‘Violência pode, amor LGBTI+ não’: a polêmica sobre o beijo lésbico em ‘Lightyear’
Mãe e lésbica, Tiboni analisa a polêmica gerada pela nova animação da Pixar: “que as crianças e adolescentes possam assistir e tirar suas próprias conclusões”
Na última semana de junho, fui assistir a “Lightyear”, uma animação da Pixar, que narra um trecho retirado da célebre animação “Toy Story”. Gostaria de ter ido com meus filhos gêmeos, mas a verdade é que eu queria prestar muita atenção a todas as cenas e ao enredo do filme, e tentar compreender o porquê de tanta polêmica diante de um cena de afeto entre um casal lésbico.
Em março de 2022, houve a primeira polêmica envolvendo a animação, quando funcionários da Pixar, estúdio parceiro da Disney, divulgaram uma carta acusando a empresa de censurar cenas de afeto entre personagens do mesmo sexo em seus filmes. Após protestos, a Disney desistiu de cortar o beijo lésbico de “Lightyear”, restaurando a cena e reintegrando-a à animação.
Desde o lançamento, o filme já acumulou 14 países que proibiram sua exibição — todos no Oriente Médio e na Ásia. Entre os países que não poderão assistir à saga estão Egito, Malásia, Kuwait, Emirados Árabes Unidos e Líbano. Muitos vereadores de diferentes cidades do Brasil tentam também conseguir a proibição local.
A escritora Marcela Tiboni com cartaz do filme Lightyear
Foto: Acervo pessoalAmor condenado
“Lightyear” é a primeira animação do estúdio Pixar em que dois personagens do mesmo sexo se beijam. O beijo é protagonizado pela personagem Hawthorne — uma patrulheira do espaço — e por sua namorada. Vale ressaltar que ela é apenas a segunda personagem abertamente LGBTQIA+ da história da Pixar, depois de Specter (Lena Waithe), uma policial que faz alusão a sua namorada em uma cena do filme “Dois Irmãos”.
Pois é, estamos em 2022, e ainda lutamos com cartas, protestos e muitas batalhas para que uma simples animação possa conter um beijo entre duas personagens. Um beijo. Apenas um símbolo mundial de amor, de afeto, de carinho.
Em entrevista a um site sobre o filme, uma mãe de oito filhos e mestre em Matrimônio e Família pela Universidade de Navarra, disse que, “acima de tudo, a inocência dos filhos deve ser protegida” e “não colocá-los em situações em que tenham um conflito entre o que é natural e aquelas situações em que, embora aconteçam, não fazem parte do comum”.
Muito curioso este comentário, pois “Ligthyear” é um filme cheio de violências, armas, tiros, combates, agressões, fugas, prisões, planos maléficos, perseguições, combates, nada disso parece ser prejudicial ao imaginário de uma criança, mas a cena de amor sim. Armas e tiros devem ser naturalizados aos olhos dos pequenos, mas um beijo se torna uma cena violenta e ultrajante. Ficar preso mais de 50 anos em um país desconhecido, longe de sua família, amigos, rotina parece só uma aventura, mas o amor entre duas personagens é algo que pode gerar pesadelos infantis.
O mesmo pode-se dizer de outros clássicos dos estúdios Disney, quantas mães, pais, avós ou responsáveis adoram assistir aos clássicos como “Branca de Neve” juntos? Onde uma garota de 14 anos — sim a personagem tem apenas 14 anos — fica meses lavando, cozinhando, cuidando da casa de sete homens (os sete anões), para ao final do filme ser beijada na boca sem consentimento enquanto dormia.
Armas e tiros devem ser naturalizados aos olhos dos pequenos, mas um beijo se torna uma cena violenta e ultrajante.Marcela Tiboni
Mas estas cenas e enredo parecem normais aos olhos da maioria. Ou ainda em a “Bela e a Fera”, em que Bela fica presa no castelo, longe do pai, dos amigos, tentando fugir por dias e dias seguidos, e ainda por cima se apaixona por seu algoz, transformando-o em um príncipe. O que ela ganhou ao longo do filme mesmo? Privação, sofrimento, angústia, medo, dor, solidão, enquanto a Fera, homem que causou tudo isso a ela, transforma-se em um príncipe amável no final.
Saindo das telas podemos ainda falar de tantas outras situações em que o amor é condenado. Meu primeiro livro — “Mama: Um relato de Maternidade Homoafetiva” — já foi julgado por inúmeras famílias como algo “sem pudor” ou que busca “normalizar o que nunca foi normal”, sendo que é apenas um livro que fala sobre o amor de duas mulheres que juntas tiveram dois filhos. Ou ainda livros infantis como “Mãe não é uma só, eu tenho duas”, “Minhas duas avós”, “Olívia tem dois papais” ou “Princesa Kevin”, histórias que narram o afeto ou as descobertas, e que são arrancados de bibliotecas por responsáveis que acreditam que uma história seria capaz de influenciar uma criança no “mal caminho”.
É urgente dissociar o amor de qualquer sentimento ou situação negativa como ainda hoje tentam fazer. Que as crianças e adolescentes possam assistir “Lightyear” e tirar suas próprias conclusões, formularem suas próprias perguntas, elaborarem suas narrativas sobre aquilo que gostaram mais. Sem que adultos moralistas, hipócritas ou tacanhos selecionem previamente qual o tipo de amor deve ser vivido e qual deve ser banido.
Como diria “Lightyear”: ao infinito e além.
Marcela Tiboni
Marcela Tiboni é escritora, mãe, lésbica e ativista. Escreveu os primeiros livros sobre maternidade lésbica do Brasil, chamados: "MAMA: um relato de maternidade homoafetiva" e "Maternidades no Plural". Encontrou no Instagram espaço de voz e de grito, onde cria conteúdo digitais sobre parentalidade não heteronormativa.