômica que temos na ONG, e a gente também faz um apoio para psicólogos que trabalham ou gostariam de trabalhar com crianças e adolescentes trans, mas ainda se sentem despreparados. Os psicólogos que conduzem têm um grupo onde eles trocam, fazem estudos de caso etc. 

Fazemos uma atuação da área da educação que é muito importante. A gente faz mediação de conflito em escola, de família que não tem condição de conversar com a escola por algum motivo, por questões relacionadas ao nome social ou uso do banheiro, por exemplo. Também fazemos cursos de formação em escolas.

Organizamos este ano a primeira Conferência Livre Nacional de Saúde de Crianças e Adolescentes Trans, e foi muito bonito. Fomos encaminhadas para a Conferência Nacional de Saúde, onde aprovamos 19 das 20 propostas encaminhadas, o que é histórico: nunca uma Conferência Nacional de Saúde tinha pautado a criança e o adolescente trans, especificamente. E, pela primeira vez, o relatório final terá 19 propostas pautadas pela nossa organização em parceria com outras organizações, que nós também convidamos para enviarem propostas. Mas nós é que lideramos.

E fazemos a parte de políticas públicas, com advocacy, processos, solicitação de lei, diálogos com Ministério Público, secretarias de Saúde e Educação. Enfim, a gente faz uma frente muito ampla, muito diversa dentro da temática.

DIADORIM – Como funciona o processo de transição de gênero na infância? O que o acúmulo de experiências das famílias que compõem a ONG Minha Criança Trans te mostrou?
THAMIRYS – A criança e o adolescente trans fazem transição social, que é mudar o que os incomoda, ou seja, roupa, cabelo, acessório, nome, pronome. Só. Hormônios só com 16 anos, cirurgias só com 18. Crianças trans não tomam hormônios, crianças trans não fazem cirurgias. E mesmo dentro da perspectiva de cirurgias, de hormonização, é tudo feito com acompanhamento de uma equipe especializada. 

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Hoje os ambulatórios que acompanham o desenvolvimento de uma criança trans dão amparo e entendem questões que podem surgir. São equipes multidisciplinares com psicólogo, psiquiatra, pediatra, endócrino, assistente social que tentam auxiliar a família no melhor desenvolvimento da criança. 

Cirurgias em pessoas trans, no Brasil, para modificações corporais, só a partir dos 18 anos. E hormonização cruzada só a partir dos 16 anos. É o que está regulamentado e não temos informações de que isso transcorra de outra forma — as famílias que a gente atende seguem bem à risco isso.

DIADORIM – Há uma CPI instaurada na Alesp para investigar o Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo por conta da “submissão de crianças e adolescentes a hormonioterapias para transição de gênero”, como diz o deputado Gil Diniz, presidente da Comissão. Nos últimos anos, vimos muitas pautas do movimento LGBTQIA+ serem usadas pelo conservadorismo para incitar pânico moral na população. Você acredita que a CPI da Transição de Gênero também tem esse caráter?
THAMIRYS – Essa CPI vem pra criar pânico moral. Ela questiona um hospital de referência, cujo atendimento é muito bem regulamentado e amplamente reconhecido. Não existe outra motivação para essa CPI, é um gasto de dinheiro público desnecessário. O que eles querem é fazer um circo dentro de uma temática já tão delicada, é uma grande falácia. Eles fingem que estão preocupados com as nossas crianças mas na verdade só querem atacar as nossas famílias e os profissionais que prestam um atendimento seríssimo. Eu lamento muito essa CPI. Fui convidada a prestar depoimento enquanto presidente da ONG e enquanto mãe, e a gente espera que tomem consciência de que é um absurdo essa CPI.

DIADORIM – A ONG atende crianças que fazem o acompanhamento no ambulatório da USP?
THAMIRYS – Sim, grande parte das crianças de São Paulo são atendidas pelo hospital da USP. E, veja, o presidente [Gil Diniz] e o relator [Tenente Coimbra (PL-SP)] dessa CPI têm projetos de lei colocados este ano que visam criminalizar o atendimento de saúde de crianças e adolescentes trans. Então há um conflito de interesses: como o presidente e o relator de uma CPI, que deveriam ser neutros, têm projetos de lei que querem acabar com esse atendimento de saúde? É um absurdo, é só o que consigo dizer no momento.

Thamirys na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. Foto: Reprodução/Instagram

Thamirys na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo.

Foto: Reprodução/Instagram

DIADORIM – O que você pretende levar para o seu depoimento?
THAMIRYS – Ainda preciso fazer o termômetro. Porque na verdade a gente acha que vai chegar lá e falar o que quer, mas na verdade a gente vai ser perguntada. Não sei que perguntas eles vão fazer, mas desconfio que serão violentos com a gente, na perspectiva de desrespeitar a identidade dos nossos filhos e induzir ao erro. Espero que não, espero que sejam extremamente respeitosos. Ainda não sei. Preciso ver como serão os outros depoimentos para entender a minha movimentação. 

DIADORIM – Na Conferência Nacional de Saúde, em Brasília, você disse que se as crianças são o futuro da nação, elas precisam estar vivas. Que futuro você sonha para Agatha e outras crianças trans brasileiras?
THAMIRYS – Eu sonho que elas cheguem em casa todos os dias. Eu sonho que elas não tenham mais motivos para se automutilar. É muito triste eu receber as fotos das crianças automutiladas, e elas fazem isso porque são desrespeitadas e atacadas pela sociedade. Então, o meu sonho é que a gente possa respeitá-las como elas são, amá-las e promover um ambiente seguro para que elas possam se desenvolver, porque a criança e o adolescente trans que são amados, respeitados e acolhidos têm condições de se desenvolver como qualquer criança ou adolescente, quem atrapalha os processos somos nós enquanto sociedade, enquanto família, que causamos dores, causamos trauma, falamos coisas indevidas. O meu primeiro sonho é que todos cheguem vivos em casa, sem violências, sem violações. E que eles estejam bem emocionalmente para não se machucarem mais, pra não se mutilarem. Se isso acontecer, o resto da vida segue, a vida se encaminha.

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