Ativistas LGBTQIA+ em frente à Justiça de Carabobo. Foto: Twitter/Reprodução
Ativistas LGBTQIA+ em frente à Justiça de Carabobo. Foto: Twitter/Reprodução
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‘Perdendo a laicidade’: por que 33 homens foram detidos em sauna gay da Venezuela

Em julho, policiais venezuelanos detiveram o dono de uma sauna gay, dois funcionários e 30 clientes, alegando terem encontrado droga

No dia 23 de julho deste ano, um grupo de 33 homens foi preso em uma sauna gay de Valencia, capital e cidade mais populosa do estado de Carabobo, na Venezuela. Segundo eles, oficiais da PNB (Polícia Nacional Bolivariana) alegaram ter recebido denúncia de obstrução da via pública e, sem mandado de busca, revistaram o estabelecimento. Alegando terem encontrado droga, os policiais detiveram o dono do Avalon Man Club, dois funcionários e 30 clientes. 

O grupo permaneceu encarcerado durante três dias, sem saber do que era acusado. Somente quando se apresentaram ao Ministério Público, sob manifestações de familiares e ativistas de direitos humanos que pediam justiça em frente ao prédio, os 33 souberam que, na verdade, foram denunciados por atentado ao pudor, formação de quadrilha e poluição sonora. 

Agora, ativistas e organizações defensoras dos direitos humanos exigem a investigação dos policiais, promotores e do juiz envolvidos. 

Em entrevista à Diadorim, ativistas LGBTQIA+ venezuelanos explicam de que forma a prisão “dos 33”, como o grupo ficou conhecido, testemunha a ascensão de grupos fundamentalistas cristãos na Venezuela, que consolidaram seu espaço na agenda pública do país.

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O caso “dos 33”

Em entrevista ao jornal venezuelano El Estímulo, o empresário Guillermo Felipe Luis Cifuentes, 34 anos, dono do Avalon Man Club, conta que recebeu uma ligação anônima na tarde do dia 21 de julho.

“Ele me disse que localizou meu número no Twitter, o que não é verdade porque não o publiquei, e me perguntou sobre a sauna. Dei-lhe as indicações normais, de que é um spa para gays, composto por banho turco, sala de vídeo, sala de massagens, solário e pátio”, relembrou o empresário. Do outro lado da linha, a pessoa fez uma pergunta específica: ela quis saber se o estabelecimento organizava orgias. “Eu disse a ele que não, esse não é o fim do lugar. Este é um lugar de lazer.”

Dois dias depois, o estabelecimento foi interpelado por uma dezena de oficiais da PNB. Eles se negaram a apresentar um mandado de busca, mas, durante a revista, disseram ter encontrado um pote de “poppers”, uma substância psicoativa inalável conhecida como “a droga do amor”, porque potencializa o prazer sexual. Cifuentes suspeita que a droga tenha sido plantada pelos policiais. 

Em entrevista à BBC, um dos frequentadores do spa, Iván Valera Benitez, 30 anos, contou que os clientes foram informados de que estavam sendo encaminhados para a delegacia como “testemunhas”, embora não soubessem que crime estavam testemunhando. Segundo o rapaz, além de fichados e presos, todos tiveram seus celulares e seu dinheiro confiscados.

“Tiraram uma foto nossa na frente da mesa com as ‘provas’, que na época eram camisinhas, lubrificantes, celulares, RGs e uma garrafinha de poppers, que nunca foi usada, que nunca entendemos de onde saiu”, afirma Benitez. 

Durante o encarceramento, contou, ouviram xingamentos de policiais. Ele sentiu vergonha de ser gay e outros colegas de cela chegaram a cogitar o suicídio. A alimentação era escassa e eles foram autorizados a fazer apenas uma ligação para a família.

Protestos

“Estamos diante de um sistema que não reconhece e muito menos garante os direitos das pessoas LGBTIQ+”, denuncia o Observatório de Violências LGBTIQ+ venezuelano, que se uniu a outras organizações pró-direitos humanos para organizar manifestações e ações informativas em Valencia e Caracas, a fim de sensibilizar a população da Venezuela e a comunidade internacional sobre o “caso dos 33”.

“Tivemos uma presença muito ativa na mídia, nas redes sociais, na rua. Exercemos uma pressão bastante significativa. Também fomos à Corte Interamericana de Direitos Humanos, onde falamos com o Relator Especial em matéria de direitos humanos, que é o Víctor Madrigal”, afirma à Diadorim a advogada e ativista trans Richelle Briceño.

Por meio de nota coletiva, cerca de 130 organizações nacionais e internacionais – entre elas, a Aliança Nacional LGBTI+, do Brasil – exigiram justiça e liberdade plena para o grupo. O documento classifica a prisão como arbitrária e que resultou em “maus-tratos, insultos e humilhações”, pedindo ações de reparação.

As organizações também querem que o governo venezuelano garanta a proteção, integridade física e psicológica dos 33 homens, e que os policiais envolvidos no caso sejam investigados. A nota cobra o fim da “criminalização, assédio e extorsão a pessoas LGBTQIA+ na Venezuela” e faz críticas à cobertura sensacionalista da imprensa local que expôs as imagens dos homens sem autorização.

Pressão fundamentalista

Para Richelle Briceño, o Ministério Público encontrou “o momento ideal para punir esses 33 homens, enviando para a população a mensagem de que as pessoas LGBTs são criminosas, doentes e depravadas, por isso deveriam estar presas.”

A legislação venezuelana não criminaliza a homossexualidade e a bissexualidade, porém, na prática, a população LGBTQIA+ não se sente segura, afirma o advogado Edgar Carrasco, membro do conselho administrativo da ACCSI (Ação Cidadã contra a Aids, em português). “Social e culturalmente, ainda existem muitos preconceitos relacionados à comunidade LGBTQIA+ na Venezuela.”

De acordo com ele, assim como no Brasil, a pressão de grupos fundamentalistas cristãos, que são antidireitos e perseguem a comunidade LGBTQIA+, é grande. “Eles penetraram de tal forma o Estado que poderíamos dizer que a Venezuela está perdendo a laicidade. Hoje são importantes lobistas na Assembleia Nacional, têm plenos poderes para intervir nas comissões de elaboração de todo o tipo de leis.”

Uma reportagem do jornal O Globo mostra que o chavismo vem fazendo alianças com igrejas evangélicas como parte de seu projeto de manutenção no poder, visando as eleições presidenciais de 2024. Entre as pautas que unem esses grupos, está a defesa de um “projeto original” de família. Em reunião com evangélicos, deputados do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) e o chefe de gabinete da Prefeitura de Caracas, Nahum Fernández, acordaram que religiosos serão consultados em qualquer iniciativa legislativa que envolva a família.

Recentemente, lembra Carrasco, ativistas LGBTQIA+ do país “sofreram prisões arbitrárias, intimidações, perseguições”, por “fornecerem programas de proteção social para aliviar a pobreza e fazerem declarações sobre a crise de escassez de ARV (medicamentos antirretrovirais) no país, o que tem causado mortes e problemas de saúde em pessoas com HIV”.

Escassez de direitos

Apesar do cenário conservador, aos poucos, a comunidade LGBTQIA+ conquista vagas na Assembleia Nacional da Venezuela, representada por pessoas como a deputada trans Tamara Adrián, filiada ao partido Vontade Popular, que constitui uma das frentes de oposição ao chavismo. Porém, na opinião do advogado Edgar Carrasco, esses mandatos ainda têm pouco impacto.

“A diminuição do cenário político partidário nacional, bem como o destino imprevisível da democracia na Venezuela, limitam grupos como a comunidade LGBTIQIA+ de emergirem com as suas reivindicações, dado que se trata de uma sociedade onde todos são muito afetados”, denuncia.

Não à toa, a população LGBTQIA+ venezuelana ainda não conquistou direitos como o casamento civil igualitário e a autodeterminação de gênero. “Tivemos conquistas jurisprudenciais em matéria de identidade de gênero e casamento igualitário, mas já se passaram mais de dez anos e as decisões ordenadas pelo Supremo Tribunal de Justiça não foram tomadas”, comenta Carrasco. 

O avanço mais recente em matéria de direitos LGBTQIA+ é uma decisão de março de 2023, quando o Supremo Tribunal de Justiça declarou inconstitucionais artigos do Código de Justiça Militar que criminalizavam as relações homossexuais. No entanto, Carrasco diz que esses artigos tinham pouca aplicação e, portanto, o movimento teria sido político, para fazer crer que o governo se importa com o segmento sem de fato atender às suas demandas.

Para Richele Briceño, a Venezuela tem um longo caminho a percorrer para garantir que sua população LGBTQIA+ se sinta bem e segura. “Duvido muito que com esta Assembleia Nacional haverá algum avanço, portanto, teremos de esperar até 2025 ou 2030 para fazer uma Assembleia Nacional mais plural e menos tomada por grupos conservadores, fundamentalistas e religiosos, que em sua maioria são o povo patriótico.”

Iván Benitez, um dos clientes da Avalon que foi detido. Foto: Reprodução/BBC

‘Sinto-me zombado e preocupado’

O dono do Avalon Man Club e dois funcionários foram soltos da prisão no dia 2 de agosto, mas seguem na mira da justiça venezuelana e devem se apresentar ao Ministério Público a cada 30 dias pelos próximos seis meses. 

Em 14 de agosto, após protestos da comunidade LGBTQIA+ e a pedido da Procuradoria-Geral da República, o Tribunal Superior da Venezuela arquivou o processo contra os 30 clientes da sauna. Para Iván Valera Benitez, entretanto, ficaram traumas emocionais. “Depois de tudo isso, sinto-me zombado e preocupado. Toda vez que falo, vou soltando a experiência. Mas também me sujeita a uma exposição que eu não queria”, desabafou, em seu relato à BBC.

O Avalon foi reaberto no dia 29 de agosto, “cumprindo todas as normativas e regulamentações governamentais”, como informa um comunicado publicado na conta do estabelecimento no Instagram.

O prefeito de Valencia, onde ocorreram as prisões, Julio Fuenmayor, e o governador de Carabobo, Rafael Lacava, ambos do PSUV, se mantiveram em silêncio sobre o caso dos 33. 

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