A secretária Nacional dos Direitos da População LGBTQIA+, Symmy Larrat
Symmy Larrat. Foto: Clarice Castro/MDHC
política

‘Estamos reconstruindo tudo’, diz Symmy Larrat, secretária Nacional dos Direitos LGBTQIA+

Larrat faz um balanço dos primeiros meses de atuação do governo Lula a população LGBTQIA+

A jornalista e ativista travesti Symmy Larrat, 45, ocupa, desde janeiro de 2023, um cargo inédito no governo brasileiro: é a primeira secretária Nacional dos Direitos da População LGBTQIA+ do país, ligada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.

Ex-presidente da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos) e militante do PT, ela foi candidata ao cargo de deputada federal por São Paulo em 2022, conquistando 5.400 votos. No início do ano, recebeu o convite do ministro Silvio Almeida para assumir o cargo no segundo escalão do governo federal, se tornando a primeira travesti nesse núcleo.

Nos 100 primeiros dias de atuação à frente da área, Larrat integrou a comitiva brasileira no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, e assinou a recriação do Conselho Nacional LGBTQIA+ – uma de suas promessas assim que assumiu o cargo.

“Hoje o problema tem sido o desmonte [deixado pelo governo Bolsonaro]”, afirma a secretária. “Chegamos aqui e vimos que eles limparam a gente de tudo, tiraram a gente da política. Então a gente está tendo que recompor tudo: as alianças, as parcerias, os diálogos interseccionais. Além disso, a gente está tendo que construir a burocracia.”

Em entrevista à Diadorim, Symmy Larrat faz um balanço dos primeiros meses de atuação do governo Lula em relação às políticas para a população LGBTQIA+ e comenta os desafios que tem adiante. Também faz duras críticas à crescente LGBTfobia no Congresso Nacional, citando o recente discurso transfóbico de uma deputado federal mineiro durante sessão em homenagem ao Dia Internacional da Mulher.

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AGÊNCIA DIADORIM – O que a senhora considera as principais conquistas e principais obstáculos da sua gestão à frente da Secretaria Nacional dos Direitos da População LGBTQIA+, nesses 100 dias de governo?
SYMMY LARRAT –
Bom, eu acho que é muito cedo para a gente falar de conquistas. Até porque eu tenho uma preocupação que é: Como a gente vai vencer a simbologia? Como é que a gente vai vencer a subjetividade? Eu acho que isso é muito importante, mas a gente precisa superar isso. Então como é que a gente supera isso? É realmente introjetando um debate na pauta. Primeiro, me surpreendeu positivamente a postura que o Ministério teve sobre a Secretaria. A gente foi para Genebra com o ministro [Silvio Almeia], a gente participou das agendas internacionais, como uma nítida intenção de visibilidade da nossa pauta. De dizer: ‘Olha, nós estamos de volta e nós vamos tocar sobre os temas mais duros, que foram mais perseguidos’. Então há um processo nítido de reparação, há um sentimento de reparação no Ministério dos Direitos Humanos. Isso eu vi com muita positividade.

Mas não estamos livres de questões internas que a gente venha a enfrentar no futuro. Mas hoje o problema tem sido o desmonte [deixado pelo governo Bolsonaro]. A gente chegou aqui e viu que eles limparam a gente de tudo. Eles tiraram a gente da política. Então a gente está tendo que recompor tudo. De recompor as alianças, de recompor as parcerias, os diálogos interseccionais. Além disso, a gente está tendo que construir a burocracia.

Então a gente tá tendo que fazer política e tendo que construir a burocracia frente ao desmonte completo. Às vezes as pessoas até querem tocar as coisas conosco e a gente não consegue dar uma resposta porque não temos aquele caminho na burocracia. Mas isso, com felicidade, eu posso dizer que a gente está conseguindo cumprir nos 100 dias. A gente espera ter o mínimo de uma secretaria legal e bacana, nesse sentido, para dar continuidade ao que nós já começamos a fazer, que é a articulação política.

DIADORIM – Uma reportagem recente da Diadorim mostrou as dificuldades de homens trans no acesso ao Deposteron, que aumentou muito, e falhas do próprio funcionamento dessa distribuição do medicamento no SUS. Além disso, há as longas filas do processo de transexualização. Como é que o governo pretende lidar com essa situação?
LARRAT –
Na verdade, isso a gente precisa trocar com o Ministério da Saúde. Eu recebi também essas demandas. Nós estamos tentando uma articulação da DPU (Defensoria Pública da União) com esses movimentos sociais, para que a gente consiga providenciar a celeridade dessas denúncias que chegaram a nós.

A gente levantou, por área – aqui não só saúde, mas todas as áreas –, os pontos nevrálgicos que nós queremos tocar com cada área. Isso é algo que está no nosso radar para a gente lidar com o Ministério da Saúde. A gente ainda não estabeleceu agenda com o Ministério da Saúde, porque tinha algumas áreas-chave que a gente precisava que fossem estabelecidas no Ministério. A gente sabe que existem ministérios que ainda estão em composição, para a gente tocar e promover as interseccionalidades. Porque isso não cabe só a nós. Se coubesse só a nós, a gente já teria encaminhado, mas a gente sinalizou isso como uma das pautas para a gente trabalhar com a Saúde.

Aí eu acho que a gente tem que entender primeiro como é que tá o sistema [público de saúde], porque tem uma questão que é: onde o processo transexualizador está na estrutura? Será que esse lugar permite a ampliação desse financiamento? A gente precisa saber.

E tem outras sugestões que os próprios movimentos nos deram, que é de como facilitar a questão do cadastro desse hormônio, que não está no cadastro dos hormônios que podem ser comprados pelo próprio sistema único de saúde. Isso tudo a gente levantou com muita escuta dos movimentos sociais para a gente poder lidar nas tratativas com os ministérios.

DIADORIM – Qual a previsão para implementar o Conselho Nacional LGBTQIA+?
LARRAT –
Eu queria que a gente começasse em maio, dia 17, que é muito emblemático. É meu sonho e minha vontade que em 17 de maio a gente ponha isso tudo pra funcionar.

DIADORIM – O novo RG é um assunto que vem sendo discutido e criticado, principalmente, nas organizações dos movimentos LGBTQIA+, por ter caráter antitrans. Até o Ministério Público Federal chegou a se posicionar sobre o documento. Essa questão já foi equacionada? Como o governo pretende lidar com isso?
LARRAT –
Também já fizemos as alterações necessárias, minutas de decreto e enviamos para a Casa Civil. Porque é o seguinte: o decreto do RG é assinado por vários ministérios. Envolve Saúde, envolve Segurança Pública, então também tá nessa consulta. Da nossa parte, a gente caminhou tudo que a gente podia encaminhar, e a gente está esperando essas consultas acontecerem para a gente implementar. A opinião do Ministério dos Direitos Humanos sobre o RG é de que só tem que entrar o nome social e não tem que entrar “sexo”.

DIADORIM – Recentemente, um deputado federal usou a tribuna do Congresso para fazer declarações transfóbicas e espalhar desinformação. O que você considera que deve ser uma estratégia de ação para não cair nessa armadilha de dar palco a essas pessoas e quais as ações que o Governo está planejando para enfrentar essa onda antitrans que tá no Congresso, nas assembleias estaduais e enraizada na própria sociedade?
LARRAT –
É uma dificuldade, né, gente? Eu tenho dito isso há muito tempo. A gente precisa compartilhar o crime, e não a postagem. Quando a pessoa vê só o vídeo pelo vídeo, acabou. Se a gente quer compartilhar, tem que dizer que é crime! Aquilo é um crime. Eu acho que alguém devia ter dado voz de prisão para ele. Alguém devia ter dado voz de prisão no momento em que ele estava falando. Porque é um absurdo ele falar o que falou, aquilo não é uma brincadeira. E não é dizer que homens vão colocar peruca e vão entrar no banheiro; ele não estava só falando isso.

Se ele falasse “eu tenho preocupação sobre a possibilidade de homens usarem o direito de pessoas trans e se aproveitarem disso para fazer violência”, é uma preocupação. Ele trazer isso para o lúdico e transformar isso numa galhofa, isso tem nome: é transfobia recreativa. Então não tem outra justificativa. Alguém devia ter identificado e dado voz de prisão para ele naquele momento.

Agora eu acho que se a gente vai compartilhar, a gente tem que compartilhar como crime. O que nós fizemos, na área, foi elaborar uma nota técnica do ministro, orientando a postura do governo e de demais entes em casos de crimes de transfobia. Então a gente faz uma análise sobre o acontecido e aponta caminhos, dentre eles o de regular as mídias sociais.

A gente precisa ter um nível de diálogo para as redes sociais porque é impossível que o discurso de ódio gere renda neste país, que o discurso de ódio promova esses acessos ao poder legislativo. A gente conversou inclusive com a [deputada federal] Duda Salabert (PDT-MG), para a gente, através dela, dialogar. Acho que o STF tem que investigar, a Polícia Federal também. Todo mundo que for cabível tem que investigar isso, e a própria Casa. Porque não dá mais pra aplicar apenas uma penalidade, porque assim a gente está sendo conivente com certo tipo de postura que pra mim é inadmissível.

DIADORIM – A senhora acha que as pautas LGBTs deveriam ganhar mais espaços dentro do Ministério e do governo?
SYMMY –
Eu vou te falar uma frase que eu acho que dá para a gente usar: nós ganhamos o governo, nós não ganhamos licitações. A gente não ganhou todas as licitações. Mas vamos lá… Mas a gente já tá aqui levantando o que a gente acha que tem que configurar. Até porque se a gente chegou e não tem nada, eu preciso levantar o que a gente tem pra gente poder aparecer. Eu posso te dizer que, nas redes sociais do Ministério, a gente configura mais. Então não é uma questão da postura da equipe, né? Eu acredito que, depois do Ministro, quem dá mais entrevista aqui sou. Há um interesse de visibilizar as pautas no Ministério de Direitos Humanos. Agora eu entendo com muita tranquilidade que a gente quer ver essa cara mudar com muita urgência. A gente não quer mais ver aquele formato [do governo Bolsonaro].

Mas nós estamos também elaborando esse processo. Agora eu confesso a vocês que a burocracia tem consumido a gente. Houve mudanças aqui em que eles [o governo Bolsonaro] fizeram estratégias burocráticas para engessar certos caminhos, então precisamos também vencer essas burocracias. Eu não posso chegar no meio do ano e ficar falando que a burocracia está nos impedindo, mas eu acho que a gente precisa vencer certas burocracias para poder dar maior celeridade nas respostas políticas. Então a gente também tá nesse nesse momento de transição, construindo os caminhos burocráticos para dar respostas políticas mais céleres, então eu acredito que quando essas respostas começaram a vir, a gente vem em cataratas. Mas nós temos a opinião de que, uma opinião conjunta do Mistério, de que nós precisamos avançar no visual da comunicação e nas estratégias de comunicação.

DIADORIM – Como a senhora enxerga a nova cara internacional do Brasil?
LARRAT –
A gente chegou e já teve sessão da ONU. Isso foi bom porque a gente chegou dialogando com todos os países. Em todas as conversas do ministro [Silvio Almeida], eu estava do lado. Pode parecer pouca coisa, porque quando um ministro fala com outro ministro, só eles falam, mas quando chega uma figura assim, como eu, com essa saia do arco-íris, aí não tem como, né? Aí a simbologia, ela é necessária. Porque nas relações diplomáticas, a simbologia é tudo.

Foi muito importante, nesses primeiros momentos, o Brasil dar o recado de que a gente não vai fazer perseguição das pessoas e que esse é o governo que vai tocar em todas as pautas, em todas as feridas. Eu percebi que os países ansiavam por uma postura nossa. Por onde passamos, nessas agendas, a gente foi muito bem recepcionado, quase como um alívio. Porque nas relações diplomáticas, você pode pensar diferente, o que você não pode é partir para esse cenário do absurdo, essa narrativa do absurdo que o governo anterior usava e que não é bem vista internacionalmente. A gente chegar e dizer: “Olha, voltamos, vamos falar sobre todos esses assuntos e temos uma Secretaria Nacional LGBTQIA+; isso não é algo que vai ser ignorado por nós e nós nos posicionamos a favor das pautas de identidade de gênero e de outras composições familiares”. Então isso é um negócio que joga para cima.

Eu fico muito feliz de poder ter participado desse processo e ter estado nesse momento histórico. Agora nós dissemos isso para o mundo. E o que nós vamos fazer em nossos bastidores? Essa correria e essa ansiedade tem nos movido para a gente superar o desmonte, passar por cima da terra arrasada e construir o alicerce para começar a fazer muita política. Para vocês terem ideia, a gente é uma secretaria nova, a gente não tinha nem espaço físico determinado. O espaço físico que comportava a área LGBTQIA+ não cabia a gente, não cabe uma Secretaria Nacional, então até isso a gente teve que movimentar. Mas a equipe do Silvio é uma equipe que tem dado respostas para a gente; a gente tem comprado as brigas que a gente quer, que a gente precisa. Institucional, administrativamente e politicamente.

DIADORIM – Uma demanda urgente da população LGBTQIA+ brasileira é a política de acolhimento dessas pessoas, a criação de casas de acolhimento. Isso está dentro do seu planejamento de atuação na Secretaria? Como pensar e fortalecer política de centros, de casas de acolhimento nos estados?
LARRAT —
Eu sou defensora de que nós temos que ter uma política específica. O abandono familiar tem que ser encarado como algo a ser enfrentado com respostas de abrigamento também. Não só, mas também. Então eu sou defensora de que a gente tenha investimento, no Ministério dos Direitos Humanos, para casas de abrigo LGBTQIA+. Como é que a gente faz isso? Se eu só disser que é importante, não vai resolver. Você tem que ter uma política estabelecida. Por isso, a gente tem duas disputas este ano muito importantes: a gente tem que inserir isso no PPA (Plano Plurianual) e construir a política nacional. Política nacional a gente não constrói em seis meses.

Eu não posso chegar aqui e falar assim: “Olha, a partir de agora tem políticas de abrigamento no Brasil”. Eu não posso porque eu vou ser questionada, porque isso é da área da assistência social, tem que justificar o porquê.

E a gente precisa construir. Estamos montando uma estratégia para que a gente faça um amplo período de escuta e elaboração dessa política já esse ano. E a gente vai contar muito com a parceria política, militante e acadêmica para entregar uma minuta dessa política.

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