16 anos depois, Processo Transexualizador no SUS segue restrito e sob ataque
População trans brasileira enfrenta longas filas e dificuldades no acesso a serviço especializado via SUS
“Se eu não tivesse acessado o Processo Transexualizador pelo SUS, provavelmente não estaria aqui para contar minha história”, afirma o filósofo Eli Bruno Prado Rocha Rosa, 30. Quando chegou ao Cepatt (Centro de Pesquisa e Atendimento a Travestis e Transexuais), em Curitiba, em 2017, ele vivia um período turbulento. As ideações suicidas eram frequentes e estavam relacionadas à sua dificuldade de levar a transição social de gênero a cabo, já que não tinha condições de pagar pela hormonioterapia.
“Eu era estagiário e vivia com a minha companheira, que na época também trabalhava como estagiária. A gente se bancava sozinhos e precisava pagar o aluguel. Eu não tinha a menor condição de fazer um acompanhamento particular”, lembra.
Ele procurou uma UBS (Unidade Básica de Saúde) para obter encaminhamento a um serviço especializado. Três meses depois, iniciou atendimento psicológico, e, em seis meses, começou o tratamento hormonal. Apesar de manifestar interesse na mastectomia desde o início, sete anos depois ainda aguarda encaminhamento para a cirurgia.
“O sistema está sobrecarregado, e o tempo de espera é uma das maiores barreiras para quem precisa de ajuda”, diz Rosa. Segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), o tempo de espera por cirurgias de adequação de gênero pode chegar a uma década.
A demora no atendimento começa já no encaminhamento inicial. “Conheço uma pessoa que buscou a UBS no meio do ano passado, mas a atendente não fez o encaminhamento. Foram meses até ela perceber a demora, retornar à unidade e descobrir que nunca havia sido registrada para o Cepatt. Isso é transfobia institucional”, relata Rosa.
A falta de capacitação dos profissionais de saúde e a demora no atendimento afetam diretamente a qualidade de vida das pessoas trans. “A fila não é só um número. São vidas esperando por um atendimento que pode ser crucial.”
O filósofo Eli Bruno Prado Rocha Rosa.
Foto: Acervo pessoalCentralidade no Sul e Sudeste
O Processo Transexualizador do SUS foi instituído em 2008, com o objetivo de oferecer atendimento integral à população trans, incluindo acompanhamento psicológico, terapia hormonal e cirurgias de adequação de gênero.
Dados do Ministério da Saúde obtidos pela Agência Diadorim via Lei de Acesso à Informação mostram que, entre 2014 e 2023, foram realizados 690 procedimentos cirúrgicos relacionados ao Processo Transexualizador no país, com um crescimento de 412,5% no período.
O número variou, ao longo dos anos, com uma queda significativa em 2020 (65% a menos) devido à pandemia de Covid-19.
Quanto aos procedimentos ambulatoriais relacionados à hormonização, o número de atendimentos subiu de 84 em 2015 para 7.072 em 2023, um aumento de 8.317%. A terapia hormonal geral, responsável por 82% dos procedimentos ambulatoriais no período, teve um crescimento contínuo e acelerado, especialmente entre 2018 e 2019, quando o número de procedimentos praticamente dobrou.
Apesar do avanço da política pública, o acesso ainda é desigual. Atualmente, de acordo com o Ministério, o Brasil conta com 27 unidades de saúde habilitadas para prestar a Atenção Especializada no Processo Transexualizador (veja mapa abaixo).
A maior parte dos serviços está concentrada nas regiões Sul e Sudeste, enquanto outras áreas do país permanecem com baixa cobertura. Além disso, mais da metade dos estabelecimentos credenciados estão localizados em capitais.
É por isso que Sayonara Nogueira, secretária de Comunicação da Rede Trans Brasil, defende a capilarização dos programas fora das capitais. “A interiorização é crucial para garantir que pessoas trans em regiões rurais ou do interior tenham acesso ao Processo Transexualizador sem precisar viajar para grandes centros urbanos”, afirma.
Para Nogueira, é necessário aumentar o credenciamento de hospitais universitários e de estabelecer parcerias estratégicas para ampliar o atendimento.
“Precisamos divulgar mais os serviços disponíveis, desburocratizar os processos, reduzir os prazos para consultas, melhorar a distribuição geográfica dos serviços e aumentar o financiamento. Somente assim podemos alcançar a equidade e a universalização da saúde pública”, diz.
Visando melhorar o atendimento à população trans no SUS, um grupo de trabalho formado por profissionais de saúde, pesquisadores e entidades da sociedade civil, em diálogo com gestores estaduais e municipais, deu origem à portaria que institui o Paes Pop Trans (Programa de Atenção Especializada à Saúde da População Trans), publicada em dezembro do ano passado pelo Ministério da Saúde.
“Se eu não tivesse acessado o Processo Transexualizador pelo SUS, provavelmente não estaria aqui para contar minha história.”Eli Bruno Prado Rocha Rosa, 30
Segundo a pasta, a medida tem como objetivo combater lacunas históricas no atendimento à população trans e promover cuidados integrais ao longo da vida, enfrentando os impactos da transfobia no acesso à saúde pública.
O programa prevê a ampliação dos serviços de 27 para 194 unidades até 2028, com um investimento total de R$ 442,9 milhões, sendo R$ 68 milhões destinados a 2025.
A Tabela do SUS –como é chamada a lista de procedimentos médicos, materiais e insumos utilizados em atendimentos e tratamentos da rede pública– também foi reformulada. Foram excluídos 14 procedimentos e incluídos 34 novos, entre ambulatoriais e hospitalares, além de medicações para hormonização cruzada. Em 2025, o programa planeja habilitar 36 serviços ambulatoriais e 23 cirúrgicos, com expansão gradual nos anos seguintes.
Entre as mudanças mais relevantes feitas pelo Ministério da Saúde estão a redução da idade mínima para cirurgias, como mastectomia, de 21 para 18 anos, e a autorização para o uso de hormônios a partir dos 16 anos, com consentimento dos pais.
Também foram incorporados bloqueadores de puberdade para crianças trans em estágio inicial de desenvolvimento (chamado de “Tanner 2”). Essas alterações, em conformidade com a Resolução 2.265/2019 do Conselho Federal de Medicina, buscam garantir acesso mais seguro e inclusivo e reduzir filas de espera.
Barreiras no acesso
A advogada Bruna Andrade, especialista em Direitos LGBTQIA+ e cofundadora da assessoria jurídica e educacional Bicha da Justiça, destaca que, embora o SUS ofereça tratamento fora do domicílio quando necessário, a centralização dos serviços em grandes centros urbanos e as longas filas de espera deixam grande parte do público trans sem atendimento.
Nessa situação, Andrade explica que muitos usuários recorrem à judicialização para “furar” a fila em casos de agravamento clínico causado pela disforia de gênero. Além disso, a inclusão de procedimentos fora do protocolo transexualizador, como a cirurgia de feminização facial, tem sido alvo frequente de ações judiciais. “Esses processos mostram como o sistema ainda precisa se adaptar para atender plenamente às demandas da população trans”, afirma a advogada.
A lentidão e a burocracia do sistema público de saúde impactam diretamente a vida de pessoas como Sayonara Nogueira, da Rede Trans Brasil. “Iniciei minha transição com automedicação, seguindo orientações de travestis mais velhas. Tomava os hormônios que elas indicavam. Em 2009, busquei atendimento em um ambulatório de saúde trans, mas, como o serviço ainda estava sendo implementado, desisti devido à demora absurda nas consultas”, relembra.
O uso prolongado de hormônios em altas doses, sem acompanhamento médico, trouxe problemas de saúde, como varizes e dores nas pernas. Nogueira procurou um angiologista, mas o tratamento não teve resultados. “Esperei por cirurgias em um hospital de Goiânia, mas, sem encaminhamento concreto, desisti. Então, procurei acompanhamento na Atenção Primária, onde tive melhores resultados”, conta.
Luiza Melinho, cabeleireira residente em Americana, São Paulo, enfrentou repetidas negativas do SUS para a realização de cirurgias de afirmação de gênero nos anos 2000. Sem outra alternativa, buscou atendimento na rede privada, o que resultou em complicações de saúde posteriores.
Diante da falta de resposta efetiva do sistema judiciário brasileiro, seu caso foi levado, em junho de 2023, à Corte Interamericana de Direitos Humanos, como mostrou reportagem da Diadorim. O julgamento ainda não tem data para acontecer.
As histórias de Nogueira e Melinho ilustram as demandas que motivaram a Defensoria Pública do Estado de São Paulo a ajuizar, em 2019, uma Ação Civil Pública contra o Estado de São Paulo para ampliar e melhorar o atendimento à população trans no sistema público de saúde.
A Defensoria, por meio do Nudiversis (Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e de Gênero), solicitou a criação de uma coordenadoria na Secretaria Estadual de Saúde para gerir políticas voltadas a travestis e transexuais, a regionalização do atendimento além da capital e a ampliação da oferta de serviços. Também pediu maior transparência nos critérios de formação e acompanhamento das filas de espera, permitindo que os usuários consultem suas posições e o tempo estimado de espera.
A 2ª Vara de Fazenda Pública julgou a ação improcedente. O juiz argumentou que o Estado já segue diretrizes normativas para o Processo Transexualizador, previstas na Portaria 2.803/2013 do Ministério da Saúde, e que o tempo de espera para cirurgias, de cerca de cinco anos, é parcialmente justificado pela exigência técnica de dois anos de acompanhamento multiprofissional.
A decisão também apontou que a falta de transparência nas filas de espera não é exclusiva da população trans, mas reflete um problema geral do SUS.
Com base em um precedente do STF (Supremo Tribunal Federal), que limita a atuação do Judiciário em políticas públicas a casos de ausência ou falhas graves no serviço, o juiz concluiu que não foi comprovada omissão estatal que justificasse a intervenção judicial.
A Defensoria vai recorrer da decisão. “Passados cerca de cinco anos do ajuizamento da ação, observa-se, ainda, uma precariedade do atendimento, com falta de profissionais, demora excessiva para cirurgias e ausência de transparência nas filas de espera”, afirma a defensora Vanessa Alves Vieira, coordenadora do Nudiversis.
“Há, sim, omissão estatal que justifica a intervenção judicial para garantir direitos fundamentais desta população historicamente vulnerável”, diz ela.
A cabeleireira Luiza Melinho
Foto: Acervo pessoalCaminhos para a reforma
Dezesseis anos após a implementação do Processo Transexualizador no SUS, o atendimento à população trans na saúde pública brasileira permanece marcado por desafios, desde estigmas até barreiras estruturais.
Em 2023, deputados estaduais de São Paulo instauraram uma CPI para investigar o funcionamento do Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual) do HC (Hospital das Clínicas) da USP –serviço de referência no atendimento a crianças e adolescentes transgênero. Após um semestre de atividades, a comissão encerrou sem provar qualquer irregularidade.
No âmbito legislativo, os serviços oferecidos pelas unidade de saúde têm sido alvo frequente de parlamentares conservadores: entre 2019 e 2024, foram apresentados 14 projetos de lei na Câmara dos Deputados e 32 nas assembleias estaduais para restringir o acesso, segundo dados da Observatória.
Enquanto a ala conservadora intensifica os ataques ao Processo Transexualizador, pesquisadores e ativistas apontam a necessidade de uma reforma urgente para assegurar os direitos da população trans. Bianca Lopes Rosa, mestre em Saúde Coletiva e autora do estudo “Cuidados em Saúde No Processo Transexualizador”, é uma das defensoras dessa mudança. Para ela, uma revisão crucial seria a alteração do próprio termo que denomina o programa.
“O acesso a cuidados médicos adequados transforma vidas. É essencial que isso alcance as populações mais vulneráveis, que muitas vezes sequer sabem que têm esse direito.”Bianca Lopes Rosa, mestre em Saúde Coletiva
“O termo ‘Processo Transexualizador’ carrega um peso estigmatizante, como se a transição de gênero fosse algo mecânico e uniforme, desconsiderando a subjetividade de cada pessoa trans”, afirma Rosa. Para ela, a expressão foca indevidamente na aparência física e reforça a ideia de que a identidade de gênero está vinculada a intervenções médicas, como hormonioterapia ou cirurgias. Como alternativa, ela sugere a adoção do termo “processo de afirmação de gênero”, que reconhece a individualidade das trajetórias trans.
A pesquisadora alerta para o perigo de relacionar a transição à estetização. “O termo ‘Processo Transexualizador’ coloca o foco na aparência física, como se a pessoa trans precisasse se submeter a hormônios e cirurgias para ser aceita como mulher ou homem, ignorando a complexidade da identidade de gênero que vai além do corpo.”
Rosa enfatiza que a pessoa trans não precisa passar por um processo específico de transição para ter sua identidade validada. “A afirmação de gênero é um processo individual e cada pessoa decide como quer se expressar, incluindo a possibilidade de não querer fazer nenhum tipo de intervenção médica”, aponta, sugerindo a utilização do termo “processo de afirmação de gênero” como alternativa.
A Antra, por outro lado, opta por não utilizar o termo “afirmação de gênero”. Segundo a entidade, nenhuma modificação corporal —ou a ausência dela— define a transgeneridade, uma vez que o gênero já está estabelecido independentemente de quaisquer mudanças. “Por isso, preferimos o termo ‘cirurgias de modificações corporais’ ao nos referirmos a esses procedimentos”, explica a associação.