“Pelo direito de ser, amar e existir”, Luana Rayalla recebeu homenagem da Câmara Municipal de São Gonçalo. Foto: Acervo pessoal.
Reportagens

Trans e PCD: ‘é tanto preconceito que até confunde’

No Rio de Janeiro, bibliotecária negra ouviu que é impossível ela ser travesti e PCD

Em 2018, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma determinação que permite pessoas trans maiores de 18 anos alterarem o prenome e o gênero na certidão de nascimento sem a necessidade de entrar com um processo judicial. A facilitação dos procedimentos cartorários, no entanto, não resolve a questão da identidade de pessoas trans e travestis na sociedade. 

Como provar que você é uma mulher ou um homem? Uma pessoa cisgênero não precisa reforçar esse ponto o tempo todo porque tem sua identidade de gênero socialmente reconhecida. No mundo ideal, a população LGBTI+ também não precisaria (sobre)viver lutando por esse reconhecimento.

“Isso aconteceu, acontece e, infelizmente, sempre vai acontecer. Aqui mesmo onde eu moro, meus vizinhos falam com o nome morto, e o mais engraçado nessa situação é que eles acham que eu que tenho que entender… Minha vizinha falou uma vez pra mim: ‘Eu sei que você trocou de nome, mas eu te conheci de outra forma, é muito difícil de me acostumar’. Então eu tenho que me acostumar, nunca eles”, desabafou a bibliotecária Luana Rayalla, logo que surgiu o assunto dos pronomes em nossa conversa.

Luana é moradora de São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, e se descobriu mulher trans aos 18 anos. Hoje, aos 27, ainda bate de frente com o preconceito e a transfobia quando desconhecidos, colegas, vizinhos e até mesmo familiares não lhe chamam pelo seu nome correto e ainda erram os seus pronomes. 

Ela/Dela  

“Por incrível que pareça, existem pessoas que têm uma dificuldade imensa. Agora há outras que gostam de ferir”, relatou “Uma vez, e um espaço de militância, durante uma mesa que era sobre pessoas trans, a pessoa lançou um pronome masculino [para se referir a mim]. Aí você vê que é pra machucar. Mas cada caso é cada caso.”

A luta de Luana segue sendo a luta de muitas outras meninas e mulheres trans e travestis do nosso país que são desrespeitadas e invalidadas a todo instante. Não é diferente para meninos e homens trans.

Sendo uma mulher negra, travesti e PCD (pessoa com deficiência), os desafios de Luana não se limitam apenas à sexualidade e à identidade de gênero. A violência e a invalidação como mulher e como pessoa estão presentes em diferentes esferas. 

Durante o nosso bate-papo, a jovem trouxe o termo “passabilidade”, este que é tão pouco conhecido por pessoas cisgênero. A passabilidade se trata justamente do reconhecimento de uma pessoa que transicionou — ou está em transição — como pertencente à identidade de gênero com a qual ela se identifica, e não ao gênero designado ao nascer. 

No caso de Luana, seriam os seus traços e características “femininas”, como explicou. Por outro lado, ela diz que frequentemente se “passa” bem por mulher cisgênero por ter uma deficiência física. 

“Eu digo que a minha passabilidade é diferente. É por eu ser uma pessoa com deficiência. Não se passa na cabeça das pessoas que gente com deficiência pode ser trans”, analisou. “Eu já ouvi uma vez: ‘Olha, essa pessoa com deficiência é trans’, e a outra menina respondeu: ‘Não, isso é impossível’. Quando as pessoas descobrem que eu sou travesti e PCD, aí começa a se assustar. Eu lembro que teve um Carnaval que foi muito emblemático pra mim. Tive que ouvir uma fala assim: ‘Além de aleijado, é viado’”, contou.

Ver essa foto no Instagram

Uma publicação compartilhada por Luana Rayalla (@luanarayalla)

Quando voltamos ao passado, ao longo de nossa conversa, Luana relata que era possível ver através de suas fotos antigas a sua “aura feminina”, esta que estava presente desde quando era criança. “Quando eu brincava de escolinha, por exemplo, eu nunca falava que era o professor. Era sempre a professora Mara, até lembro o nome que eu usava. Professora Mara, sempre foi assim”, disse Rayalla, ao relembrar de sua infância. “Tinha uma praça que eu ia me encontrar, inclusive, com outras meninas trans… Eu saía de menino, só que a minha mãe e meu pai não sabiam que por baixo daquela roupa tinha uma roupa de menina, aí eu tirava e botava dentro da mochila… Eu vivia essa vida dupla. Em casa, eu me vestia de menino e fora eu me vestia de menina, usava maquiagem”, completou.  

Entre muitas lutas, também vamos contar vitórias 

Em junho deste ano, Mês do Orgulho LGBTI+, Rayalla foi homenageada pela Câmara Municipal de São Gonçalo, com o lema: “Pelo direito de ser, amar e existir”. A proposição da homenagem teve autoria do vereador Prof. Josemar (Psol), docente de rede pública, homem negro e o segundo vereador mais votado do município. A iniciativa faz parte do trabalho desenvolvido por movimentos e instituições sociais em prol da população LGBTI+ em São Gonçalo.

Em novembro de 2021, Luana também recebeu uma homenagem na Câmara dos Vereadores de São Gonçalo pela sua contribuição como cidadã, com a construção de políticas públicas. O feito foi realizado pela Associação Gonçalense LGBTI+,  organização social de reivindicação dos direitos LGBTI+, resultado do Fórum de Cidadania LGBTI+ de São Gonçalo. O vereador Romário Regis e o Prof. Josemar estiveram presentes.

Publicidade

Publicidade

leia+