Foto: Timothy Eugene Murphy
memória

Teresina queer: boemia em meio ao acirramento político

Antropólogo estadunidense reflete sobre como os boêmios lidam com o conservadorismo na capital do Piauí

Em julho de 2022, voltei a Teresina após 5 anos desde a última visita. Em menos de uma semana, fui pela segunda vez a um novo bar localizado além do olhar do mainstream, em uma área deserta da cidade. Lugar tão ermo que os seguranças estavam revistando as pessoas na porta devido a um assalto a mão armada ocorrido ali algumas semanas antes. Minha amiga Clau, sua namorada e eu passamos um tempo conversando sobre tudo o que aconteceu durante os cinco anos em que não nos vimos — carreiras em evolução, despertares espirituais, romances, e o fato de termos conseguido passar pela maldita pandemia foram os principais assuntos.

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Em alguns aspectos, o bar era bastante básico — “tem um quintal e um chão de terra vermelha natural”, disseram-me,  e isso é parte do que torna o bar tão bom. Outra amiga disse que é como estar no quintal da casa da sua avó. Mas as inúmeras paredes em ruínas pintadas com murais provocantes e grafites e a alta música eletrônica, assim como o rock, preenchendo o espaço sugeriam o contrário. Básico talvez, mas passear em uma casa acabada que virou bar em uma parte abandonada da cidade, com velhos amigos e alguns rostos familiares trouxe de volta memórias da pesquisa etnográfica que realizei em uma comunidade de boêmios de Teresina, entre  2009 e 2010.

Meus amigos não precisavam apontar que o espaço e as pessoas eram uma espécie de continuação da comunidade boêmia da qual havíamos participado juntos, e que era anterior à maioria de nós. Muitas coisas eram semelhantes — DJs e bandas de rock locais revezando-se para mostrar seus talentos, amigos compartilhando cervejas geladas e cigarros enquanto conversavam e dançavam ao ar livre sob as árvores, vários ambientes diferentes feitos com usos criativos de iluminação e pintura, uma variedade de estilos de roupas e tipos de corpo (embora com um aumento notável de representações fluidas de gênero), e pessoas de todos os gêneros mostrando sinais de afeto umas pelas outras. Além disso, parecia haver uma falta de preocupação em relação a como os outros participantes estavam vestidos, com quem estavam ou o que estavam fazendo. A vibe parecia bastante semelhante às festas e eventos dos quais participei há mais de uma década, quando fiz minha pesquisa — um contraste gritante com a vida cotidiana dentro e ao redor dos shoppings naquela época, em que todos pareciam estar prestando atenção uns nos outros.

Uma descoberta central de minha pesquisa em Teresina, em 2009 e 2010, foi a grande capacidade que as pessoas envolvidas na comunidade boêmia tinham de administrar sua fluidez, flexibilidade e inconformidade, seja em termos de gênero e sexualidade ou de outros aspectos de suas vidas. E como conseguiam conciliar sua participação em uma subcultura boêmia ao mesmo tempo em viviam em uma cidade provinciana, conservadora, onde as pessoas gostam de falar dos outros. Uma das estratégias era manter a comunidade boêmia na clandestinidade, longe dos olhares da sociedade dominante, organizando festas e outros eventos em diferentes locais e áreas da cidade que estavam fora do radar do mainstream — uma estratégia que, a julgar pela localização desse novo bar, parece persistir. Um mecanismo de enfrentamento igualmente importante para os boêmios envolvia atravessar múltiplos contextos profissionais, familiares e sociais e conectar-se autenticamente com pessoas com experiências de vida, visões de mundo e orientações políticas radicalmente diferentes. Alguns antropólogos poderiam chamá-los de “cosmopolitas locais”.

Na época, essa abordagem parecia ser uma questão de sobrevivência da classe média — a capacidade de manter relacionamentos que faziam parte de um certo padrão de qualidade de vida ao qual meus amigos se acostumaram. Seja morando em uma propriedade de um membro da família, tendo acesso ao carro de um parente ou conseguindo um emprego devido a uma conexão familiar, a maioria dos boêmios contava com suas conexões sociais locais não apenas para sobreviver, mas também para ter tempo, energia, e os recursos necessários para participar desta subcultura alternativa. Como suas conexões sociais locais eram compostas por muitos habitantes socialmente conservadores, os boêmios se tornaram hábeis em ajustar ou minimizar algumas partes de si mesmos (por exemplo, expressões de gênero, sexualidade, opiniões políticas) enquanto enfatizavam outras, em uma tentativa de se acomodar aos costumes de uma determinada pessoa ou um contexto social.

Certamente, meu palpite na época era de que essa conduta não era um exemplo de autotraição. Em vez disso, era a forma pela qual muitos boêmios podiam, de fato, ser o mais autênticos possível — conectando-se a pessoas com diferentes visões de mundo ao longo de pontos comuns, trazendo à tona diferentes partes do self e sem perder tempo tentando convencer os outros a pensar de maneira diferente sobre questões sociais. Em vez disso, eles conversavam sobre outras coisas — tópicos que consideravam mais relevantes para essas interações específicas, reservando seu tempo e energia para cultivar um underground boêmio que ajudasse a tornar mais tolerável a vida em Teresina. Para muitos, não valia a pena ser franco no Twitter ou no Instagram. Afinal, eles não precisavam da aprovação do mainstream conservador de Teresina para ajudá-los a se aceitarem plenamente; eles tinham uns aos outros para isso, bem como a internet, e vários amigos distantes com uma mentalidade semelhante.

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Nesse retorno a Teresina, em julho, fui lançar a edição em português da minha etnografia baseada na cidade, intitulada Cosmopolita Queer: Boemia e Belonging em uma Cidade no Meio do Nada”, e o clima político intensamente dividido parecia estar na mente de todos, principalmente porque a eleição presidencial era iminente, mas também porque Lula estava indo para Teresina em questão de dias. A política surgiu nas conversas com quase todo mundo com quem pude me reencontrar e geralmente mais de uma vez. Se o assunto não surgisse, havia um bom motivo para isso: alguns mantinham a boca fechada sobre qual candidato eles apoiavam para presidente a fim de manter seus clientes. No entanto, o que me chamou a atenção foi a quantidade de pessoas que, apesar de terem clientes e familiares próximos que apoiavam o atual presidente, não se desculpavam por apoiar Lula nas redes sociais. Mas por quê? Quais são os fatores subjacentes a essa abordagem diferente de divulgação de opiniões políticas?

Enquanto eu e meu amigo Jorge esperávamos na fila por uma “saideira”, descobrimos que a cerveja e a água haviam acabado — era hora de fechar. Jorge avistou um dos donos do bar e me apresentou a ele. O proprietário recomendou que fôssemos a um bar diferente para um after-party, aonde ele e uma clientela semelhante iriam. Alguns de nós nos amontoamos em um carro para um trajeto de apenas alguns minutos até uma área ainda mais deserta da cidade. Ao chegar, um dos meus amigos anunciou que era ali que ficava o primeiro bar gay de Teresina. Quando abrimos o portão destrancado, entramos e percorremos a casa, passamos por mais murais de cores vivas pintados em quase todas as superfícies, até nos encontrarmos em um amplo estacionamento de cascalho. Foi então que avistei um DJ solitário encostado na parede do outro lado do estacionamento — era Márcio, acenando para mim com seu enorme sorriso inconfundível. Márcio, o criador de uma festa recorrente da época da minha pesquisa, que eu havia visto poucos dias antes no lançamento do meu livro, e que eu vinha tentando combinar de reencontrar, foi mais uma confirmação de que pelo menos alguma versão da comunidade boêmia que estudei há mais de uma década estava viva e bem.

Não tenho dúvidas de que a comunidade mudou significativamente ao longo de tantos anos, mas como exatamente? Enquanto escrevo essas linhas, dos Estados Unidos, mas com o olhar voltado para o Brasil, Lula foi eleito e a esperança está no ar para muitos de meus amigos em Teresina. Embora eu saiba que eles não são ingênuos o suficiente para pensar que Lula vai mudar tudo, não posso deixar de imaginar como serão as coisas para os indivíduos LGBTQIA+ em geral, e para os boêmios de Teresina especificamente. Apesar do fato de que o ex-presidente dos EUA e instigador de discurso de ódio foi derrotado por Biden, um defensor de direitos iguais para pessoas LGBTQIA+, congressistas dos Estados Unidos apresentaram mais de 150 projetos de lei anti-LGBTQIA+ às assembleias estaduais, e as massas empoderadas agora se sentem no direito de expressar seu ódio por pessoas LGBTQIA+. Embora eu reconheça que a política em nossos respectivos países é tão complexa e diferente quanto qualquer outro aspecto da cultura, as dinâmicas de inclusão e exclusão social em nossos países parecem surpreendentemente semelhantes.

Por esta razão, fico pensando: Como essas pessoas em Teresina administram sua orientação queer e sua participação em uma subcultura boêmia ao mesmo tempo em que vivem em tal cidade hoje? Essa subcultura é tão underground quanto antes? E até que ponto os boêmios são transparentes sobre suas opiniões políticas em conversas ao vivo com aqueles que se opõem a eles tanto quanto nas redes sociais? Como compreender que se observe, simultaneamente, um aumento da visibilidade e do discurso sobre grupos subrepresentados e marginalizados, e um crescimento das expressões abertas de racismo, homofobia e transfobia em ambas as nossas sociedades? E até que ponto a falta de educação e exposição à diferença, junto com sentimentos de desorientação social e com a falta de sentimento de pertencimento à própria cidade desempenha um papel nessa questão? E, finalmente, o que as comunidades queer de ambos os países podem aprender com as experiências, as lutas e os ativismos uma da outra diante de ondas tão poderosas de ódio?

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Timothy Eugene Murphy

Antropólogo, professor associado de estudos urbanos da Worcester State University, em Massachusetts, Estados Unidos. Autor do livro "Cosmopolita Queer: Boemia e Belonging em uma cidade no meio do nada" (EDUFPI).

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