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Falta de recursos para políticas LGBTI+ expõe precariedade da rede em Pernambuco

Dados do Portal de Transparência revelam execução orçamentária zero para cinco rubricas da área nos anos de 2020 e 2021

Arte: Tomaz Alencar/Diadorim

Esta reportagem é uma parceria da Agência Diadorim com Marco Zero Conteúdo

Julian Olimpio, 23 anos, é um homem trans não-binário. Rafael Silva (nome fictício*), 15 anos, também é um homem transgênero. Eles não se conhecem e estão a mais de 300 quilômetros de distância um do outro. Julian mora em Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife. O adolescente vive em Águas Belas, Agreste de Pernambuco.

O ponto em comum na história dos dois jovens é a violência, seguida da precariedade da assistência do poder público. Tanto Julian quanto Rafael foram vítimas de transfobia e precisaram buscar “atalhos” para enfim ter apoio e o direito à vida garantidos no estado com o maior número de assassinatos de pessoas LGBTI+ em 2020, segundo dados do Fórum de Segurança Pública.

“Chegou ao nosso conhecimento a denúncia de que Rafael estava sofrendo violência por parte de um familiar que até o ameaçou de morte. Entramos em contato com o Centro Estadual de Combate à Homofobia (CECH) e repassamos todos os dados, inclusive, o número do WhatsApp da vítima. Foi aí que fomos informados de que nada poderia ser feito porque o órgão não dispõe de um telefone celular”, conta o presidente do Movimento Leões do Norte, Rildo Veras.

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A partir do episódio, a ONG fez um ofício (veja aqui) cobrando a compra de um smartphone à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, pasta à qual o CECH está vinculado. Ao mesmo tempo, houve uma mobilização com ativistas e outras entidades do terceiro setor para que o jovem fosse atendido pelo município onde reside e assim está acontecendo.

Há poucas semanas, no mesmo período do caso de Rafael, Julian não teve o direito ao nome social respeitado e foi alvo de humilhação, com exposição nas redes sociais. Além da transfobia praticada por terceiros, ele vinha frequentemente sofrendo ameaças dentro do círculo familiar.

Sem saber como chegar ao CECH e pedir ajuda, Julian recorreu ao aplicativo Rugido. A plataforma lançada em janeiro pelo Movimento Leões do Norte permite a denúncia qualificada de violação de direitos contra pessoas LGBTI+.

“Rapidamente recebi um e-mail [da ONG] e o pessoal [do governo] vai retificar meus documentos. Também estou esperando o contato com a psicóloga do órgão, que vai me acompanhar em relação ao que está acontecendo em casa”, conta.

Parlamentares e integrantes do movimento LGBTI+ protestaram em frente à sede do governo de PE

Foto: Yane Mendes/Marco Zero

Porta de entrada de uma rede sucateada

O Centro de Combate à Homofobia foi criado entre 2011 e 2012, potencializado pelas ações do Programa Brasil sem Homofobia do Governo Lula (2003-2010). A ação do Governo Federal à época financiava o antigo Centro de Referência LGBT, sob responsabilidade da ONG Leões do Norte e que viria a se tornar o atual CECH.

Ex-integrantes afirmam que o CECH é a porta de entrada para os serviços públicos voltados à população LGBTI+. O que eles e servidores atuais também concordam é que, em 10 anos de história, o centro, que funciona na sede da Secretaria Executiva de Direitos Humanos, no Recife, nunca foi tão sucateado. Não falta apenas telefone celular, faltam computadores, internet, veículos e até profissionais.

No papel, o CECH deveria funcionar com uma equipe composta por dois profissionais no administrativo, dois advogados, dois psicólogos, um assistente social e uma pessoa na coordenação. A realidade é que são duas advogadas, uma psicóloga e uma assistente social, além da coordenadora, Roseane Morais, que não quis atender a reportagem.

“Antes da pandemia a equipe precisava pedir ajuda ao município onde iria prestar algum serviço ou a outra secretaria parceira para conseguir veículo. Não há apoio com diárias para alimentação, muito menos para hospedagem. Na pandemia, o serviço de formação, por exemplo, passou a ser feito das casas dos profissionais com os equipamentos e a internet deles. Antes e agora eles tiram dinheiro do próprio bolso para trabalhar”, relata uma servidora do governo.

A falta de condições mínimas de trabalho na ponta pode ser aferida também nos números oficiais do governo de Pernambuco. Levantamento feito pela reportagem no Portal da Transparência, com apoio metodológico da Plataforma Justa, revela que nos últimos quatro anos, só em 2019 o CECH recebeu recursos, exatos R$ 21.358 para manutenção e ampliação. Nada em 2018, 2020 e 2021.

A ausência de investimento público também é constatada em pelo menos mais quatro rubricas dos últimos orçamentos anuais, que vão desde ações da política educacional em direitos humanos ao fortalecimento da atenção integral à saúde da população LGBTI+.

Valores para custear as ações e subações voltadas às políticas LGBTI+ até chegam a entrar no planejamento orçamentário do governo, mas ao longo do exercício são cortados. De 2019 a 2021, a “operacionalização e expansão da rede de apoio e atenção à população LGBT”, por exemplo, teve orçados R$ 302.490, mas nenhum desembolso.

A ação de “fortalecimento da política educacional em direitos humanos, diversidade e cidadania”, que em 2018 teve 11% dos quase R$ 365 mil cortados, no ano seguinte, sofreu redução de 88% em cima do R$ 1,1 milhão previsto. Em 2020 e 2021, os cortes foram de 100% para uma verba de mais de R$ 600 mil.

Para a rubrica de “apoio às ações afirmativas para a população LGBT” criada em 2019, o governo Paulo Câmara (PSB) não programou nada para o primeiro ano. Em 2020 e no ano passado, os parcos R$ 6 mil orçados não saíram do papel. Já para o “fortalecimento da atenção integral à saúde da população LGBT” os cortes em 2018 e 2019 foram, respectivamente, de 100% e 28%. A partir de 2020 a rubrica deixou de existir no orçamento oficial.

Confira os dados apurados pela reportagem:

Enquanto os recursos eram cortados do orçamento, a violência contra a população LGBTI+ em Pernambuco crescia. Os homicídios saltaram de 33 para 39 na comparação de 2018 com 2020, os estupros passaram de 22 para 47 e o registro de lesões corporais aumentou de 265 para 604, culminando em julho deste ano com uma “onda de ataques transfóbicos” no estado.

“Não adianta ter um organograma bonito, com vários equipamentos no papel e está tudo praticamente parado. Os órgãos existem, mas não têm recursos. Quando vem à tona uma sequência de transfeminicídios anunciam a criação de mais um comitê, mas se já tem tanta coisa porque não investir no que temos? É uma vergonha”, analisa Rildo Veras.

O presidente do Movimento Leões do Norte estende a crítica à Coordenadoria LGBT, que, segundo ele, “vive fazendo escutas, mas de concreto não sai nada”. A alternativa tem sido o terceiro setor suprir a ausência ou a presença deficiente do estado, sobretudo no interior.

“Essa falta de recursos para as políticas públicas voltadas às pessoas LGBTI+ não é por acaso, é proposital. Esse sufocamento está acontecendo por causa da bancada conservadora da Assembleia Legislativa de Pernambuco, que persegue qualquer projeto de lei ou recursos para políticas LGBTs com o discurso de que são privilégios, quando na verdade são uma forma de equiparar os nossos direitos com os dos demais cidadãos”, diz Veras.

O Ministério Público, por meio da 7ª Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos da Capital, instaurou procedimento administrativo para acompanhar e fiscalizar, de forma continuada, a atuação do CECH.

Enquanto isso, o Conselho Estadual dos Direitos da População LGBT de Pernambuco, responsável pela fiscalização do governo, também sofre com a escassez de recursos e a falta de prioridade. Nas palavras da representante da Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais de Pernambuco (Amotrans-PE), Daniela Mendonça, o órgão, também de caráter consultivo e deliberativo, “está de mãos atadas”.

A conselheira explica que os equipamentos de serviços públicos para as pessoas LGBTI+ estão contemplados no chamado Plano Estadual de Promoção dos Direitos da População LGBT 2019-2021. “O governo, que tem a obrigação, não executou nada do plano e por isso eu acho que é co-responsável nessas violações diárias. Se tivesse seguido, teríamos uma situação bem diferente da que vivemos hoje, mas claro que tendo também recurso, senão não adianta de nada”, afirma.

O Ministério Público instaurou um procedimento administrativo para monitorar o processo de fiscalização do Conselho à execução de tudo que preconiza o Plano e um inquérito civil que investiga o funcionamento do próprio Conselho.

“Estamos finalizando o novo plano estadual para o período de 2021 a 2023, é praticamente a cópia do atual que vamos cobrar para que o estado execute”, diz Daniela.

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Na avaliação do professor de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Gustavo Gomes da Costa, a realidade da “política LGBT” do estado não é um fato isolado e, portanto, precisa ser analisada de maneira mais ampla. Por um lado, assinala o professor, o sucateamento da área, nacionalmente, começou “após o golpe parlamentar” contra a então presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016, quando foram interrompidos os investimentos para as ações. Por outro lado, há o problema crônico da falta de institucionalização.

“Não existe nenhum amparo legal para as políticas LGBT, isso faz com que boa parte precise ser custeada por decretos, isso se deve muito à oposição dos setores religiosos nas câmaras municipais e assembleias legislativas. É também por causa disso que não encontramos a dotação orçamentária. É uma estratégia para evitar o ataque desses setores às ações para a população LGBTI+”, explica.

Ainda segundo o pesquisador, a ausência de uma dotação orçamentária específica acaba deixando equipamentos como o CECH “nas mãos de um secretário” e o resultado disso em muitos estados é o fechamento dos serviços.

“Ter mantido os equipamentos já é um grande desafio, mas, por outro lado, de que adianta ter um serviço disponível para a população LGBT se não são dadas condições de ação? Com o conservadorismo de Bolsonaro reverberando nos municípios e estados, o cenário pode piorar, por isso, é importante que nos mantenhamos mobilizados”, argumenta.

Integrantes Amotrans-PE dizem que o governo não executou nada do Plano Estadual de Promoção dos Direitos da População LGBT 2019-2021.

Foto: Divulgação

Governo minimiza precariedade

A reportagem tentou conversar com o secretário executivo de assistência social de Pernambuco, Joelson Rodrigues, vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude (SDSCJ). Por WhatsApp, ele sugeriu que a entrevista fosse com a secretária executiva de segmentos sociais, Marília Bezerra.

A secretária não quis dar entrevista. Por meio de nota, a representante do governo não respondeu o porquê dos cortes nos orçamentos destinados às políticas públicas dos cidadãos e cidadãs LGBTI+. Minimizando a falta de recursos na lei orçamentária anual dos últimos quatro anos, diz que se trata de um instrumento “dinâmico e pode ser ajustado conforme as necessidades”.

“De forma intersetorial e com diálogo com as gestões municipais, o estado tem atuado para fortalecer o segmento LGBTI+ através da construção de ações informativas e de conscientização destinadas à população, da promoção de projetos de capacitação para as pessoas do segmento e da prevenção de casos de violências contra os indivíduos da comunidade”, diz.

Sem revelar o segredo de como se faz políticas públicas sem recursos, a nota informa que o CECH segue atuando “intensamente” em parceria com “a rede LGBTI+, outras secretarias estaduais e os municípios”, prestando “serviços e atendimentos humanizados”.

O texto reconhece a redução do orçamento destinado às políticas de educação inclusiva e direitos humanos na Secretaria de Educação e Esportes. No entanto, sem explicar exatamente como, a Secretaria Executiva de Segmentos Sociais garante que não houve impacto nas ações de formação de educadores nem em projetos para os estudantes.

A nota pontua, ainda, que a Secretaria de Saúde “tem garantido ações permanentes e que contemplam atividades de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde do segmento LGBT”.

Por fim, o texto destaca que teria sido instituído o “Comitê de Prevenção e Enfrentamento da Violência LGBTfóbica” com o intuito de estruturar as ações de enfrentamento a essas violações. Nele, estão reunidas pelo menos cinco secretarias que trabalham “de forma integrada para capacitar, assessorar e mobilizar em articulação com os municípios, a prevenção, o acolhimento às vítimas e punição aos agressores”.

*Nome alterado para preservar a identidade da fonte

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