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O encontro de ‘bonecas’ organizado por um padre em Caruaru (PE), em 1972

Como imprensa e sociedade reagiram a um congresso de homossexuais organizado há 50 anos por um padre em Caruaru (PE)

Arte: Tomaz Alencar/Agência Diadorim

Esta história é ilógica; tanto que aconteceu de verdade. 

Charge de Cavani Rosas que ilustrava matéria do Diario de Pernambuco, em 1972

Caruaru, julho de 1972. A Igreja Ortodoxa Italiana, uma denominação pouco conhecida no país, chegava ao Agreste pernambucano com a proposta de acolher pessoas marginalizadas pela sociedade, irmãos e irmãs que não seriam bem recebidas em outras igrejas. O ato de acolhimento também soa, aqui, como uma estratégia de negócios: boa parte dos religiosos extermina do convívio e da chance de encontro com o divino os que não seguem as normas vigentes. O novo templo agregaria todo esse contingente de apartados. 

“A primeira ação seria celebrar uma missa para as prostitutas na Rua Almirante Barroso, local do meretrício”, relembra, em outubro de 2015, o blog Direto da Redação, assinado por Paulo Goethe, então editor executivo do Diario de Pernambuco. No seu trabalho de recuperar a memória do jornal “mais antigo em circulação na América Latina”, o jornalista encontrou uma série de notas e reportagens sobre o Congresso de Homossexuais marcado para ocorrer em julho de 1972. 

Três meses antes do evento, no entanto, a confusão já estava formada no noticiário. Em 4 de abril daquele ano, “Antonio Miranda, correspondente do Diario de Pernambuco (na capital do Agreste), trouxe o assunto na página 10 do primeiro caderno, que era destinado aos municípios”, situa Goethe, em seu blog. No título original, “Padre organiza congresso de homossexuais”, o conteúdo ofensivo no corpo do texto era repetido na charge que reforçava estereótipos, assinada por Cavani Rosas. 

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Após a notícia assinada por Antonio Miranda, o  jornal, no dia seguinte, tratou o congresso como assunto do noticiário policial. Um ofício do delegado de costumes, Genivaldo Fonseca, foi encaminhado ao delegado de Caruaru, o coronel Ozíris Ferraz. Era preciso prestar esclarecimentos sobre o encontro, sendo o padre intimado a depor. “Os invertidos deveriam se habituar a viver numa terra onde só os machos têm vez”, foi a fala de Ferraz. 

Um rebuliço em torno da história foi criado. As prostitutas caruaruenses declararam seu apoio ao padre Henrique e, de novo, no dia 7 de abril, a imprensa voltou a falar do evento. A publicidade foi tanta que o religioso acabou na capa da edição no dia 8, quando o juiz da 2ª Vara do município dizia condenar totalmente o 1º Congresso de Homossexuais.

Em 11 e 12 do mesmo mês, mais confusão e, nesta última data, notícia de capa: “Denner [o costureiro famoso pelos programas de TV e revistas de famosos] estará no congresso”. E, no dia 18, mais uma manchete de Polícia, anuncia que o padre estava detido em Vitória de Santo Antão, a 80 quilômetros de Caruaru, enquanto arrecadava dinheiro para a igreja. Foi demovido do projeto do congresso e estava evidente que as autoridades pernambucanas não queriam um padre como ele em “terra de cabra macho”.  

Arte: Tomaz Alencar/Agência Diadorim

O pânico moral na ditadura

Esse instantâneo da época é contextualizado por Luiz Morando, pesquisador mineiro da memória LGBTI+ no Brasil: “Foi um dos primeiros eventos dessa natureza, algo considerado escandaloso e periférico”, comenta. Não seria diferente, portanto, que jornais de grande circulação, pensados e pautados para o código moral da classe média brasileira no início dos anos 1970, apresentassem o tema em termos como “bonecas, deslumbrados ou invertidos”. 

Naquele período, o Brasil vivia o auge da perseguição e dos extermínios da ditadura militar. “Dessa forma, podemos perceber o diferencial do congresso de Caruaru. Ele é proposto e organizado quando um pouco antes, em setembro de 1971, Carlos Lamarca foi morto por agentes do estado”, reflete a pesquisadora Rita de Cássia Colaço Rodrigues, trazendo a perspectiva histórica para esse enredo. 

Em sua tese intitulada “De Daniele a Chrysóstomo — Quando travestis, bonecas e homossexuais entram em cena”, Rita investiga as notícias da época, disponibilizadas no acervo de Luiz Mott, antropólogo e ativista dos direitos LGBTI+. Daniele, no título, era a travesti entrevistada pelo jornal Tribuna da Bahia, em 6 de maio de 1972, quando o congresso de Caruaru já não poderia acontecer. 

Para saber do padre Henrique Monteiro e da Igreja Ortodoxa Italiana, nós buscamos informações na Diocese de Caruaru. O padre Aloísio, que nos atendeu, informou que “os ritos orientais são administrados de forma separada da Igreja Católica, ligada ao Vaticano”. Dois outros pesquisadores na área de religião também disseram nada saber a respeito do Congresso ou da Igreja. “Lamento, não sei nada dessa história”, retornou Gilbraz Aragão, professor-titular e pesquisador em Ciências da Religião e Teologia da Universidade Católica de Pernambuco.  

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Em suas pesquisas sobre memória LGBTI+ no Brasil, Luiz Morando consegue identificar a tentativa de organizar congressos desde 1966. 

“Em Belo Horizonte, naquele ano, surge a Associação dos Libertados do Amor. Assim como o primeiro concurso de miss travesti autorizado pela polícia, também em Minas. Anteriormente, esses eventos já aconteciam, mas de forma clandestina”. Em 1968, ele aponta tentativas de encontros em Petrópolis, João Pessoa e Fortaleza como exemplos de ativismo. “O congresso da Paraíba tinha, inclusive, uma pauta de reivindicações de direitos legais, como casar”, arremata Morando. 

São movimentações que desenham, também, o controle da polícia e das Delegacias de Costumes, no período da ditadura militar. 

É fundamental destacar que outros congressos para abordar o “homossexualismo” — termo que ainda se usava na época —, foram organizados com sucesso. 

“É o caso do 1º Simpósio de Debates sobre o Homossexualismo, ocorrido durante três dias de julho, em Belo Horizonte, e organizado por Edson Nunes”, contextualiza Luiz Morando. Ali, ao contrário, não houve a mesma perseguição pela mídia na capital mineira. “Talvez, por tratar-se de um jornalista, que demonstrava curiosidade pelo tema”, supõe o pesquisador. 

Edson Nunes ainda não tinha saído do armário e assumido a militância homossexual quando organizou o encontro com um viés científico, chamando o psiquiatra Paulo Saraiva, de perfil conservador, para abrir os debates. O evento contou ainda com a presença do endocrinologista Marcos Ferdinando e foi encerrado com uma mesa-redonda composta de um padre católico, um pastor presbiteriano e um espiritualista (que era o próprio Nunes). 

No mesmo ano, 1972, o jornalista mineiro organizou o 2º Simpósio, em São Paulo, e um terceiro, em 1973, também na capital paulista. 

Arte: Tomaz Alencar/Agência Diadorim

Onde andará Daniele?

Parte da memória do Congresso Homossexual de Caruaru só foi possível de ser resgatada graças a Daniele, travesti entrevistada em 1972 pelo jornal Tribuna da Bahia, que cursou comunicação e participou do movimento teatral de Salvador. 

Na entrevista para o jornal baiano — cuja reportagem tratou o congresso de Caruaru e a entrevistada de forma respeitosa —, Daniele teve a oportunidade de mostrar seu conhecimento de textos pouco divulgados no Brasil. Sobretudo, na época da ditadura. 

Ela citou “A Revolta dos homossexuais”, de Norman Winski, “O sexo equívoco”, de Martin Hoffman, além de um dos clássicos de James Baldwin, “O quarto de Giovanni”, sobre a relação afetiva entre dois homens, em Paris. A cidade, aqui, é ponto geográfico e marco de uma liberalidade sexual que Baldwin, gay e negro, não conhecia nos Estados Unidos. 

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Dessa forma, Daniele conseguiu argumentar, com base teórica, sobre a necessidade de um congresso e de espaços de socialização para homossexuais. “Ela articula propostas, em sua fala, que o Movimento LGBT+ só conseguiria sistematizar no Brasil no início do século 21”, observa Rita Colaço Rodrigues. 

Em 2019, após várias tentativas, a historiadora e Daniele, que está no título de sua tese, encontraram-se para uma entrevista em Salvador. O encontro foi marcado pelo também historiador Kleber Simões, que morava no mesmo edifício de Daniele. A gravação ficou comprometida por barulhos, inviabilizando o material. Houve resistência para abordar aquele passado de lutas e mobilizações pela questão identitária. “Ela sempre demonstrou aptidão para organizar grupos e reivindicar direitos. Fez o mesmo quando atuava como maquiadora, tentando formar uma rede de apoio entre os profissionais”, complementa Rita. 

Mas, àquela altura, Daniele cansou-se. A ponto de adotar a identidade masculina e tentar distanciar-se o quanto pode da pessoa que tratamos aqui. “Tornou-se, pelo que percebi, uma pessoa revoltada com a própria história. A sua feminilidade levou a família abastada a procurar um médico”, pontua Rita. Para contextualizar a partir de datas, vale lembrar que a Organização Mundial da Saúde (OMS) só retirou a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) em maio de 1990. 

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