Arte: Tomaz Alencar/Agência Diadorim
poder público

Sem dados do Censo, população LGBTI+ do Brasil continuará desconhecida por mais 10 anos

Apesar dos pedidos de organizações e da DPU, IBGE não incluiu na pesquisa de 2021 perguntas sobre identidades de gênero

Quantos são e que perfil social, geográfico, cultural e econômico têm LGBTIs do Brasil? A expectativa de diversas organizações da sociedade civil era de que o novo Censo Demográfico do país — adiado de 2020 para este ano por causa da pandemia — tivesse perguntas relacionadas a orientação sexual e identidade de gênero, para levantar esses dados. Mas apesar dos pedidos feitos por essas entidades ao longo dos últimos anos ao IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), responsável pela pesquisa, essa inclusão não vai acontecer.

O censo do Brasil é a maior pesquisa demográfica na América Latina, realizada a cada 10 anos. Entre agosto e outubro de 2021, mais de 70 milhões de residências serão visitadas por quase 200 mil recenseadores, que farão entrevistas para coletar as principais informações da população nacional. Um trabalho que custa R$ 2 bilhões.

Ao contrário de outras pesquisas feitas por amostragem – com análise a partir de recorte percentual de entrevistados —, a dimensão nacional do Censo permite traçar uma radiografia mais fidedigna das pessoas que vivem aqui, além de ser fundamental para a construção de políticas, na distribuição de recursos aos estados e municípios e no desenvolvimento de estudos.

As perguntas do Censo 2021
Arte: Tomaz Alencar/Agência Diadorim

Autor do livro “Políticas Públicas LGBT e Construção Democrática no Brasil”, o pesquisador e doutorando em Ciência Política pela UnB (Universidade de Brasília), Cleyton Feitosa, explica que a ausência dessas estatísticas impede o governo e instituições de trabalharem em ações com efeitos de grande escala, destinadas à solução de problemas coletivos. “É muito difícil para um gestor ou gestora implementar uma iniciativa pública sem conhecer a população pela qual é responsável”, afirma. “Como um analista da assistência social pode pensar em uma política de fortalecimento econômico da população LGBTI+ sem saber qual a média da renda desse público? Afinal, há LGBTI+ ricos e pobres. Quantos são os pobres?”

Os impactos também chegam a políticas já implementadas no país, diz o pesquisador. “O movimento trans conquistou a implementação do processo transexualizador pelo SUS, em meados de 2008. Se o censo levantasse quantas pessoas se autodeclaram trans e verificasse a renda desse segmento, o Ministério da Saúde teria uma média da demanda de cirurgias e atendimentos, possibilitando a alocação de recursos públicos, ambulatórios e funcionários para aquela finalidade”, exemplifica.

A Agência Diadorim procurou os ministérios da Saúde e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para comentarem a necessidade das estatísticas demográficas nos seus programas, mas nenhuma das pastas atendeu aos pedidos de entrevista.

Pressão dos movimentos sociais LGBTI+

Em 2010, o Censo Demográfico chegou a contabilizar casais homoafetivos: os entrevistados responderam se residiam com cônjuges do mesmo sexo ou de sexo oposto. Mesma pergunta incluída na Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (Pnad) — a segunda maior realizada pelo IBGE. No entanto, o levantamento é limitado.

Sair da invisibilidade e ter seu perfil completo nos dados oficiais do país é uma pauta do movimento LGBTI+ brasileiro há quase três décadas, de acordo com Toni Reis, diretor executivo do Grupo Dignidade e diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI+.

Com a proximidade do novo recenseamento, a demanda voltou a se intensificar. Organizações e movimentos sociais formalizaram pedidos ao IBGE para inclusão de perguntas sobre orientação sexual e identidade de gênero no questionário. Um deles foi feito pela própria Aliança, em julho de 2020. No mês seguinte, em nota técnica enviada à ONG, o instituto reconheceu a relevância das questões, mas alegou que “a investigação do fenômeno de forma censitária não se faz recomendável, tanto do ponto de vista técnico quanto operacional”.

Em 2019, a Defensoria Pública da União (DPU), a partir de pedido da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), recomendou ao IBGE a alteração do questionário censitário — o que não foi atendido.

E mais recentemente, em 11 de fevereiro, a mobilização se transformou em projeto de lei, apresentado pelo senador Fabiano Contarato (Rede-ES). “Sem dados completos, inequívocos, atuais e tratados estatisticamente, continuaremos mantendo apagadas as identidades dessas pessoas e nos recusando a reconhecer que existe um problema público de exclusão social e produtiva de uma parcela considerável da população brasileira, decorrente de preconceitos fundados em modos de expressão individual que estão fora do padrão tradicional aceito pela sociedade”, justificou Contarato, no texto da proposta.

Você concorda com esse PL?

Responda à consulta disponível no site do Senado e diga se é contra ou a favor de incluir as perguntas no Censo Demográfico

Além desses pedidos formais, a inclusão das novas perguntas foi sugerida ao IBGE também em fevereiro de 2018, quando o instituto abriu uma consulta pública online. “É prática do IBGE estar sempre em consonância com as demandas da nação, tentando entender da melhor forma possível quais são elas”, conta à Diadorim o gerente técnico do Censo Demográfico, Luciano Tavares.

No entanto, segundo ele, apesar da importância e relevância dos dados demográficos da população LGBTI+ brasileira, o instituto “tem limitações em respeito a algumas temáticas”. Diferentemente de perguntas sobre idade e sexo biológico, com “um vínculo de objetividade maior”, compara o gerente técnico, uma questão de identidade é subjetiva e requer mais preparação dos recenseadores – que passam por um treinamento de cinco dias antes do início das pesquisas.

Preconceito ou desconhecimento das informações podem ser fatores que influenciam no resultado da contagem, de acordo com Tavares. “É o caso de uma mãe que não queira dizer que seu filho é bissexual ou que não saiba exatamente como defini-lo, dentro da gama de classificação”, exemplifica.

Para Luciano Tavares, se cada pessoa respondesse individualmente à entrevista, “esse obstáculo estaria sanado”. Por outro lado, “haveria muitas categorias”, pondera, se referindo às nomenclaturas de gênero e orientação sexual, que variam. De acordo com Tavares, ainda são necessárias discussões e estudos para desenvolver uma pergunta que não “dicotomize” ou “agrupe” categorias de forma incorreta. No próprio IBGE há equipe dedicada ao tema.

De porta em porta

Existem dois tipos de questionários no Censo Demográfico Brasileiro. O primeiro deles, aplicado na maioria dos domicílios, contém 26 perguntas — oito a menos, em comparação 2010. O segundo, feito em apenas 10% das residências, é mais extenso, com 76 itens, incluindo as questões sobre cor, raça e religião, por exemplo — na última edição, eram 112 perguntas. Apenas uma pessoa por domicílio responde às questões. As outras, se estiverem presentes, podem se pronunciar.

Arte: Tomaz Alencar/Agência Diadorim

“Temas aparentemente banais causam receio na população, que desconhece a pesquisa. Muita gente não quer passar informações sobre renda familiar por medo de aumentar o Imposto de Renda, aí temos que explicar que não influencia”, comenta Regina Vieira Leite. Ela foi recenseadora em São José do Egito (PE), em 2000, e agente da Pesquisa Mensal de Emprego (PME) — substituída em 2016 pela Pnad —, na Região Metropolitana do Recife, de 2005 a 2007.

Leite concorda que pode haver hesitação das pessoas ao responderem sobre identidade de gênero e orientação sexual — mas “nada que o treinamento adequado não permitisse ao recenseador contornar a situação”, pondera. “Dada a importância dessas informações, não vejo motivo para alegar inviabilidade da inclusão por isso”, conclui.

Perguntas subjetivas, como classifica o IBGE, não são novidades no formulário do Censo. O quesito sobre cor e raça, também faz parte desse grupo e suscita dúvidas na população. Nem sempre as pessoas conhecem as cinco opções apresentadas na categoria — “pretos”, “pardos”, “amarelos”, “indígenas” ou “brancos” —, como conta Regina Vieira Leite.

“Há quem diga que é ‘marrom’ ou que se compreende como ‘amarelo’, mesmo sem ser descendente de orientais… Porque olham para a pele e se enxergam assim, sabe? Somos orientados a não explicar nada, apenas pedir que o indivíduo se encaixe naquelas alternativas, mas é complicado”, lembra.

As categorias demográficas, mais que organização de dados objetivos, constituem construções sócio-históricas, na opinião da advogada e doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP, Dina Alves. “A estatística produz representações sobre indivíduos e populações na construção de identidades”, explica.

Pesquisadora do racismo no sistema judiciário brasileiro e coordenadora do Departamento de Justiça e Segurança Pública do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), Alves vê como conquista do movimento negro uma mudança histórica no perfil da população brasileira, a partir do Censo de 2010. Pela primeira vez, a maioria das pessoas, 50,7%, se declarou negra (grupo formado por pretos e pardos) — em 2000, foram 44,7%.

“Discutir o processo de produção das categorias estatísticas define também o retrato do país, suas desigualdades e privilégios. É a partir do perfil da sociedade que se percebe seus contornos mais nítidos”, acrescenta ela.

Nas últimas décadas, duas das principais demandas do movimento negro com base no Censo Demográfico foram nas áreas de saúde e educação, de acordo com Dina Alves. “Uma delas foi a luta com relação à associação entre raça e saúde. Esta pauta esteve nas principais agendas do feminismo negro, corroborada por pesquisas em nível nacional que atestaram desigualdades sofridas pelos negros em relação a desfechos de saúde”, conta. “Outra demanda foi a implementação de políticas de reservas de vagas nas universidades públicas brasileiras — as chamadas cotas raciais garantiram o ingresso e consequentemente aumento do número de estudantes negros concluindo o ensino superior.”

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Cobranças e articulação seguem

Entre LGBTIs, os impactos da falta de dados demográficos têm reflexo no acesso a programas básicos, como atendimento ambulatorial. “A gente trabalha com a territorialidade. Se não tenho dados do censo, é muito difícil saber que população é essa, qual o percentual dela, de que forma está sendo atendida e se está sendo contemplada”, explica o professor da Fiocruz, Ernane Alexandre, coordenador-adjunto do mestrado em Direitos Humanos, Justiça e Saúde: Gênero e Sexualidade.

Segundo Alexandre, além de ajudarem a ampliar os serviços, as informações oficiais detalhadas possibilitariam a criação de acolhimentos mais efetivos. “Sabemos que há um certo receio da população trans, por exemplo, de ir até um posto médico, hospital, e ser discriminada. Isso dificulta, deixa pessoas carentes de saúde básica”, explica.

Para o pesquisador Dennis Pacheco, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a invisibilidade dificulta compreender a sobrerrepresentação desse grupo nas estatísticas nacionais. “No caso do negros, somos mais de 50% da população brasileira, mas entre os mortos pela polícia, somos 75%. Essa diferença entre a representação de um grupo em determinado evento estatístico e a presença dele na sociedade em geral é chamada de sobrerrepresentação”, conta. “Sem os números do Censo, é impossível entender se existe e qual a profundidade da sobrerrepresentação da população LGBT no Brasil.”

Desde 2015 desenvolvendo estudos sobre segurança pública no país, Pacheco explica ainda que o diagnóstico das “circunstâncias de vida” e “necessidades dessas populações e grupos” é subsídio para justificar a atuação dos governos. “Pensando que esses gestores têm que prestar contas das atividades e que existe uma certa impopularidade nas políticas públicas para LGBTs, ter esses dados é fundamental”, completa.

Em dezembro do ano passado, Dennis Pacheco lançou, na plataforma All Out Brasil, um abaixo-assinado para pressionar o IBGE a incluir as perguntas de orientação sexual e identidade de gênero no Censo Demográfico. Até agora, foram colhidas mais de 40 mil assinaturas.

Mas com o posicionamento do órgão federal negando a inclusão das perguntas neste Censo, o foco da campanha, agora, é seguir em diálogo com o IBGE para cobrar que os dados sejam contabilizados por meio das pesquisas adicionais e já antecipar a demanda de alteração no questionário censitário de 2030.

“Estamos na fase de gerar conversas sobre o tema, trabalhando com o Dennis Pacheco para promover a campanha e juntar o maior número possível de assinaturas e, de quebra, informar as pessoas sobre a importância de nós, pessoas LGBT+, sermos parte das estatísticas oficiais da população”, conta a gerente sênior de campanhas da All Out, Ana Andrade.

As cobranças ao governo federal devem seguir também em ações das ONGs, segundo Toni Reis. “Estamos estudando os argumentos [do IBGE] para solucionar. Sabemos que é um questionário muito complexo, mas assim como têm lá ‘pardo’, ‘negro’, ‘masculino’, ‘feminino’, nós queremos saber orientação sexual e identidade de gênero”, conta o diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI+.

Reis reforça a necessidade de pesquisas com metodologias precisas. “Senão nós vamos ficar com esses dados do Disque 100, dados que não correspondem à realidade do estigma, da violência, do preconceito e da discriminação enfrentada pela nossa comunidade”, reclama, se referindo aos números registrados pelo canal de denúncia do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

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