Emprego trans na América Latina: projetos de lei buscam cotas no mercado de trabalho
Levantamento exclusivo identificou pelo menos 15 projetos de lei que preveem reserva de vagas no Brasil; em 2021, a Argentina aprovou lei de cotas de trabalho para pessoas trans e travestis no funcionalismo público
Esta reportagem é uma parceria da Agência Diadorim com Gênero e Número
Após seis anos de articulação dos movimentos sociais, em 2021, o parlamento argentino aprovou a Lei de Promoção do Acesso ao Emprego Formal para Travestis, Transexuais e Transgêneros “Diana Sacayán – Lohana Berkins”. A legislação, que prevê 1% de cotas de trabalho para pessoas trans e travestis no funcionalismo público, faz referência a duas ativistas que tiveram relevante trajetória de luta no país. Iniciativa semelhante foi promulgada pelo parlamento uruguaio em 2018, com regulamentação em 2019.
No Brasil, levantamento exclusivo da Gênero e Número identificou pelo menos 15 projetos de lei em tramitação que preveem a reserva de vagas de trabalho para a população trans e travesti: sete em capitais de estados, quatro em assembleias legislativas estaduais e no Distrito Federal, e outros quatro no âmbito federal.
A reportagem também identificou duas iniciativas que já estão em vigor no Brasil. No município de Mariana (MG), a lei nº 3.578, publicada em 2022, dispõe sobre reserva de 3% de vagas em empresas que prestam serviço para o poder público. No Rio Grande do Sul, o governador Eduardo Leite (PSDB) publicou um decreto, em dezembro de 2021, que prevê a reserva de 1% das vagas para a população trans em concursos para o provimento de cargos efetivos e empregos públicos. O decreto também prevê reserva de vagas para outros grupos minorizados, com percentuais distintos.
Os quatro projetos apresentados à Câmara dos Deputados estão apensados à proposta mais antiga, o PL 5.593/2020, do então deputado Denis Bezerra (PSB/CE). Em fase inicial de tramitação, os PLs ainda esperam parecer da Comissão dos Direitos da Mulher.
Uma das propositoras é a deputada Natália Bonavides (PT/RN). O PL 2.345/2021 prevê a criação do Transcidadania — uma política pública que já foi implementada por decreto nos municípios de São Paulo e Natal —, destinada à promoção da cidadania de travestis e transexuais em situação de vulnerabilidade social.
Além de propor elevação de escolaridade e qualificação profissional, este PL busca implementar a reserva de 3% de vagas de emprego para empresas com mais de 100 empregados que gozam de incentivos fiscais, participam de licitações ou mantêm contratos com o poder público federal.
“É imprescindível que seja elaborada uma política pública que auxilie a quebrar o ciclo de violações contra a população trans. Devido ao preconceito, a maioria dessa população é vítima da exclusão desde o convívio familiar, no qual sua identidade não é aceita, dos ambientes escolares e profissionais. Sem formação escolar completa e sem oportunidades de trabalho formal, essas pessoas ficam sujeitas à vivência em situação de rua e à prostituição, o que as deixa expostas a violações produzidas pelo preconceito da sociedade”, afirma Bonavides.
A proposta mais recente apensada aos demais PLs no Congresso é da deputada federal Duda Salabert (PDT/MG), uma das primeiras deputadas trans da Câmara. O texto trata sobre a reserva de 4% de vagas do Sistema Nacional de Empregos (Sine) para pessoas em situação de rua e 4% para travestis e demais pessoas trans.
Em todos os projetos de lei mapeados pela reportagem, os percentuais de vagas que devem ser reservadas variam de 1% a 5%, mas a falta de dados confiáveis e padronizados sobre a população trans no Brasil dificulta a avaliação de impacto das propostas, caso aprovadas.
De acordo com a pesquisa “Proporção de pessoas identificadas como transgênero e não binárias no Brasil”, publicada na Scientific Reports, da editora Nature, 3 milhões de pessoas se identificam como dissidentes no Brasil — cerca de 2% da população adulta — e estão localizadas de forma homogênea em todo o país. A amostra representativa da população adulta foi de 6 mil pessoas. A identidade de gênero foi categorizada como cisgênero, transgênero ou gênero não-binário.
Cotas para pessoas trans em universidades
No Brasil, cinco universidades públicas reservam vagas para pessoas trans: três no estado da Bahia, uma no ABC Paulista e uma no Amapá. Dani Balbi (PCdoB), primeira deputada trans eleita pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), apresentou um projeto de lei que propõe reserva de 3% de vagas para a população trans em universidades estaduais.
Segundo Balbi, sua equipe técnica fez levantamento de estatísticas, embora elas ainda sejam defasadas quando se trata de população trans, de projetos que já foram implementados em universidades e do projeto de lei aprovado na Argentina.
“Apesar do escopo reduzido das vagas [na Argentina], vemos como [uma iniciativa] muito positiva, porque o nosso intuito é fazer a destinação [de vagas] na Faculdade de Educação Tecnológica do Estado do Rio de Janeiro (Faeterj), nas universidades públicas estaduais do estado do Rio de Janeiro e, se possível, caminhar para a inclusão no mercado de trabalho formal”, indica a deputada estadual.
As universidades públicas fluminenses já emitiram parecer favorável à proposta, que está em fase de tramitação nas comissões da Alerj. Balbi acredita que essa etapa será mais tranquila do que a votação em plenário, quando prevê possíveis ataques da oposição. Para garantir a aprovação da proposta, a deputada conta com a pressão dos movimentos sociais.
Em São Paulo, a bancada feminista do PSOL também pretende apresentar um projeto de lei para reserva de vagas em universidades. A codeputada da bancada, Carolina Iara, mulher intersexo, travesti, positiva HIV e negra, acredita que esses projetos podem fomentar o debate e pressionar as próprias universidades a aderirem ao sistema de reserva de vagas. Iara destaca que veio de uma universidade com cotas para pessoas trans (Universidade Federal do ABC Paulista) e ressalta a importância de incluir as pessoas intersexo na discussão pública.
Para a codeputada estadual, é válido que o debate comece pelas universidades, mas precisa avançar para a empregabilidade. Ela também defende a ampliação e o fomento de programas sociais como o Transcidadania, em São Paulo, que oferece oportunidade de conclusão dos ensinos fundamental e médio, além de qualificação profissional.
Iara defende que o debate inclua a perspectiva de raça, com uma lupa sobre a violência direcionada às pessoas trans nas escolas — o que contribui para a evasão escolar.
“O Brasil tem a questão do racismo estrutural muito forte. Aqui em São Paulo, no mapeamento trans, vimos que 70% das pessoas que se declaram travestis são negras. É a população mais vulnerável, que é expulsa de casa aos 14 anos, e do ambiente escolar também”, ressalta.
A codeputada acredita ainda que, assim como na Argentina, a mobilização no Brasil precisa ocorrer em união com outros movimentos, como o de mulheres negras e os movimentos feministas, uma vez que a multiplicação de vozes pode contribuir para potencializar a luta da comunidade trans.
Lei argentina é resultado de décadas de luta
Na Argentina, embora a articulação dos movimentos para aprovação da lei cotas de trabalho para pessoas trans e travestis no funcionalismo público tenha se consolidado a partir de 2015, quando uma lei semelhante foi aprovada em Buenos Aires, a luta no país tem uma vasta trajetória.
Em 2006, foi aprovada uma lei que determina que alunos têm o direito de receber educação sexual integral em escolas públicas. Em 2010, a Lei do Matrimônio Igualitário regulamentou o casamento homoafetivo. Em 2012, foi aprovada a Lei de Identidade de Gênero — pioneira no mundo ao reconhecer o direito das pessoas a serem registradas em seu documento de acordo com sua identidade de gênero.
Na sequência, vieram a lei de cotas laborais na província de Buenos Aires (sancionada em 2015 e regulamentada em 2019), a Lei de Acesso a Interrupção Voluntária da Gravidez (2020), o decreto presidencial que antecipou a cota de 1% para cargos da administração pública nacional para pessoas trans, travestis e não binárias (2020) e, por fim, a Lei Diana Sacayán-Lohana Berkins.
Segundo a ativista Paula Arraigada, os militantes fizeram muitas reuniões com diferentes legisladores e contaram com o apoio do movimento feminista popular. Quando a luta foi incorporada pelos sindicatos, forças políticas e movimentos sociais, a possibilidade de aprovação do projeto ganhou força.
Durante as discussões, dentro dos movimentos, houve confronto de ideias sobre quem deveria ter prioridade como beneficiário da lei. As tensões envolveram questões de gênero, como, por exemplo, se a lei atingiria exclusivamente mulheres trans ou também as travestis, e se incluiria homens trans e pessoas não binárias. Por fim, o texto aprovado contempla todos esses grupos. Mas os militantes perderam em “percentual” de vagas que seriam reservadas para a comunidade.
“Queríamos 2% ou 3% das vagas de trabalho e nos deram 1%. Quando a lei foi discutida, o cálculo foi de que deveria afetar uma população de aproximadamente seis mil pessoas. Acreditamos que o número é maior, mas dissemos, ok, começamos com isso”, explica o ativista Pao Raffetta.
Apesar das perdas, a lei levou em consideração boa parte das reivindicações. Incluiu, por exemplo, a possibilidade de contratação de pessoas que não concluíram o ensino médio, com possibilidade de terminar os estudos. Autos de infração e antecedentes criminais de menor potencial ofensivo também não podem ser obstáculo para o ingresso de pessoas trans no serviço público, uma vez que essa população foi muito criminalizada pelo Estado ao longo da história.
O último monitoramento feito pelo Ministério da Mulher, Gênero e Diversidade da Argentina, de dezembro de 2022, aponta que 574 pessoas trans haviam sido empregadas no setor público nacional até então. As contratações correspondem a 0,25% dos servidores públicos.
“Há uma falta de interpretação dessa lei porque aqueles que estão nos lugares para gerir ou aplicar este regulamento são pessoas cis e não são pessoas trans. Muitas das companheiras trans e travestis que têm mais de 45, 50 anos não tiveram acesso ao emprego formal, porque ainda não havia a Lei de Identidade de Gênero e o Estado era muito violento contra nós. Elas não tiveram acesso à educação e hoje não têm acesso ao emprego formal”, avalia Arraigada.
Considerando que o total de pessoas contratadas na administração pública da Argentina é pouco mais de 229,8 mil pessoas, ao menos 2,3 mil pessoas trans, travestis ou não-binárias deveriam ser contratadas para que a cota fosse cumprida. Nesse ritmo de contratação, as beneficiárias da lei só ocuparão todas as vagas reservadas em 2026.
No cadastro único de candidatos às vagas, há pouco mais de 6,9 mil pessoas que aguardam uma oportunidade. Das pessoas cadastradas, apenas 8,3% conseguiram emprego.
Para Arraigada e Raffetta, a aprovação da lei é uma vitória que deve ser celebrada, mas ainda há um longo caminho para que ela seja implementada em sua totalidade e um desafio para que alcance pessoas em maior situação de vulnerabilidade.
“Agora está em discussão uma lei de reparação histórica, que também tem muitos anos de luta, antes da lei de cotas, para pessoas trans e travestis que, além de terem sido criminalizadas e perseguidas pela polícia, nunca tiveram carteira de trabalho e, por isso, não têm acesso a uma pensão ou a uma renda que lhes permita sobreviver. Talvez elas não tenham mais condições de entrar em um emprego do zero. Há algumas situações que são mais desesperadoras e que ficaram para depois”, conclui Raffetta.
Metodologia
Foram mapeados projetos de lei, aprovados ou em tramitação, em assembleias legislativas estaduais e câmaras municipais das capitais cujas propostas envolvessem reserva de vagas em concurso público e/ou empresas para pessoas trans e travestis.
O mapeamento foi feito a partir de buscas nas casas legislativas de todas as capitais e unidades federativas do Brasil, assim como no Senado e na Câmara dos Deputados. Os termos de busca utilizados foram: “travestis”, “transgêneros”, “transexuais”.