Arte: Tomaz Alencar/Diadorim
Arte: Tomaz Alencar/Diadorim
política

Qual a importância da democracia para a população LGBTI+?

Bolsonaro corroeu instâncias ligadas a direitos da comunidade; discurso do inimigo a ser combatido tem resultados eleitorais

Um dos temas centrais das eleições deste ano, a democracia é fundamental para a manutenção dos direitos conquistados pela população LGBTI+. Especialistas ouvidos pela Diadorim enxergam uma relação direta entre o regime democrático e a proteção de minorias políticas. Além disso, a escalada autoritária do governo de Jair Bolsonaro (PL) inclui ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF), a corte que garante os principais direitos LGBTI+ no país.

Na reta final da campanha, Bolsonaro afirmou que aceitaria o resultado das urnas caso fosse derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Não há a menor dúvida. Quem tiver mais voto leva. É isso que é democracia”, declarou, em entrevista à jornalista Renata Lo Prete, na TV Globo. No entanto, o mandatário segue em silêncio após sua derrota, enquanto caminhoneiros fazem bloqueios de cunho golpista em rodovias pelo país.

Apesar de ser uma palavra de múltiplos sentidos e comumente mal compreendida, a democracia é amplamente apoiada pelos brasileiros. Segundo pesquisa Datafolha realizada neste mês, 79% dos eleitores consideram que a democracia é sempre melhor do que qualquer outra forma de governo.

Entenda por que a democracia é importante para a população LGBTI+ e o que está em jogo no Brasil:

Em 2019, o STF tipificou a homotransfobia como crime de racismo, por oito votos a três.

Foto: STF

Os direitos LGBTI+ no Brasil

A população LGBTI+ brasileira obteve grandes conquistas na última década. Em 2011, o plenário do STF reconheceu o direito à união homoafetiva. Pessoas trans tiveram o direito garantido de alterar prenome e gênero na certidão de nascimento em 2018. No ano seguinte foi a vez da criminalização da LGBTIfobia.

Diante do contexto de omissão por parte do Congresso Nacional, de quem é a competência para legislar sobre esses temas, o STF garantiu esses direitos a partir de interpretações da Constituição Federal. Entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil expressos na Constituição estão, por exemplo, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, sem qualquer forma de discriminação.

“É importante entender que, na perspectiva democrática que a gente pactuou na Constituição de 1988, todas as pessoas têm direito ao exercício da cidadania. Para isso, elas precisam ter seus direitos garantidos”, analisa Bruna Andrade Irineu, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

As decisões foram tomadas no STF mesmo sob protestos de lideranças conservadoras, como o próprio Bolsonaro, que classificou a criminalização da LGBTIfobia como “completamente equivocada” em 2019. Durante um café com jornalistas, o presidente chegou a defender a presença de um evangélico entre os ministros do tribunal para que julgamentos de casos como esse fossem impedidos — André Mendonça, o ministro “terrivelmente evangélico” indicado por ele, foi empossado apenas em dezembro de 2021.

Apesar de terem força de lei, decisões do STF são consideradas mais vulneráveis que leis aprovadas no Congresso pela possibilidade de serem revistas a qualquer momento. Para isso ocorrer, basta constituir maioria de ministros no tribunal.

Jair Bolsonaro com a cartilha que ele chama de ‘kit gay’.

Foto: Antonio Augusto/Câmara dos Deputados

A escalada autoritária de Bolsonaro

Em setembro, a coluna do jornalista Guilherme Amado, no portal Metrópoles, divulgou a informação de que Bolsonaro planejava aumentar o número de cadeiras no STF das atuais 11 para 15. Dessa forma, em um eventual segundo mandato, o presidente faria ao menos seis indicações de ministros ao tribunal — além dos quatro novos, outros dois ministros, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber, serão aposentados nos próximos anos. Nesse cenário, com Nunes Marques e André Mendonça, já nomeados por Bolsonaro na atual gestão, o mandatário atingiria maioria de ministros. Atualmente, a permanência na corte é garantida até os 75 anos de idade.

Questionado sobre o tema nas últimas semanas, Bolsonaro inicialmente admitiu que poderia levar essa ideia adiante. “Já chegou essa proposta para mim e eu falei que só discuto depois das eleições. Eu acho que o Supremo exerce um ativismo judicial que é ruim para o Brasil todo”, declarou à revista Veja. No entanto, após a repercussão negativa de sua fala, o presidente recuou e negou qualquer plano nesse sentido.

Os embates entre o mandatário e a mais alta corte brasileira não são novidade. Ao longo de toda a atual gestão, o STF atuou como um dos principais freios para a ascensão autoritária de Bolsonaro. Durante a pandemia, por exemplo, reconheceu o direito de que governadores e prefeitos também determinassem medidas para conter a transmissão da Covid-19. Houve ainda outras derrotas, como a limitação de decretos que flexibilizaram a compra de armas, além da condução de investigações contra bolsonaristas que promovem ataques às instituições e disseminam desinformação nas redes.

A atuação dos ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes também como presidentes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) colocou-os na mira do bolsonarismo, que insistiu no discurso de fraude nas urnas eletrônicas sem qualquer tipo de prova. No auge das tensões, em 7 de setembro de 2021, Bolsonaro chegou a afirmar para uma multidão de apoiadores que não iria mais cumprir as decisões de Moraes, o que é ilegal.

A democracia brasileira é separada em três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. O Executivo é representado pelo presidente, que cooptou o Legislativo, na figura do Congresso Nacional, por meio de emendas bilionárias para aliados — o chamado Orçamento Secreto.

Com maioria no STF, que representa o Poder Judiciário, Bolsonaro concentraria amplos poderes e teria caminho livre para fazer o que quisesse — inclusive agir na chamada “pauta de costumes”, que inclui a temática LGBTI+.

Nos Estados Unidos, por exemplo, uma decisão em junho da Suprema Corte do país suspendeu o direito federal ao aborto que estava em vigor havia quase 50 anos. A reviravolta só foi possível devido às três nomeações do ex-presidente Donald Trump, garantindo maioria de conservadores no tribunal.

O exemplo da Polônia e Hungria

Na Polônia e na Hungria, países do Leste Europeu, existe uma relação direta entre governos autoritários que buscaram interferir na Justiça e a degradação dos direitos da população LGBTI+.

Em 2011, Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, também aumentou de 11 para 15 o número de integrantes da Corte Constitucional. Em sua escalada autoritária contra o que chama de “ideologia LGBT”, Orbán acabou com o reconhecimento legal da identidade de gênero de pessoas trans e impossibilitou a adoção por casais homoafetivos.

No ano passado, em busca da reeleição, Orbán ainda conseguiu a aprovação de uma lei que proíbe a “promoção” da homossexualidade ou transexualidade para menores de 18 anos.

Já na Polônia, o Tribunal Constitucional do país passou por mudanças implementadas pelo partido Lei e Justiça em 2015 que revogaram indicações à corte de governos anteriores, criando maioria alinhada à sigla.

Também sob o argumento de combater a “ideologia LGBT”, o presidente Andrzej Duda deu sinal verde para que dezenas de cidades do país se declarassem “zonas livres de LGBTs”, opondo-se aos direitos dessa população. Duda também utilizou o tema durante sua campanha à reeleição, em 2020, afirmando que a promoção de direitos LGBTI+ “é mais destrutiva que o comunismo”.

Como ponto em comum, Orbán e Duda dizem buscar a retomada dos valores tradicionais de seus países, contrapondo-se à população LGBTI+, que consideram ser um inimigo a ser combatido. Seus discursos encontram ressonância em parcelas da população, muito ligada ao cristianismo. “Hungria e Polônia são países extremamente católicos, então a cultura política está muito ligada à Igreja Católica”, explica o pós-doutor em Ciência Política Breno Cypriano, lembrando que a teoria conspiratória da “ideologia de gênero” teve origem no catolicismo.

O pesquisador avalia que a reação de grupos conservadores a movimentos progressistas é um fenômeno comum e já documentado. Para Cypriano, governos totalitários ou autoritários se utilizam desse tipo de questão para se manterem por mais tempo no poder. “Eles pegam alguns princípios morais, como a ideia do direito à vida, contra a ‘ideologia de gênero’, e criam factóides como forma de manipular a população, seus fiéis. E na política votam de maneira muito orquestrada, é algo muito forte”, explica.

Chegando ao poder, diz o pesquisador, esses grupos passam a ter mais formas de ampliar seu domínio, por meio do cerceamento à imprensa e do fortalecimento das igrejas e militares, por exemplo.

O desmonte na gestão Bolsonaro

No Brasil, Bolsonaro e seus aliados não conseguiram avançar em leis anti-LGBTI+, mas atuaram no desmonte das instâncias oficiais voltadas a essa população no interior do governo federal. Em dezembro do ano passado, por exemplo, o governo extinguiu o Departamento de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, órgão responsável por coordenar ações voltadas a essa população que estava vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos — então comandado por Damares Alves (Republicanos-DF).

Com o fim do órgão, criado durante a gestão Lula, a temática LGBTI+ passou a estar a cargo da Secretaria Nacional de Proteção Global, também responsável pela população em situação de rua.

O governo Bolsonaro também descaracterizou o Conselho Nacional de Combate à Discriminação, que tinha como foco específico a população LGBTI+ desde a gestão Lula. O colegiado, formado por integrantes do governo federal e da sociedade civil, tinha como atribuições monitorar ações e o cumprimento de metas, propor a realização de estudos e encaminhar denúncias.

O conselho também tinha participação na organização da Conferência Nacional de Políticas Públicas de Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, cuja realização também foi suspensa pela atual gestão.

Lula segura bandeira do movimento LGBTI+. Foto: Ricardo Labastier/Diadorim

Eleição de Lula cria perspectiva de retomada da pauta LGBTI+ no âmbito do governo federal.

Foto: Ricardo Labastier/Diadorim

As ameaças à democracia

Com a eleição de Lula, o temor de novas iniciativas antidemocráticas dão lugar a uma perspectiva de retomada da pauta LGBTI+ no âmbito do governo federal. “A reeleição de Bolsonaro continuaria um processo cada vez mais forte de destruição das instituições democráticas rumo a uma autocracia neofascista, com uma agenda conservadora, familista e antigênero”, projeta a professora Bruna Andrade Irineu.

No entanto, o Congresso Nacional eleito em outubro é mais reacionário que o atual e pode minar os esforços do governo federal voltados à população LGBTI+, além de avançar em projetos LGBTIfóbicos. “Com esse Congresso muito mais conservador, conseguir políticas públicas e orçamento vai ser muito mais difícil. Em um contexto mais democrático ou em um menos democrático, a luta não vai poder parar”, conclui Breno Cypriano.

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