Saúde integral e combate a preconceito: pautas LGBTQIA+ nas orientações da 17ª Conferência Nacional de Saúde
Propostas serão votada nos dias 16 e 17 de agosto e, em seguida, encaminhada ao Ministério da Saúde
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) publicou, no dia 20 de julho, a Resolução nº 715/2023, com as orientações para o Plano Nacional de Saúde e o Plano Plurianual de 2024 até 2027. O documento sintetiza as demandas e deliberações da sociedade civil durante a 17ª Conferência Nacional de Saúde. A minuta que oficializa as diretrizes e propostas, que contemplam a população LGBTQIA+, será votada nos dias 16 e 17 de agosto e, em seguida, encaminhada ao Ministério da Saúde.
Durante a conferência, realizada em Brasília entre os dias 2 e 5 de julho, foram debatidas cerca de 2 mil propostas e aprovadas 245 diretrizes. Em reunião do CNS ocorrida entre os dias 19 e 20, essas diretrizes foram resumidas nas 59 orientações constantes da Resolução nº 715.
Um dos destaques da conferência deste ano foi a expressiva participação popular. Mais de dois milhões de pessoas participaram da construção das propostas e diretrizes, desde as etapas municipais e regionais até a realização do evento nacional. O número é quase o dobro da última edição, em 2019.
Conselheira nacional de saúde e integrante da mesa diretora do CNS, Francisca Valda acredita que a participação popular é um dos pontos mais importantes da conferência. “As propostas vêm das bases, das forças sociais, dos grupos da sociedade civil organizada. Elas vieram dessa necessidade da saúde do sistema”.
A população LGBTQIA+ foi citada em cinco das 59 orientações:
- Garantir o modelo de atenção integral a saúde, público, com financiamento adequado à população negra, às mulheres, homens, LGBTQIA+, à pessoa idosa, adolescentes, crianças, pessoas com deficiência, com patologias, doenças crônicas, doenças raras, comunidades e povos tradicionais e população em situação de rua, por meio de ações intra e intersetoriais para promoção, prevenção, reabilitação, considerando as questões geográficas e territoriais.
- Financiar e promover campanha educativa permanente dirigida a pessoas gestoras, trabalhadoras e usuárias do SUS, de acordo com a Política Nacional de Saúde Integral LGBTQIA+ em conformidade com a legislação vigente.
- Estabelecer políticas públicas, intersetoriais e transversais, voltadas para o cuidado humanizado e integral, reconhecendo e atuando na sobreposição de exclusões que incidem sobre as populações vulnerabilizadas, negras, em situação de rua, mulheres, quilombolas, indígenas, LGBTQIA+, populações do campo, das águas e da floresta, população de baixa renda, pessoas com deficiência, pessoas com patologias, pessoas com doenças crônicas, pessoas com doenças raras, pessoas neurodivergentes, pessoas idosas, respeitando as especificidades das suas demandas e o princípio da equidade, em especial aquelas pessoas afetadas pela pandemia.
- Enfrentar o racismo, a intolerância religiosa, o patriarcado, a LGBTfobia, o capacitismo, a aporofobia, a violência aos povos indígenas e todas as formas de violência e aniquilação do/a outro/a.
- Atualizar a Política Nacional de Saúde Integral LGBT para LGBTQIA+ e definir as linhas de cuidado, em todos os ciclos de vida, contemplando os diversos corpos, práticas, existências, as questões de raça, etnia, classe, identidade de gênero, orientação sexual, deficiência, pessoas intersexo, assexuais, pansexuais e não binárias, população em restrição de liberdade, em situação de rua, de forma transversal, e integração da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais; revisão da cartilha de pessoas trans, caderneta de gestante, pré-natal, com foco não binário; com a garantia de acesso e acompanhamento da hormonioterapia em populações de pessoas travestis e transgêneras, pesquisas, atualização dos protocolos e redução da idade de início de hormonização para 14 anos.
Polêmica
Como era de se esperar, a menção à possibilidade de redução da idade de início da hormonização de pessoas trans para 14 anos causou reação negativa dos grupos conservadores. Em 1º de agosto, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) publicou nota de repúdio contra a Resolução nº 715.
No texto, a associação diz que a recomendação “ignora o caráter experimental e os efeitos adversos permanentes sobre a saúde e integridade física de menores absolutamente incapazes”. A orientação, no entanto, prevê expressamente a realização de pesquisas. Estas, por sua vez, só podem ser realizadas se submetidas às normas do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).
Outro ponto provocou polêmica por suposta “violação ao direito fundamental à vida” e contrariar a legislação vigente:
- Garantir a intersetorialidade nas ações de saúde para o combate às desigualdades estruturais e históricas, com a ampliação de políticas sociais e de transferência de renda, com a legalização do aborto e a legalização da maconha no Brasil.
Também não passou despercebido o uso dos termos “pessoas que podem gestar” e “pessoas que menstruam” na orientação de número 45:
- Garantir os direitos sexuais e os direitos reprodutivos das mulheres, meninas e pessoas que podem gestar tendo por base a justiça reprodutiva e atenção à saúde segundo os princípios do SUS, considerando os direitos das pessoas que menstruam e daquelas que estão na menopausa e em transição de gênero, tendo em conta, no sistema de saúde, a equidade, igualdade com interseccionalidade de gênero, raça/etnia, deficiência, lugar social e outras.
De acordo com a nota da Anajure, essas expressões promovem “o apagamento da figura da mulher e a redução de sua essencial corporeidade a uma mera coincidência de funções biológicas”.
O CNS, também em nota, afirmou que a preparação e realização da 17ª Conferência Nacional de Saúde foi um processo democrático iniciado “nos municípios em novembro de 2022, com ampla divulgação, onde cidadãos e cidadãs puderam participar e trazer ao debate os variados temas que resultaram em diretrizes e propostas”.
O CNS e a Conferência Nacional de Saúde
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) é uma instância colegiada, deliberativa e permanente do Sistema Único de Saúde (SUS) que integra a estrutura organizacional do Ministério da Saúde. Criado em 1937, o CNS tem por missão fiscalizar, acompanhar e monitorar as políticas públicas de saúde nas suas mais diferentes áreas, levando as demandas da população ao poder público.
As Conferências Nacionais de Saúde, que ocorrem a cada quatro anos, são organizadas em etapas, que iniciam nos municípios, seguem para as estaduais e avançam para a nacional. Na 17ª Conferência Nacional de Saúde, visando ampliar a participação da sociedade, foram realizadas 99 conferências livres, com variados temas. Nas etapas locais, são eleitas representações (pessoas delegadas) para a etapa seguinte.
Esses eventos proporcionaram transformações históricas para a gestão da saúde no Brasil, com destaque para a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, cujo relatório final serviu de base para a elaboração do capítulo sobre saúde da Constituição Federal de 1988, resultando na criação do SUS.