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direitos humanos

Ativistas enfrentam estigmas e lutam pela diversidade no Sertão de Pernambuco

Estudantes de jornalismo da UFPE contam a história de mobilização de ativistas no sertão do estado

Uma paixão impossível, dois sertanejos, dois homens no meio de conflitos entre jagunços. Esses são Riobaldo e Diadorim. O primeiro é um homem questionador, que se vê diante do seu maior conflito interno: apaixonar-se por outro homem.

Diadorim, antes Reinaldo, e, no final (alerta de spoiler), Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins, é uma mulher com seios, vagina, com roupas e performance de “cabra-macho”. Por quem Riobaldo estava apaixonado? Mulher cis, homem trans?

A obra “Grande Sertão: Veredas”, escrita por Guimarães Rosa, em 1956, apresenta esse relacionamento que não se concretiza. Ao final do livro, descobre-se que Diadorim, na verdade, precisou se vestir como os colegas para lutar no sertão. Um romance que não aconteceu pela imposição de padrões de gênero e da heteronormatividade.

O sertão costuma ser representado com fórmulas prontas de homens e mulheres vítimas do clima e da terra seca, desenvolvendo, como resultado, personalidades igualmente duras, monossilábicas e conservadoras, em que o homem carrega o estigma de “cabra-macho”, um lugar onde não passa afeto. Entretanto, Euclides da Cunha — em alguma medida — e, um século depois, reiterado e ampliado por Fabiana Moraes — ambos jornalistas desafiadores do que está posto a priori — descortinam a diversidade sertaneja. Um mundo tão diverso que não pode ser só um.

Apesar da ideia reforçada e vendida pela mídia concretizar um pensamento do sertão como uma coisa só, a multiplicidade não é exclusividade da cidade. O sertão é, na verdade, plural. Nesse sentido, podemos falar em “os sertões”. A diversidade dessa região não é só geográfica, estadual, mas também humana.

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Cores dos Sertões

Adriana Gomes da Silva é uma mulher cis negra e lésbica, de 41 anos. Sua trajetória a levou à presidência do Movimento Sertão das Cores, de Salgueiro, à coordenação da Rede LGBT do Interior e a representante do Conselho Estadual da Rede Nacional da promoção e controle social da saúde, cultura e direitos das Lésbicas e Bissexuais Negras, a Rede Sapatà.

Em Salgueiro, seu ativismo começou na tentativa de organização de um grupo de mulheres de associações, crenças e orientações sexuais diversas em torno de um tema comum: a violência sexual. O estopim foi o assassinato de Luana, uma mulher trans, em meados de 2006. “Quando eu vi a minha história se repetindo, outras amigas minhas, outras Adrianas, mulheres negras, né? Eu senti uma grande necessidade de me envolver, de fazer diferente e mudar isso”, lembra.

Bia Pankararu, 29, é mulher cis, indígena e lésbica. Batizada como Beatriz Aparecida da Silva, ela nasceu em Tacaratu, município criado em território Pankararu. Tornou-se técnica de enfermagem e se dedicou a tratar da saúde indígena. Além disso, é produtora cultural e, mais recentemente, roteirista e atriz do filme “Rama Pankararu”, com o qual contribui para subverter estigmas associados às identidades que a atravessam. Aos 14 anos, ela passou a atuar no âmbito cultural, com foco nos direitos indígenas e também LGBTQIA+. “Um tema tão pouco abordado, nem de população LGBT no sertão se ouve falar, imagina a população LGBT indígena, aldeada”, destaca a importância do tema.

Marcos Siqueira é homem negro cis, gay, de Araripina. Atualmente, atua como gerente de Direitos Humanos da Comunidade LGBTQIA+ na prefeitura de sua cidade, além de ocupar a presidência do Coletivo Vozes do Sertão, com atuação no sertão de Araripe.

Aos 33 anos, entende que seu envolvimento na luta por causas sociais começou na adolescência, inicialmente, no movimento estudantil. “Eu vi na escola a porta, a grande saída para tudo isso e eu me empenhei na escola. Fui presidente de sala, depois presidente do grêmio, cheguei a ocupar a presidência do Conselho Municipal de Juventude aqui de Araripina e fui me envolvendo, integrando, interagindo nos movimentos sociais”, ele explica.

Uma vez ciente da potencialidade da organização coletiva, percebeu mais tarde a necessidade de uma associação que batalhasse pela causa LGBTQIA+. Por volta de 2014, essa proposta foi ganhando forma. Ele conta que, entre 2019 e 2020, a articulação se ampliou com a colaboração da Rede LGBT do Interior, e foi nesse período que nasceu oficialmente a Vozes do Sertão.

Renna é uma mulher trans, que fez dos sertões seu lugar. Natural de Santa Catarina, na área de manguezais, ela sempre se envolveu com artes. Com o privilégio do apoio dos pais, se graduou em teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Para ela, o ativismo é um lugar de transformação social. Apesar de a universidade ser um ambiente plural, ela atenta para a permanência de um ambiente eurocêntrico. Por isso, buscou se aproximar das culturas tradicionais, tanto dos quilombos quanto dos territórios indígenas em assentamentos do Movimento Sem Terra (MST).

Em 2018, se formou e se mudou para Pernambuco, com o intuito de se aproximar mais de movimentos de cultura popular. “Eu busco o interior muito a partir desse contexto de entendê-lo como esse embrião da cultura popular, mesmo que chegue na capital. Ele nasce nos meios rurais, nasce junto com a terra, e com o processo de colonização, processo de urbanização, acaba indo para a cidade.”

Em suas andanças, Renna passou por Caruaru, Triunfo, Arcoverde, até chegar em Buíque, no Vale do Catimbau. Ela atua no coletivo Pantin, de Triunfo, coletivo de artes integradas formado só por mulheres sertanejas. Além disso, também tem algumas parcerias com o coletivo Rios da Terra, de Arcoverde, que trabalha com agricultura popular e agroecologia.

Desconstruindo a Amélia

Amélia não tinha exigências, não tinha vaidade, aceitava tudo calada. Amélia, da música de Itamar Assunção, era “mulher de verdade”. Mas Sojourner Truth, já em 1851, questionava o que de fato era ser uma “mulher de verdade”, quando além do gênero era também negra. Nos casos em que essa interseccionalidade cruza ainda com o elemento sexualidade, é certamente impossível não deixar o imaginário social em torno das Amélias do sertão despedaçados.

“A gente chega onde a gente quiser… Aquela visão de sermos criadas para ser esposas, digamos uma ‘Amélia da vida’, a gente conseguiu transformar. Conseguimos tirar a ideia de que uma mulher não poderia assumir outra mulher, que duas mulheres não poderiam constituir uma família. Nós mostramos que podíamos, sim. A gente conseguiu e podemos muito mais. Se nossos pais nos criaram para ser Amélia, fomos lá e derrubamos essa barreira. Eu não quero ser Amélia”, afirma Adriana.

Assim como Adriana, Bia também aponta o coronelismo e o patriarcado como fatores determinantes na construção do que é esperado acerca do feminino, no sertão de Pernambuco. Para ela, no seu contexto de aldeada, a colonização foi “bem feita” e tem grande peso. “Quando a gente entende que na América Latina, diversos povos reconheciam três gêneros: o homem, a mulher e o terceiro gênero. Diversos povos tinham relacionamentos homoafetivos. Até os termos ‘homoafetivo’, ‘LGBT’, todas essas terminologias, todas essas nomeações não nos pertencem, veio de algum lugar”, pontua Bia.

Renna, transativista, chama atenção para o reflexo dos estereótipos, da masculinidade tóxica, da construção da ideia do homem como provedor da família, como uma pessoa que não pode chorar. Para ela, a colonização também influenciou nesse sentido: “Essa ideia parte dos homens com poderes desde o momento que fomos colonizados aqui no Brasil por homens brancos da elite, e são eles que reproduzem as imagens do senso comum.” Ela acredita que é preciso quebrar e modificar esses conceitos, que alteram a cultura, a partir da arte, como um lugar pedagógico.

Nas falas das três ativistas, ficam evidentes desafios como assédio, ameaças de estupro corretivo e a dificuldade em ser respeitada como liderança em seus territórios. Questões que são cotidianas para as mulheres e que, quando somadas à sexualidade, tornam-se ainda mais ameaçadoras ao existir e ao resistir.

“Muitas vezes, até me intitular como liderança, eu sinto que rola incômodo… Então, quem é essa menina aí? Jovem, sapatão, não é de um núcleo familiar, desvirtuando a cultura do povo Pankararu. Rolou um movimento, inclusive, de criminalização dos movimentos LGBT dentro da aldeia”, afirma a Pankararu, ao contar de quando tentou articular um coletivo com essa pauta em seu território.

A artista Renna Costa.

Foto: Laís Domingues/Divulgação

‘Artivismo’ e representatividade

Além da importância de trazer a discussão para dentro das famílias, para dentro dos espaços mais tradicionais, atenta-se para a representação queer nas redes de comunicação, tanto aos que atuam quanto às pessoas que estão por trás dos projetos, há uma grande importância de serem elaboradas por pessoas também LGBTQIA+.

As pessoas estão entendendo e estão humanizando esses corpos, deixando de tratar como piada, como alívio cômico, com nojo e trazendo a humanidade. Para ela, figuras como Linn da Quebrada no Big Brother, por exemplo, têm uma forte importância por estarem na Globo e em outros grandes canais de comunicação.

Na sua atuação, Renna possui duas videoperformances. Um deles é o clipe “Lamenta a Esposa Travesti”, que recebeu prêmios de melhor videoclipe e melhor direção de arte em festival de cinema, e foi exibido em Paris e em Estocolmo. Outro trabalho audiovisual se chama “Cerca” e aborda o isolamento social e dos corpos travestis nesse contexto. O projeto foi elaborado para o Itaú Cultural, em 2021, e foi exibido em uma mostra de performance no Ceará.

Já o filme “Rama Pankararu” levou Bia e a história de uma mulher indígena e lésbica para fora do país. Para ela, a produção contribui para desmistificar o que é esperado dos povos indígenas, dos sertões e das mulheres lésbicas.

“Quando a gente foi fazer a mostra do filme em Paris, a primeira grande surpresa foi de ser um povo indígena no Nordeste, no Sertão. Esse foi o primeiro grande choque. Não era na Amazônia, não era na floresta. Então, a gente chega na Europa com Rama Pankararu, uma história de uma mina sertaneja, lésbica, que não tem nada daquela performance do indígena que o europeu está esperando. Aí chega eu lá, sem cocá, sem pintura. Era eu lá. Então, são camadas e camadas, que não é pensado, que não é dito sobre a gente estar nesse território, nossos corpos estarem nesse território. Tanto como indígena quanto como mulher lésbica”, acrescenta ela.

Um consenso entre os ativistas entrevistados é a necessidade de investimento e de Políticas Públicas para a população LGBTQIA+ na região

Foto: Divulgação

Resistir é permanecer

Para além de suas ações direcionadas à saúde indígena, à luta pela questão da terra e ao ativismo enquanto mulher lésbica, Bia acredita que seu grande ato de resistência está no permanecer. Após um período de migrações entre São Paulo e seu território, junto com sua mãe em busca de emprego, entre os 11 e 12 anos, ela fica de vez em seu lugar de origem, elemento que demarca o início de sua militância. “Eu acho que esse foi o meu primeiro grande ato de resistência, enquanto um corpo de uma mulher cis, que decide ficar e viver a sua verdade, viver a sua vida”, reflete Bia.

“Eu decidi ficar, decidi estudar, decidi me formar, decidi trabalhar na minha aldeia, entrar na casa das pessoas que apontavam o dedo para mim, como profissional de saúde, como técnica de enfermagem, fazendo consulta”, continua Bia, que além de prestar atendimento em saúde, é uma liderança de sua aldeia e recebe diariamente a vizinhança para auxílio na resolução de questões diversas.

Adriana carrega sentimento semelhante em relação a Salgueiro. Sobre isso, ela conta que adiou sua entrada em um movimento integrado do interior com receio de se envolver com demandas externas e não conseguir priorizar sua cidade. Marcos também escolheu permanecer e levou seu ativismo para dentro da estrutura, atuando como governo: “minha atuação na gerência de direitos humanos na comunidade agrega muito pro movimento porque aquilo que eu não consigo através da sociedade civil, eu imponho enquanto governo. Então, atuando como governo a gente consegue ter mais braços, mais espaço e mais viabilidade de execução financeira”. Além da atuação como instituição, Marcos procurou fortalecer o movimento LGBTQIA+ nos sertões, criando o Vozes do Sertão.

Políticas Públicas

Um consenso entre os ativistas entrevistados é a necessidade de investimento e de políticas públicas para a população LGBTQIA+ na região, principalmente, no que se refere à educação, saúde e cultura, fatores transformadores, mas que estão em escassez nos sertões.

O direito à saúde no que diz respeito aos corpos LGBTQIA + de forma geral já é um direito básico negado, tanto dentro do sistema único de saúde (SUS) quanto no próprio espaço de educação. “Hoje, aqui em Pernambuco, por exemplo, a gente tem a referência de Recife, enquanto um lugar da saúde. A gente tem o Ambulatório LGBTQIA +, ali na Madalena. Também tem o Hospital da Mulher, que traz esse recorte mais específico. Mas, nas outras cidades, principalmente no interior, isso é uma realidade ainda muito distante”, diz Renna, se preocupando com o processo de hormonização desacompanhado e automedicação.

Essa preocupação também é de Adriana, que percebe um aumento da população trans masculina adolescente em Salgueiro e se preocupa que esses jovens não tenham o atendimento necessário para fazer sua transição em segurança.

Ainda em comparação com a capital, Bia aponta como principal dificuldade das cidades sertanejas a acessibilidade a diversos serviços, tecnologias e debates sobre determinados assuntos. Para ela, outro problema é o clássico dos sertões, o coronelismo.

“Existe um pensamento muito coronelista ainda. A política é muito coronelista, feita de famílias e de clãs. Então, a gente fica à margem o tempo inteiro, à margem da política. Pensar num conselho LGBT municipal é muito improvável”, comenta. “Às vezes eu quero entender das políticas, para entender o que acontece mesmo. Teve recurso na prefeitura para a política pública LGBT e não encontraram quem quisesse assumir a pasta. Procuraram as LGBTs da cidade e ninguém quis pegar e botar a pasta embaixo do braço e dizer assim: ‘vou pegar esse rojão’.”

A ativista entende que esse posicionamento se dá pelo fato de essa pauta não ter reconhecimento. Quem assumir lutar por ela nas instituições dificilmente vai ser levado a sério. Ela acrescenta ainda que essa situação é mais recorrente justamente em territórios mais vulneráveis, ou seja, os que mais precisam que haja o que ela chama de “virada de chave na ponta” para promover mudança. “São nesses territórios que a gente mais tem ameaça de estupro corretivo, casamento infantil. Menina de 12 anos de idade já está junto e a família está achando normal. Melhor que já tenha aquele maridinho certo ali aos 16 anos, sabe? E já fazer a família dela ali do que deixar a sorte do Deus dará ou de outras violências. Ela agora tem marido, ela está protegida. Porque não tem Estado, não tem lei, não tem política que consiga proteger ninguém, nem a infância”.

Adriana acrescenta o aspecto da geração de renda para pessoas LGBTQIA+ ao debate, e entende que sua cidade deveria ter políticas públicas na área de educação profissionalizante, mas principalmente na área cultural. “Todo tipo de artista que você possa imaginar, a gente tem muito. A gente tem design. A gente tem promotor de festa. A gente tem professor de dança. Então, o grande desafio aqui de Salgueiro, eu posso te falar com toda a sinceridade, é a cultura. Há poucas políticas públicas para cultura, para artistas LGBT.”

Na atuação de Marcos, a luta se dá dentro do sistema para efetivar políticas públicas. Ele relata que já conseguiu, por exemplo, a mudança do nome de batismo para o nome social gratuitamente para pessoas trans da cidade, bem como parcerias com a iniciativa privada para capacitação e contratação desse grupo. Ele explica ainda como a atuação da gerência é relevante em casos de LGBTfobia, nos quais faz o acompanhamento da vítima e direciona o caso para o Centro Estadual de Combate à Homofobia. Políticas públicas é a forma de ativismo de Marcos.

A visão eurocêntrica estorva as raízes do povo brasileiro na colonização, em uma tentativa de aculturação. Em meio às perspectivas, existem lutas para reconhecer a existência de Diadorim e o amor de Riobaldo por ele/ela. Concretiza-se, assim, os sertões. No plural, com vários “S”, pela atuação de Adriana, Marcos, Renna, Bia e tantas outras vidas que lutam pela desconstrução e desestigmatização dos corpos sertanejos. Ampliando os horizontes e criando uma realidade em que Riobaldo sinta o amor sem culpa por Diadorins ou Diadorinas.

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