Transexuais, travestis e apoiadores participam da segunda edição da Marcha Trans e Travesti, em mobilização por direitos, no centro da cidade. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Marcha Trans e Travesti, no centro do Rio de Janeiro. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
direitos humanos

Muito além das esquinas: trans e travestis trabalhadoras sexuais no Rio de Janeiro

Dificuldade de acesso ao mercado de trabalho formal empurra trans e travestis para rotina de violência e precariedade no acesso à saúde

Naquela tarde, o clima era de euforia na Biblioteca Parque Estadual, na Zona Central da cidade do Rio de Janeiro. A técnica em enfermagem Mariana Machado, de 30 anos, foi uma das primeiras a chegar. Além dela, reuniam-se no auditório do espaço da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa (Secec) ativistas pelos direitos LGBTQIAPN+, representantes de programas governamentais, como o Programa Estadual Rio Sem LGBTIfobia, e mulheres trans e travestis profissionais do sexo, como ela, para a pré-estreia do documentário “Documento Sem Nome”.

O filme, dirigido por Léo Oliveira e Willean Reis, conta a história de alguns dos moradores do Casarão de Luana Muniz, no tradicional bairro da Lapa. Hoje, cerca de nove pessoas residem no sobrado, a maioria travestis que têm o trabalho sexual como principal forma de subsistência.

Apesar da ausência de dados oficiais produzidos e divulgados por órgãos governamentais, organizações da sociedade civil, como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e a Rede Trans Brasil, apontam que a prostituição é a principal ocupação de mulheres trans e travestis em situação de vulnerabilidade.

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Trajetórias

Foi a necessidade de sobreviver, somada à falta de oportunidades de trabalho, que levaram Rhiane Fendi, de 32 anos, à prostituição. Sentada do lado oposto de Mariana, a travesti natural de Fortaleza (CE) comenta que possibilidades de emprego até existem, mas não são fáceis de alcançar. A urgência de poder manter a própria higiene pessoal, de ter o que comer e o que vestir foram alguns dos motivos que a fizeram optar pelo trabalho sexual. 

“É um modo mais fácil da gente sobreviver, entende? Estar nas esquinas, vendendo nossos corpos para homens que durante o dia nos veem como bichos”, declara.

Por outro lado, Mirella Prado, de 26 anos, enxerga a prostituição como a única “profissão que não discrimina ninguém”. Ao lado de Rhiane, ela afirma que não aceitaria ter um trabalho que não a valorizasse. “Para eu viver bem, do jeito que gosto de viver, a prostituição continua sendo para mim o melhor trabalho”. 

Mirella acrescenta que mulheres trans e travestis, muitas vezes, acabam sendo exploradas no ambiente de trabalho formal quando conseguem acessá-lo. “Já trabalhei em empregos formais. Já fui vendedora em loja de biquínis e, ali dentro, era explorada. Quando um cliente chegava, me fazia esvaziar todo o estoque da loja e não levava uma peça, depois eu tinha que guardar tudo. Sendo puta, trabalho para mim mesma”.

Para Sofia Gabrielly, a mais nova entre as quatro travestis moradoras do Casarão de Luana Muniz, com 21 anos, a ocupação surgiu das duas formas. Ela compartilha que acabou “entrando” na prostituição como “a última saída”, mas atualmente vê a atividade de outra forma. 

“Cada pessoa tem que viver a história que ela quer viver. É isso que devemos respeitar no outro”, diz. Sofia complementa que as vivências do trabalho sexual são sempre pessoais e não é possível definir um motivo universal para as pessoas, sobretudo para as mulheres trans e travestis, se tornarem profissionais do sexo. 

Da esquerda para a direita, Mirella Prado, Sofia Gabrielly, Mariana Machado e Rhiane Fendi na Biblioteca Parque Estadual, após a pré-estreia do documentário “Documento Sem Nome” / Foto: Francielly Barbosa

Da esquerda para a direita, Mirella Prado, Sofia Gabrielly, Mariana Machado e Rhiane Fendi na Biblioteca Parque Estadual, após a pré-estreia do documentário “Documento Sem Nome”.

Foto: Francielly Barbosa

A dificuldade de conseguir e de se manter em vagas de emprego formais não é suficiente para explicar o cenário da prostituição para essas mulheres. Em 2022, o Projeto Garupa, iniciativa da Secretaria Municipal de Governo e Integridade Pública (Segovi), identificou que 71% das 526 pessoas trans e travestis cadastradas na primeira etapa do projeto, realizada entre junho e outubro de 2021, já sofreram preconceito durante entrevistas de emprego. 

O levantamento também revelou que 60% dos entrevistados têm renda mensal incerta ou insuficiente, 27% nunca tiveram vínculo de trabalho e 37% acreditam não haver vagas formais de trabalho para pessoas LGBTQIAPN+.

Formada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e à frente da Coordenadoria Executiva da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio, Diana Conrado avalia que há uma visão moralista em torno do serviço sexual no Brasil, seja ele realizado por mulheres trans, travestis ou cisgêneras. 

“As pessoas têm liberdade de fazer o que querem com suas vidas”, afirma. “Acredito, porém, que elas não podem se ver representadas nessa situação como a única possível para si, que é o que ocorre com a maioria da população de transexuais e travestis hoje”. 

Primeira mulher transexual a ocupar um cargo de gestão no governo carioca, ela explica que, em muitos casos, mulheres trans e travestis são expulsas de casa antes de completarem a maioridade e são abandonadas pelas próprias famílias em razão da sua identidade de gênero. Com pouquíssimas opções diante de uma discriminação institucional e social, elas são impedidas de exercer um dos direitos básicos para a sobrevivência: o trabalho. 

A coordenadora ainda observa que o Estado brasileiro falha em garantir dignidade mínima para que essa comunidade consiga sair da situação de extrema vulnerabilidade em que boa parte se encontra. Ela defende que a estrutura pública precisa oferecer acesso às pessoas trans e travestis aos direitos e serviços que já são ofertados à população em geral. 

Segundo Conrado, também é importante compreender que são necessárias políticas públicas que instrumentalizam esse acesso com dignidade. “Vale destacar que a população LGBT+ não busca privilégios, mas, sim, a garantia de direitos básicos e equidade no acesso às políticas públicas”.

“Já trabalhei em empregos formais. Já fui vendedora em loja de biquínis e, ali dentro, era explorada. Quando um cliente chegava, me fazia esvaziar todo o estoque da loja e não levava uma peça, depois eu tinha que guardar tudo. Sendo puta, trabalho para mim mesma”.
Mirella Prado, de 26 anos

Trabalho sexual é trabalho

A coordenadora de Diversidade Sexual do Rio pontua que a legislação brasileira não veta a prostituição no país. “O que é vetado legalmente é a exploração sexual, principalmente quando alguém induz outra pessoa a se prostituir ou a explora sexualmente, querendo tirar algum tipo de benefício desse trabalho”, esclarece. 

Segundo o Artigo 229 do Código Penal, “manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro” é passível de reclusão de dois a cinco anos, além de multa. A legislação também criminaliza promover ou facilitar a entrada e saída de uma pessoa para exercer a prostituição, assim como induzir ou atrair alguém para o trabalho sexual. 

“Existe patrão, patroa? Não, existem exploradores de esquina”, diz Mirella. “Na nossa realidade, isso não acontece graças à Luana, porque sempre fomos respeitadas a partir do momento em que estivemos no Casarão. Ela nunca permitiu que pagássemos rua em algum lugar, então, hoje, não temos patrão e não admitimos que alguém venha querer se aproveitar da nossa prostituição. Esse é o nosso posicionamento, mas também temos consciência de que essa pode não ser a realidade de outros lugares”.

A reportagem solicitou ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), via Lei de Acesso à Informação (LAI), dados estatísticos sobre o trabalho sexual exercido por mulheres trans e travestis em situação de vulnerabilidade, como quais informações são coletadas, a partir de qual período e por qual instituição. Em resposta, apesar de reconhecer a prostituição como uma atividade produtiva, a pasta declarou que não possui muitas informações sobre ela.

“Os bancos de dados administrados pela Coordenação de Estatísticas do Trabalho, como a RAIS (Relação Anual de Informações Sociais) e o CAGED (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), referem-se exclusivamente ao trabalho formal, ou seja, ao emprego com vínculo empregatício regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ou estatutário. Como o trabalho sexual não possui regulamentação formal no Brasil, não há registros dessa atividade nesses sistemas”, explicou o órgão.

No entanto, no Guia Brasileiro de Ocupações, iniciativa da Organização Internacional do Trabalho para facilitar o acesso às ocupações existentes no mercado de trabalho brasileiro, a atividade é registrada sob o código 5198-05, que corresponde à “profissional do sexo”. Considerando dados referentes a RAIS de 2022 e ao CAGED até dezembro de 2024, há registros de quatro trabalhadoras ou trabalhadores sexuais — já que a plataforma não faz a distinção de identidade de gênero, somente de sexo —, e um desligamento no país. 

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Questionada a partir da Lei de Acesso à Informação (LAI) sobre o perfil, a quantidade e a condição das mulheres trans e travestis trabalhadoras sexuais no Rio de Janeiro, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos (SEDSODH), por meio da Coordenação de Assessoria Técnica e Monitoramento do Programa Estadual Rio Sem LGBTIfobia, informou não ser possível estimar com precisão o quantitativo de mulheres transexuais e travestis em todo o estado do Rio de Janeiro que atuam com a prostituição. 

Dados nacionais sobre mulheres trans e travestis que exercem essa atividade também são escassos. Em resposta a consulta feita por e-mail, a Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), afirma que, atualmente, o Governo Federal não dispõe “de indicadores exatos sobre a quantidade de pessoas trans e travestis que atuam no trabalho sexual, devido à ausência de dados oficiais que sistematizem e quantifiquem essa população em diferentes contextos sociais e econômicos”. 

Em nota, a Secretaria destacou a Rede Nacional de Evidências em Direitos Humanos (ReneDH) como uma iniciativa do MDHC para preencher essa lacuna de informações. A ação, de acordo com a Secretaria, encontra-se no processo de consolidação dos dados, com previsão de divulgação dos resultados no primeiro semestre deste ano. 

A pasta também mencionou o “Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2017”, produzido pela Antra, que indica que 90% dessa população tem a prostituição como principal fonte de renda e possibilidade de subsistência, novamente em razão da dificuldade de inserção no mercado de trabalho. Na versão mais recente do dossiê, publicada neste ano, a associação aponta que a prostituição foi a fonte de renda mais frequente entre as vítimas de assassinato ao longo de 2024.

Já o Ministério das Mulheres expressou, por e-mail, que não possui dados oficiais sobre esse público específico. O mesmo foi informado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Principal órgão de pesquisas do governo federal, o IBGE explicou que, nos censos demográficos, um único morador é entrevistado e presta informações sobre os demais ocupantes daquele domicílio, sendo considerados uma ferramenta inadequada para coletar dados sobre esse tema pelos órgãos estatísticos internacionais. Segundo o instituto, “se trata de uma informação muito íntima para ser captada junto a terceiros. Assim, essa questão nunca fez parte dos Censos do IBGE”.

Uma das autoras do artigo “Travestis e transexuais no mercado de trabalho: Pesquisa em Passo Fundo/RS (março a abril de 2021)”, a professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da ATITUS Educação, Leilane Grubba, avalia a ausência de dados produzidos e divulgados pelos órgãos públicos para além de questões metodológicas. 

“A invisibilidade de dados convive também com a invisibilidade da população LGBTQIA+ no Brasil, em especial das pessoas trans, travestis e intersexo. Isso gera como consequência a manutenção da invisibilidade social”, avalia Grubba. Para ela, a ausência de informações atualizadas dificulta principalmente a formulação de políticas públicas focadas em garantia de direitos e de dignidade.

Violências

A doutora em Epidemiologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Bruna Hentges, observa que a violência faz parte do cotidiano de mulheres trans e travestis no país. No artigo “Violência sexual durante a vida em mulheres trans e travestis (MTT) no Brasil: Prevalência e fatores associados”, ela pontua que muitas dessas mulheres revelam sofrer abusos desde o início da vida. O estudo, produzido em conjunto com pesquisadores de diferentes regiões do Brasil, contou com 1.300 entrevistadas em cinco capitais brasileiras.

De acordo com Hentges, muitas dessas mulheres, ao serem expulsas de casa, recorrem à prostituição como uma forma de obter algum sustento. Nas ruas, o ciclo de violência se mantém, como compartilham Mirella e Sofia. 

“Acho que já passei por todo tipo de violência, mas a maior foi ter que transar com um cliente estando vulnerável, sob efeito de droga e álcool”, lembra Mirella. “Não tem violência maior do que essa. Quando você é totalmente dependente da prostituição e você tem que estar drogada, bêbada e transar com cliente. Isso é horrível, isso machuca na nossa alma. Não teve violência física que eu tenha sofrido que tenha doído mais do que essa”.

Ela faz uma longa pausa antes de continuar, buscando as palavras. Com calma, acrescenta: “Tem a questão que prostituição e álcool não combinam, né? Prostituição é o trabalho, mas quando você chega na prostituição viciada e vulnerável, você já entra perdendo”. 

Situações como essa acontecem com frequência, diz Mirella, mas só são percebidas depois. “Em casa, o tempo para, você fala assim: ‘porra, eu estava naquela situação com aquele cara e ele fez o que fez’”.

Sofia, que balançava a cabeça em concordância, revela que já passou por algo parecido e chegou a reconhecer a situação no momento, mas não conseguiu ter reação. 

“Eu me lembro que teve uma vez que eu estava tão bêbada que não queria mais estar ali na esquina para atender, só que eu tinha que continuar ali. Eu estava com um cara e ele a todo momento tentava ter sexo comigo, mas eu falava para ele que não, tentava enrolar. Sei que dormi e ele ainda transou comigo. Eu estava tão bêbada a ponto de querer passar mal, só que não estava com forças para fazer nada e ele continuava insistindo. Tinha uns flashes na minha mente, porque ele continuava, aí eu acordei no outro dia de manhã e fui embora. É horrível”, conta a jovem. 

Hentges compreende que as violências enfrentadas por mulheres trans e travestis podem ser incorporadas em três grandes áreas: física, psicológica e sexual. Mas outras formas de agressão são comuns no cotidiano dessa comunidade, especialmente entre aquelas que trabalham como profissionais do sexo. A pesquisadora acrescenta que essas mulheres também fazem uso constante de drogas lícitas e ilícitas como um mecanismo para conseguir “superar” a realidade em que vivem, o que pode levar a outros contextos de vulnerabilidade.

Dados mais recentes do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde (MS), mostram que 3.223 mulheres trans foram vítimas de violência física em 2023, o que representa um aumento de 38% em relação ao ano anterior, quando houve 2.329 registros. 

A quantidade de casos de violência psicológica também cresceu entre os dois anos, passando de 959 para 1.389. Com relação à violência sexual, 454 registros foram feitos em 2022, enquanto em 2023 foram 721.

O cenário para travestis também foi de aumento da violência. Em 2022, o Sinan registrou 612 notificações de violência física, 119 de violência psicológica e 41 de violência sexual. No ano seguinte, foram 801 registros de violência física, 160 de violência psicológica e 38 de violência sexual — único tipo de agressão que teve redução, de 7%. 

Do total de agravos relacionados a esses grupos em 2023, em 54 casos a ocupação das vítimas foi identificada como “profissional do sexo” — 31 mulheres trans e 23 travestis. Já em 2022, 21 mulheres trans e 21 travestis trabalhadoras sexuais sofreram alguma das três violências analisadas. As informações disponibilizadas para o ano de 2023 estão na versão preliminar e podem mudar.

Quanto às mortes de pessoas trans e travestis, o “Dossiê: Registro nacional de mortes de pessoas trans no Brasil em 2024: da expectativa de morte a um olhar para a presença viva de estudantes trans na educação brasileira”, divulgado em janeiro deste ano pela Rede Trans Brasil, identificou 105 mortes ao longo de 2024, 14 a menos que no ano anterior. O número é similar ao divulgado pela Antra, que apontou 122 mortes de pessoas trans e travestis em seu “Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2024”, publicado no mesmo período.

De acordo com a Rede Trans Brasil, 93% do total das vítimas eram mulheres trans ou travestis e 63% eram pessoas negras. Segundo o documento, a maioria das mortes registradas nos últimos nove anos são de trabalhadoras sexuais. 

“Infelizmente, esses números assinalam que o contexto de prostituição ainda é uma realidade para a população de pessoas trans, sobretudo feminina, evidenciando uma necessidade urgente de se pensarem outras possibilidades para além da prostituição”, traz o dossiê.

Secretária adjunta de comunicação da Rede Trans Brasil, Isabella Santorinne explica que apesar da quantidade de casos sem registro de trabalho ou profissão, boa parte dos assassinatos aconteceu em vias públicas, o que pode indicar que se tratam de pessoas trans e travestis profissionais do sexo, mesmo com a ausência de informações. 

“Sabemos que as pessoas trans que foram assassinadas e encontradas na pista são profissionais do sexo, mas colocamos como [ocupação] não identificada porque só usamos trabalhadora sexual quando a mídia anuncia que ela era trabalhadora sexual”, afirma Santorinne.

A secretária comenta que os agressores são normalmente clientes que, após contratar os serviços delas, as matam, muitas vezes por conta de alguma briga ou algum desentendimento. Em 14 casos, o agressor era ex-companheiro da vítima, em nove eram clientes e em outros nove a notificação foi registrada como execução com possível envolvimento com dívidas com agiotas, drogas e ligação com organizações criminosas. 

“São homens que vão buscar as travestis no seu local de trabalho. Muitas vezes, a violência acontece ali no local, porque o homem não quer pagar e a travesti vai para cima. No momento, pode ser que não aconteça nada, seja só realmente uma briga, mas normalmente eles voltam para cometer o crime. Por isso, a maioria dos casos são de tiros, porque eles se organizam para isso”, continua. Conforme o dossiê, quase metade dos assassinatos (46%) foram por tiroteios.

Santorinne denuncia a falta de ações por parte dos órgãos públicos, que deveriam ser responsáveis pelo levantamento de informações sobre mulheres trans e travestis nos mais variados contextos, para além do trabalho sexual exercido por elas. “Não deveriam ser os movimentos sociais, mas, como vemos, a nossa população infelizmente padece muito em relação a políticas públicas, denúncias e protocolos. Entendo que os órgãos que precisam fazer isso não o fazem, então precisamos tomar iniciativa”.

Saúde

Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Bianca Lopes Rosa chama a atenção para mais um contexto de vulnerabilidade entre as mulheres trans e travestis trabalhadoras sexuais, que são os registros de casos da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) a partir de violências sexuais e do não uso de preservativos. 

“Às vezes a pessoa está numa situação de tanta vulnerabilidade que o cliente vai ofertar pagar mais por um programa para fazer sem preservativo e a pessoa vai aceitar, porque ela aceita ou morre de fome”, observa.

Segundo Rosa, muitas vezes a pessoa não compreende o risco ao qual está se submetendo, que em muitos casos envolve violência física, além da sexual, quando o cliente a obriga a praticar sexo sem proteção. A pesquisadora avalia que o cenário de violência enfrentado por mulheres trans e travestis ainda é acompanhado pela existência de uma ideia “de que o corpo de uma mulher trans ou travesti, rechaçado pela sociedade, é um corpo sem valor”. 

“A pessoa acha que pode fazer o que quiser, porque aquele corpo não é digno de respeito, de afeto, de dignidade. E fazem criminosamente o que acham que devem fazer”, afirma.

Diante dos casos de agressão e abuso sexual, outra situação que a mestra em Saúde Coletiva aponta é a dificuldade em acessar os serviços de denúncia e de saúde pública, como saber que existem políticas de saúde para prevenção ao HIV, caso da Profilaxia Pós-Exposição de Risco à Infecção pelo HIV, ISTs e Hepatites Virais (PEP)

A PEP consiste no uso de medicamentos para reduzir os riscos de adquirir essas infecções após exposição com potencial risco. No caso do HIV, o tratamento deve ser iniciado em até 72 horas após a exposição, o mais rápido possível.

“Do ponto de vista epidemiológico, os boletins de notificação de AIDS/HIV e outras ISTs mostram que a maior prevalência de infecções sexualmente transmissíveis, sobretudo da AIDS/HIV, está em mulheres trans e travestis por conta de fatores socioeconômicos e culturais determinantes na vida delas”, explica a pesquisadora.

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“Já é difícil alguém dar credibilidade para uma mulher cis, imagina uma travesti? Uma travesti que já é sexualizada a qualquer hora do dia, você só quer ir ao mercado e voltar para casa e você é sexualizada ou assediada. Imagina você chegar numa delegacia e falar que você foi violentada, que você foi abusada? Vão falar: ‘Não é disso que travesti gosta? Não é de sexo que vocês vivem?’ Acabamos optando por não ter esse desgaste, ir se reconstruindo e continuando a vida”, comenta Sofia.

Em uma apresentação divulgada em 2023, o MS trouxe informações sobre a prevalência do HIV em diferentes populações-chave e prioritárias. Para o grupo das mulheres trans e travestis com mais de 18 anos, a prevalência mínima era de 17% e a máxima de 37%. Quanto às trabalhadoras do sexo, o órgão compartilhou dados apenas sobre mulheres cisgêneras, em que a prevalência era de 5%. 

Procurado sobre a prevalência do HIV entre profissionais do sexo que se identificam como mulheres trans ou travestis,  o MS informou que não possui dados com essa diferenciação de identidade de gênero. A pasta também esclareceu que as informações apresentadas se tratam de “uma estimativa feita por estudiosos sobre as pessoas dessa identidade de gênero em exposição ao HIV e não os dados em si”. 

Em resposta a um pedido realizado via LAI, o órgão complementou que o Departamento de HIV/AIDS, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis (Dathi), da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA), “não dispõe das informações solicitadas, vez que a variável ‘identidade de gênero’ foi incorporada recentemente aos sistemas de monitoramento clínico, apresentando ainda uma completude baixa”.

Para Rosa, o país ainda carece de investimentos em profissionais que operam e atendem no Sistema Único de Saúde (SUS). A pesquisadora defende que não é possível elaborar políticas públicas e planejar mudanças sem antes pensar em investimento financeiro e na formação dos profissionais. 

“É preciso adequar o processo formativo dos profissionais, tanto na formação básica como na formação continuada, depois que estão em atuação. Esses elementos são fundamentais para garantirmos que pessoas trans e travestis tenham acesso à saúde com dignidade”.

Reportagem produzida a partir do edital Vozes de Impacto: Jornalismo investigativo sobre direitos humanos e democracia, promovido pela Fiquem Sabendo em parceria com a Embaixada Britânica no Brasil.

Coordenação Editorial: Maria Vitória Ramos
Coleta de dados: Igor Laltuf
Revisão: Taís Seibt
Mentoria: Aline Gatto Boueri

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