CPI da Transição de Gênero, da Alesp, começou em junho de 2023. Foto: Carol Jacob/Alesp
CPI da Transição de Gênero, da Alesp, começou em junho de 2023. Foto: Carol Jacob/Alesp
política

‘Desnecessária’: Alesp encerra CPI da Transição de Gênero sem conclusão

Após um semestre de atividades, a Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) encerrou a CPI da Transição de Gênero em dezembro do ano passado, sem provar irregularidades no atendimento, mas com a recomendação de suspensão imediata de admissão de pessoas em transição de gênero no Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual) do HC (Hospital das Clínicas) da USP, serviço de referência no atendimento a crianças e adolescentes transgênero no estado de São Paulo. A decisão causou revolta entre ativistas LGBTQIA+ e parlamentares pró-direitos humanos. 

“Esta foi uma CPI que durou seis meses e que, na verdade, nem deveria ter sido instalada porque não tem um objeto definido. CPI serve para investigar algo, com um objeto bem delimitado, e o problema é que a investigação não resultou em nada”, fala a deputada Beth Sahão (PT), vice-presidente da Comissão.

Segundo a parlamentar, a motivação para instalação da CPI da Transição de Gênero foi claramente “ideológica”. “O trabalho feito pelo Amtigos do Hospital das Clínicas é irretocável. Ali estão psiquiatras, endocrinologistas, pediatras, psicólogos, enfim, uma equipe multidisciplinar que cuida, que trata, que acolhe, que ampara crianças, adolescentes e adultos com conflitos de identidade de gênero com muita competência”, afirma.

O Amtigos foi criado em 2010 para assistência à saúde integral da população transexual adulta, mas logo depois começou a receber — por demanda espontânea — famílias de crianças e adolescentes com variabilidade de identidade de gênero. 

Em nota emitida em fevereiro do ano passado, o Ambulatório informou que acompanhava 100 crianças de 4 a 12 anos de idade e 180 adolescentes de 13 a 17 anos. Em posicionamento enviado aos membros da CPI, o Amtigos também esclareceu que, das 1,2 mil famílias acompanhadas ao longo de mais de uma década de atuação do serviço, apenas uma pessoas passou pelo processo de “destransição”. 

A Diadorim perguntou ao Amtigos se o acolhimento de novas crianças e adolescentes foi suspenso, conforme recomendado pela CPI, e não obteve resposta. A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo também não respondeu à reportagem.

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Disputa de narrativas

Aprovado pelo presidente Gil Diniz (PL), pelo relator Tenente Coimbra (PL) e pelos deputados Tomé Abduch (Republicanos), Dr. Elton (União) e Guto Zacarias (União), o relatório final da CPI alega que o Amtigos estaria contrariando a Resolução nº 2.265/19 do CFM (Conselho Federal de Medicina), que recomenda o uso de bloqueadores hormonais em adolescentes de modo experimental, para fins de pesquisa. 

Os parlamentares também concluíram que as pessoas antedidas e as famílias delas não estariam totalmente cientes dos efeitos colaterais dos bloqueadores, embora não tenham ouvido pessoas atendidas pelo serviço, tampouco a sociedade civil organizada.

Em ofício enviado à CPI, a SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia) se posicionou a favor do uso de bloqueadores hormonais na puberdade de adolescentes com disforia de gênero diagnosticada — o processo, de acordo com o órgão, deve ser realizado em hospitais universitários e/ou de referência para o Sistema Único de Saúde, como ocorre com o Hospital das Clínicas da USP. 

“Em adolescentes transgêneros em tratamento com agonistas do GnRH para bloquear a puberdade os riscos são considerados baixos e aceitáveis”, assegurou a entidade. O CFM não se manifestou na CPI, tampouco respondeu à Diadorim.

A vice-presidente Beth Sahão (PT) e os deputados Guilherme Cortez (PSOL) e Professora Bebel (PT) apresentaram um relatório alternativo intitulado “Uma CPI desnecessária”, que, entre outros aspectos, critica a superficialidade da investigação.

Eles destacam que ao longo de seis meses foram realizadas apenas sete reuniões, nas quais três médicos foram ouvidos: Alexandre Saadeh, coordenador do Amtigos; Durval Damiani, chefe da unidade de endocrinologia pediátrica do instituto da criança do HC-FMUSP; e Akemi Shiba, psiquiatra, que não atua no Amtigos.

O relatório alternativo afirma que Shiba nunca desenvolveu qualquer atividade ou pesquisa junto ao Ambulatório e é “conhecida por sua atuação contra o processo transexualizador, já tendo, por isso mesmo, sido alvo de censura por seu órgão de classe, sendo impedida de manifestar-se sobre o tema da transexualidade em seu estado”. Outros convidados pelos parlamentares conservadores também são reconhecidamente anti-trans, e por isso esses convites não foram aprovados.

“Na impossibilidade de investigar fato inexistente, [a CPI da Transição de Gênero] serviu de palco para a exposição de inverdades, fake news e argumentos negacionistas”, aponta o relatório da ala progressista, reiterando a conclusão do Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo, que em julho do ano passado já havia aprovado o arquivamento de uma denúncia do mesmo caráter contra a atuação dos profissionais do Amtigos. “Não há que se falar em ilegalidade ou irregularidade no processo de transição de gênero oferecido pelo Hospital das Clínicas”, concluiu o órgão.

A deputada estadual Beth Sahão (PT-SP), vice-presidente da CPI. Foto: Carol Jacob

A deputada estadual Beth Sahão (PT-SP), vice-presidente da CPI.

Foto: Carol Jacob

Instrumentalização política das CPIs

De acordo com a Lei 1.579, de 1952, as CPIs (Comissões Parlamentares de Inquérito) fazem parte da atividade fiscalizadora do parlamento, e servem para apurar fato determinado com poder de investigação próprio de autoridades judiciais. No entanto, uma CPI não tem poder de julgar, tampouco punir seus investigados. 

“A CPI pode fazer recomendações, mas essas recomendações não têm força de lei. O hospital não é obrigado a cumprir as recomendações da CPI, mas muitas vezes o faz por pressão pública ou política”, explica a advogada Melina Fachin, pós-doutora em democracia e direitos humanos e professora da Universidade Federal do Paraná. 

Segundo a especialista, após a aprovação do relatório, a CPI pode encaminhar seus resultados ao Ministério Público e/ou às autoridades competentes, que podem iniciar processos judiciais ou tomar medidas legais com base nas conclusões da CPI.

Embora o relatório aprovado preveja encaminhamentos para o Ministério Público Federal e o Tribunal de Justiça de São Paulo, ambos afirmaram à Diadorim que não receberam o documento até o momento. O Ministério Público de São Paulo, que também figura entre os órgãos listados, não se manifestou até o fechamento.

Fachin também chama a atenção para os riscos do uso político das CPIs, que vêm sendo instrumentalizadas por grupos conservadores para confrontar pautas progressistas como a defesa do Movimento Sem Terra e o direito ao aborto. 

“Quando as CPIs são usadas para fins políticos, em vez de investigar questões de interesse público, isso pode minar a credibilidade do processo democrático”, diz. “Os riscos incluem o desperdício de recursos, desgaste da confiança pública e polarização política. Portanto, é importante que as CPIs sejam conduzidas de forma séria e imparcial, focando em questões relevantes para a sociedade e de proteção sobretudo de direitos humanos de grupos sub representados e vulneráveis”, fala a advogada.

Crianças trans na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Crianças trans na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo.

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Denúncia internacional

A ONG Minha Criança Trans, que acompanha 620 famílias de crianças e adolescentes trans em território nacional — muitas delas atendidas pelo Hospital das Clínicas da USP — e 14 no exterior, esteve em audiência com a CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) em novembro do ano passado, para discutir a violação de direitos dessa população pelo Estado brasileiro, e aproveitou a ocasião para denunciar a CPI da Transição de Gênero, que ainda não havia sido concluída.

Maria Fernanda Fernandes Cunha, advogada que representa a organização, disse que o cenário político no Brasil é de omissão normativa e de políticas públicas que garantam a proteção de crianças e adolescentes trans, além de uma ação ativa de membros do poder público em negar por completo a existência dessa população. “Eles se utilizam de mecanismos do poder de Estado, como criação de projetos de lei e instauração de comissões de inquérito nas casas legislativas, em um movimento politicamente organizado e arquitetado para atingir a dignidade das crianças e adolescentes trans e restringir os seus direitos”, discursou durante a audiência.

Thamirys Nunes, presidente da Minha Criança Trans, argumentou que nos primeiros dez meses de governo Lula foram apresentados 27 projetos de lei, em todo o Brasil, que visavam não reconhecer e/ou criminalizar a existência de crianças e adolescentes trans, suas famílias e os profissionais que as acolhem — entre eles, está o PL 14/2023, apresentado pelo deputado bolsonarista Gil Diniz (PL), que mais tarde se tornaria proponente e presidente da CPI da Transição de Gênero. O projeto propunha multar em até R$ 616.680 as famílias de crianças e adolescentes em processo de transição de gênero no estado de São Paulo, mas foi arquivado em março do ano passado.

“Estamos extremamente preocupados pois vivemos em um país com uma nova configuração no Congresso e de outras organizações políticas que sabem do abismo e da ausência de políticas públicas para proteção de crianças e adolescentes trans, e que somado a isso e à ausência de dados sobre esse recorte da população, fomentam um discurso de ódio para promover violências e violações contra crianças e adolescentes trans e suas famílias”, disse a liderança da ONG.

Quem falou pelo governo brasileiro foi Benoni Belli, Representante Permanente do Brasil junto à Organização dos Estados Americanos. Em seu discurso, ele reconheceu a importância histórica da audiência e deu como exemplo a luta pela violência contra a mulher, primeiro reconhecida internacionalmente para depois virar lei no Brasil.

Segundo Nunes, Belli se negou a reconhecer a existência de crianças e adolescentes trans, falando sempre em “crianças, adolescentes e pessoas LGBT”, o que gerou revolta na delegação. Já a CIDH reconheceu, no resumo da audiência, a “existência de meninas, meninos e adolescentes trans, bem como a discriminação interseccional que enfrentam na sociedade”. O órgão internacional enviou questionamentos às partes e, após análise, poderá emitir recomendações ao Estado brasileiro. 

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