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Imagens do acusado. Foto: Reprodução/Redes sociais
LGBTIfobia

‘Passa e repassa’: Por que a transfobia é assunto de todo mundo

Homem agrediu uma mulher cis, no Recife, por pensar que ela era trans

Era para ser um Natal tranquilo, mas, na antevéspera de 25 de dezembro de 2023, acordamos com mais um ataque transfeminicida na cidade do Recife, no país chamado Brasil, o mais transfóbico do mundo. Com um detalhe que traz um gosto de reflexão: a vítima não era uma pessoa trans. 

Foi num bar localizado em um dos bairros da elite recifense que uma cliente, mulher cisgênero, alegou para o marido, também cis, que havia uma mulher transgênero no banheiro feminino do local. Imediatamente ele foi até o banheiro e abordou essa mulher. Segundo a vítima, a questionou se ela era homem ou mulher. Ela, sem entender a razão do questionamento, o indagou sobre o teor da pergunta. Em seguida, ele adotou uma postura violenta e a esmurrou. Qual a surpresa? Ela não era uma mulher trans, mas cis, reconhecida pela esposa como alguém com passibilidade trans. E aí? Quantos erros há nessa cena? Vamos a alguns.

Uma mulher trans não pode usar o banheiro feminino? É claro que pode, diz a voz do grilo falante da consciência num mundo em que acordos de paz e direitos humanos são firmados e reassinados a todo instante entre diversos estados-nação. No Recife, dois meses antes desse ocorrido, foi aprovada a Lei nº 19.124/23, denominada Roberta Nascimento, que estabelece a data de 24 de junho como o Dia Municipal de Enfrentamento ao Transfeminicídio na cidade, mas, até o momento, não existe nenhuma legislação municipal, nem estadual, que proíba a violência transfóbica, ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF), também neste ano, tenha equiparado ofensas contra pessoas LGBTQIA+ ao crime de injúria racial. Na prática, até essa decisão do STF chegar à educação das pessoas e se tornar dispositivo legal, muita coisa pode acontecer, como, por exemplo, o que houve no referido bar. 

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E um homem pode invadir o banheiro destinado a mulheres? Ironicamente, o agressor, em nome de uma imaginada defesa às consideradas mulheres de verdade, bateu na suposta mulher trans porque não admite a presença do que ele chama de homem vestido de mulher no banheiro feminino. Contradição? Não. Homens cis machos-alfa, podem o que querem, até invadir um espaço proibido a eles, mas mulheres, e, sobretudo mulheres trans – ainda mais invalidadas – não podem nunca ter seu direito de ir e vir respeitado, mesmo num país que lhes garante essa possibilidade. Como disse Paul B. Preciado, filósofo e escritor feminista transgênero, “nos expulsam do banheiro desejando nos expulsar do resto do mundo”.  A masculinidade no corpo do homem cis é a liberdade, é a própria ação de poder. Nasça homem, se mantenha másculo e verás o puro suco do poder.  

E desde quando banheiro é um lugar restrito a uns corpos e a outros não? Desde que o banheiro se tornou banheiro. Melk Costa, linguista pesquisador do assunto, afirma que isso se deu na modernidade, momento da emergência do recinto como water closet, espaço fechado e privado pelos sistemas de constituição das cidades, do urbanismo e do Estado, que são estruturas de biopoder e cisnormativas. Construímos a história do banheiro como um espaço recluso e duonormativo, porque assim se fez, mas é sempre bom conhecer as camadas históricas e políticas por trás dessa construção. Isso nos mune de conhecimento e crítica ao sistema normativo de significação dos corpos. 

Agora, a pergunta chave. Uma mulher cis com passabilidade de mulher trans? O que é passabilidade? “Passável” é um adjetivo criado por pessoas trans para identificar quão reconhecida como cis uma pessoa trans pode ser. Como a transgeneridade é tida como anormalidade, muitas pessoas sentem a necessidade de não gerar estranhamento quando têm identidade trans. E, para muita gente, uma das formas mais exitosas disso acontecer é não aparentar ser trans por aspectos como a fisiologia corporal externa, a roupa, a voz, dentre outras. Passabilidade, que, segundo o cientista social Tiago Duque, é a característica de quem é passável por cis, consiste num dispositivo de poder que restringe as possibilidades da pessoa trans ser como ela quiser. 

Desde 2015 está parado no STF o processo que analisa o uso de banheiros por pessoas trans e travestis e o equipara a uma violação dos Direitos Humanos com impactos coletivos. A violência de expulsar essa população é fundamentada no pânico moral que foi difundido em nossa sociedade, e não em dados, pois sabemos que a maior parte das violências sexuais sofridas pelas mulheres é cometida por homens e acontece em suas casas. 

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Trazendo mais ingredientes para esse caldeirão e falando um pouco melhor sobre essa passabilidade de uma mulher cis por uma trans, algo nos remeteu à célebre artista, que nos deixou em 2016, Elke Maravilha, a qual citou, em diversas entrevistas ao longo de sua carreira, que seu corpo sempre despertou o questionamento de uma grande parcela da população sobre se ela seria uma mulher ou “um travesti”. Mas por que, em 2023, nossa sociedade ainda tenta enquadrar a mulher em normas compulsórias que hierarquizam pessoas como melhores e outras que nem na categoria de pessoa se encontram? Será que a repercussão de tal caso seria a mesma se de fato fosse uma mulher trans ou travesti? 

Claro que essas reflexões nos levam a inúmeros caminhos de desconstrução de um status quo sedimentado. E desconstruir preconceitos é muito mais trabalhoso do que perpetuar a comodidade de se sentir norma. Esse caso violento, sofrido diariamente pela população T, ocorreu contra uma mulher cis, a que se espera ter passabilidade cis. Na medida em que ela não tem e, portanto, performa a transgeneridade, tem a transfobia recaída sobre si.

Nesse passa e repassa de reconhecimento, a transfobia, em vários de seus tentáculos, é uma questão para todas as pessoas. Romper a fronteira da norma de gênero já é razão para qualquer pessoa ser lida como desviante, por gênero ou sexualidade. Foi o que aconteceu com a vítima do bar em Recife. Mesmo sem perceber, seu corpo denunciava qualquer traço que a fazia ser lida por alguém fora da norma dominante de gênero. O agressor ali fez o papel de juiz, censor, advogado e cumpridor da cisnormatividade. Foi a voz da norma que impulsionou sua caminhada até o banheiro, maquinou a sua mente, confrontou seu braço sobre o corpo da mulher agredida. Esse indivíduo nada mais fez do que deu matéria corporal ao que muitas vezes somos capazes de fazer no olhar, nas palavras: excluir, oprimir, negar, desintegrar, matar a existência de alguém que, sendo ou não uma pessoa dissidente de gênero, pode, mesmo com pequenos aspectos, sinalizar a possibilidade da “desordem” que o corpo é capaz de causar. 

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Gustavo Paraíso

Graduado em Comunicação Social - Rádio e TV pela UFPB e em Letras - Português e Espanhol pela UFRPE. É integrante do Núcleo de Estudos Queer e Decoloniais (NuQueer). Pesquisador em Linguística pelo CNPq.

Iran Melo

Linguista, professor da UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco), diretor do Observatório Brasileiro de Linguagem Inclusiva de Gênero e pesquisa o discurso de Linn da Quebrada.

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