Treze de Maio: a rua LGBTQIA+ do Carnaval de Olinda
Da sexta que antecede a folia até a Quarta-Feira de Cinzas, a Treze ganha o público que lhe dá, mais que corpos, caráter e suores
No trecho em que lambe os Quatro Cantos de Olinda, a velha rua chamada Amparo assume outro nome. Em alusão à data em que a princesa, pressionada pela nova ordem capitalista imposta pela Inglaterra, aboliu a escravidão no Brasil, passa a se chamar oficialmente Rua Treze de Maio. Em seu percurso, está a antiga prisão eclesiástica na qual, desde 1966, Assis Chateubriand abrigou sua grande coleção de Portinaris, Brennands, Di Cavalcantis e que tais, dando origem ao Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco, o MAC — em reforma eterna e interditado há quase dez anos por problemas de manutenção estrutural.
Para os íntimos, muito íntimos, a rua trata-se apenas da Treze.
Olhando para o céu de azul-soneto da rua, temos a Igreja da Misericórdia na Sé, a colina mais alta de Olinda. Na maior parte do ano, uma silenciosa artéria de moradores onde, nas noites de sexta, alguns boêmios de cerveja na mão acompanham os ensaios da tradicional Orquestra de Frevos Henrique Dias. Um público que muda a cor e humor nos dias oficiais de Carnavais.
Da sexta que antecede a folia até a Quarta-Feira de Cinzas, a Treze ganha o público que lhe dá, mais que corpos, caráter e suores. Tratados pelos termos neutralizados com humor para diluir a carga pejorativa da velha sociedade heteronormativa, elxs: bichas, veados, invertidos, ursos, uranistas, pederastas, entedidos, sodomitas, maricas, ursos, barbbies, pocs, cacuras, frescos e efeminados.
No vocabulário popular pernambucano, está presente também o qualitativo “baitola” — a saber, o substantivo que, segundo o escritor João Silvério Trevisan, usado por populações indígenas do Centro Oeste e do Nordeste do Brasil, os jovens mancebos que se trancavam em ocas chamadas “baitos” nas quais recebiam as iniciações sexuais dos homens mais velhos da etnia. Os baitolas também coagulam aqueles paralelepípedos da cidade construída à imagem e semelhança de Lisboa. Trans e sapas, em menor número, como os padres, negros, indígenas, bichas e mulheres, também fazem ali o Carnaval.
Não é de sempre que os baitolas gritam ao som de “Vassourinhas” ali como se Glória Gaynor fosse passar de mãos dadas com Pabllo Vittar numa das alas do Clube de Fantasias Elefante de Olinda. Lembro dos Carnavais da minha infância na 13 de Maio: nas segundas-feiras, um bloco chamado Os Ensaboados passava por ali. Se chovia, e sempre chovia, os shampoos e sabonetes usados como adereços da brincadeira enchiam a atmosfera de uma espuma que era festa. As coisas mudam.
Italiano e professor da Universidade de Bolonha e grande especialista na historiografia dos costumes no mundo ocidental desde a Idade Média, é Mássimo Montanari quem lembra: “Uma tradição é, no fundo, apenas uma inovação bem sucedida”. Pois bem, nossa querida Treze de Maio tem um ponto de instalação e mutação da sua, digamos, tradição sexualmente libertária.
Abre alas
No ano de 2002, a empresária Maria do Céu Kelner resolvia alugar uma casinha ali para instalar uma sucursal carnavalesca da sua boate Metrópole. Militante de destaque desde a época em que a sigla LGBTQIA+ se espremia no termo GLS, Maria sentia que o público gay precisava de um refúgio mais confortável para balançar o “corpitcho” e roçar os lábios a salvo da moral vigente. “Era uma época em que as pessoas, mesmo quando iam à boate, chegavam cautelosas, meio constrangidas. Máquinas fotográficas eram confiscadas na porta com a mesma atenção que dispensaríamos a uma arma. Por conta do trabalho e da família, muitos gays não podiam ser flagrados ali”.
A versão carnavalesca da Metrópole, clube que há mais de 20 anos é farol da Rua das Ninfas, no centro do vizinho Recife, como polo de concentração gay, durou apenas dois anos. Tempo mais do que suficiente para que gays, lésbicas, transexuais e outros heterodivergentes coagulassem a rua como ponto bunker ao ar livre.
A Treze não se fez sem alguma reação da vizinhança. Os pastores da Batista, única igreja evangélica do Sítio Histórico de Olinda, com seus louvores ecoando na esquina da rua com a Ladeira da Boa Hora, chegaram a gritar nos cultos alguns murmúrios contra a sodomização da rua. Os moradores pediam à prefeitura alguma ordenação contra aquele bando de homens em beijos belicosos em plena luz do dia. “Lembro que chegaram a instalar um praticável com dois policiais na porta da boate, para impedir possíveis excessos”, lembra Maria do Céu. “Mas os policiais eram tão gatos que só fizeram atrair mais gente”, gargalha.
Se antes o Carnaval era o excesso permitido para a liberdade pública de gays, hoje é quase jurisprudencial encontrar dois adolescentes aos beijos nas ladeiras de Olinda. Sem qualquer rufar maior de tambores — embora incidentes homofóbicos tenham sido registrados entre um grupo de turistas no Carnaval de 2017. “A Treze era e é aquele lugar em que nossa liberdade, mais que requerida, era imposta”, diz o catarinense assíduo nos carnavais de Olinda, João Fonseca, médico, 36 aninhos.
Fantasias postas, ali elas ainda abusam dos clichês associados ao homoerotismo: anjinhos, diabos, marinheiros, enfermeiros, bombeiros, travestidos. Os cafuçus, termo corrente na comunidade para designar os rapagotes e mancebos de pouca instrução acadêmica, anêmica disponibilidade financeira e grande disposição hormonal, vão com a roupa de comprar pão mesmo: sungas ou pequenos shorts. A libido, naturalmente, é proporcional ao nível de concentração etílica no ar e ao acúmulo dos dias carnavalescos.
No final do carnaval, a pegação pode ser tanta ao ponto de fazer um turista americano afirmar, sem achar equivalência em português — fato registrado por este escriba — numa Terça-Feira Gorda: “Oh, my God, this is the real ass fair!”.
Bruno Albertim
Olindense, antropólogo e jornalista. Autor da biografia "Tereza Costa Rêgo: uma mulher em três tempos".