‘Vivo uma objetificação por ser mulher, bissexual e amarela’, diz Ana Hikari
Primeira protagonista amarela na TV Globo, atriz critica a falta de diversidade no audiovisual, fala sobre arte, política e eleição de mulheres e negros
Ser submissa como as gueixas que ocupam o imaginário social não parece ser a vocação da paulistana Ana Hikari Takenaka Rosa. Aos 27 anos, a primeira atriz amarela a protagonizar uma novela da TV Globo utiliza suas redes sociais para levantar a voz contra o racismo e se posicionar sobre diversos assuntos — entre eles, o fato de ser bissexual.
Ana Hikari se projetou nacionalmente interpretando a personagem Tina na premiada temporada de “Malhação: Viva a Diferença”. Mais recentemente, viveu Vanda de “Quanto Mais Vida, Melhor!” e atualmente está gravando a sequência da série “As Five”, spin-off da novela juvenil produzido para o Globoplay.
Política não é tabu para a atriz, que já declarou seu voto no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e com frequência amplifica discussões sobre as mazelas sociais para seus 1,3 milhão de seguidores no Instagram. Ela não poupou nem mesmo a emissora em que trabalha ao se juntar ao coro de críticas por um episódio recente de “yellowface” nas gravações da novela “Cara e Coragem”.
Em 2020, Ana integrou uma lista da revista Forbes que destaca jovens que fazem a diferença. Em entrevista à Diadorim, ela dá pistas sobre os motivos que a fizeram a chegar lá: cobra respeito à sua bissexualidade, critica a falta de diversidade nas produções audiovisuais brasileiras, defende que a arte é política e reivindica mais pessoas trans, mulheres e negros em cargos eletivos.
As atrizes Daphne Bozaski, Ana Hikari, Heslaine Vieira, Manoela Aliperti e Gabriela Medvedovski, protagonistas de ‘As Five’
Foto: Estevam Avellar/GloboAGÊNCIA DIADORIM — Em uma live em julho de 2020, você gerou uma grande repercussão ao falar abertamente sobre ser bissexual. Por que você decidiu compartilhar essa informação com o público?
ANA HIKARI — Na real, eu nunca deixei de falar sobre minha sexualidade. O que aconteceu foi que rolou essa live com uma pessoa que tem muita visibilidade dentro do meio LGBTQIA+, e aí criou-se um bafafá em cima disso. Mas quem me acompanha já sabia. Eu já tinha falado sobre ser bi no Twitter, no Instagram. Tipo, nunca tinha escondido. Só que saíram tantas matérias sobre isso que pareceu que eu tinha saído do armário naquele momento.
DIADORIM — Como foi a reação do público? Ela te surpreendeu de alguma forma?
ANA — A recepção do público foi absolutamente positiva porque acho que as coisas felizmente melhoraram muito para a nossa comunidade. Teve o impacto de perceber o quanto as pessoas sentiam falta dessa representatividade, de figuras públicas falando abertamente sobre a bissexualidade em específico. As pessoas querem debater esse tipo de assunto, até porque a bissexualidade é muito invisibilizada. Quando as pessoas viram mais uma pessoa pública disposta a falar abertamente sobre isso, elas clamaram por essa visibilidade, sabe? Porque quanto mais pessoas falando sobre isso, mais a gente vai normalizar uma coisa que é natural, que é normal.
DIADORIM — Você já relatou em outros momentos que nunca sentiu a necessidade de parar para informar seus pais sobre você ser bi. Por quê?
ANA — Porque sempre pensei que, se eu fosse hétero, não ia sentar com os meus pais e falar “papai, mamãe, preciso conversar com vocês, eu sou heterossexual”. Então por que eu ia fazer isso sendo bissexual? Nunca fiz, nunca tive vontade de fazer e sempre tratei isso com muita naturalidade. Chegava com a pessoa que eu estava ficando, apresentava e era isso.
Sei que é um privilégio porque tem muita gente que passa pela situação de estar em famílias que não aceitam a sexualidade. Felizmente não vivi isso e, pelo contrário, sempre tive meus pais muito abertos, dando autonomia para viver a minha vida e explorar minha sexualidade com liberdade. Sempre tive um diálogo muito aberto em relação a isso.
DIADORIM — Você declarou em entrevistas anteriores já ter vivido um sentimento de não-pertencimento na comunidade LGBTI+ por ser bi. Esse sentimento permanece?
ANA — Eu lembro de uma situação específica que foi no período da faculdade. A gente fundou o coletivo feminista na ECA [Escola de Comunicações e Artes da USP] e logo em seguida foi fundado o coletivo LGBT. E aí eu lembro de ter vontade de ir e acompanhar as reuniões. Perguntei para um amigo como era, os dias que eles tinham reunião. Lembro de ele responder: “Amiga, a gente tem reunião tal dia, mas quando tiver uma reunião aberta a gente te chama”. Na época, ele estava dizendo que eu não pertencia ao coletivo, e eu não tinha o que dizer, porque não tinha nem vocabulário para argumentar. Simplesmente aceitei e segui minha vida só no coletivo feminista.
Depois de um tempo, entendi que fazia parte disso e que as coisas que sentia eram sobre pertencer à comunidade LGBT. E aí eu entendi que era bissexual. Mas demorou um tempo, viu? Sabia que tinha vontade de ficar com todos os gêneros, mas eu não sabia o nome que isso tinha.
Acho que hoje me sinto mais à vontade. Eu me sinto tranquila de falar publicamente sobre isso, de me relacionar com as pessoas que me apaixono, que me interesso. Mas ainda sinto que rola uma invisibilidade. Porque tem os estereótipos, as pessoas acham que existe “cara de bi”, “cara de lésbica” e nenhuma delas nunca é minha cara.
Não adianta sair em matéria, em tudo quanto é site. Ainda vai ter gente que vai olhar para mim vai falar: “Hétero”. Brinco que o único momento que tive a minha visibilidade bissexual reconhecida mesmo foi quando tive um sidecut [corte de cabelo na lateral]. Aí as pessoas falavam “Hum, talvez seja bi” (risos).
DIADORIM — Como equacionar esse problema da invisibilização de algumas letras dentro da sigla?
ANA — O que eu posso dizer é que, enquanto mulher cis e bissexual, meu exercício é o de ter a escuta sobre as outras letras de que não faço parte. Acho que isso deveria ser um exercício de todos. Faço um esforço muito grande de ler, buscar literatura, referências, artigos, pessoas para seguir na internet que falem, por exemplo, sobre as questões trans. Porque eu, como mulher cis, não tenho — e nunca vou ter — conhecimento suficiente sobre isso. Apoiar mesmo, com grana, com o que puder, acho que esse é um movimento que todo mundo dentro da comunidade deveria ter com as outras letras de que não faz parte.
DIADORIM — De que forma raça e orientação sexual se relacionam na sua vivência? Ser uma pessoa amarela interfere de alguma forma na sua experiência enquanto bissexual ou vice-versa?
ANA — Interfere muito porque só por ser mulher a gente já vive um tipo de objetificação. Por ser uma mulher bissexual, principalmente quando estou me relacionando com outras mulheres, a gente vive mais um tipo de objetificação. E aí ser mulher, bissexual e racializada é uma soma, porque os corpos que não são brancos vivem uma hipersexualização.
Existe uma hipersexualização racial no imaginário coletivo que coloca principalmente mulheres amarelas como um objeto de desejo sexual, de submissão. Tem uma série de estereótipos que são agregados à figura de uma mulher asiática. E isso vai se somando às nossas vivências como mulher bissexual. É isso que vivo no meu dia a dia, receber comentários sobre a minha sexualidade relacionando à minha raça. Isso acontece e muito, infelizmente.
DIADORIM — No início do mês, você fez críticas públicas à TV Globo por escalar atores brancos para se “fantasiarem” de asiáticos, prática conhecida como “yellowface”, em uma cena da novela Cara e Coragem. Depois de uma mobilização nas redes sociais, a cena foi cortada às pressas. Você não teve receio de que essa crítica pudesse prejudicar sua carreira?
ANA — Primeiro de tudo, acho muito importante ressaltar que a cena foi cortada porque as pessoas se mobilizaram e foram em peso comentar em todas as redes sociais da Globo que aquilo era um absurdo, completamente ofensivo e racista. Digo isso porque saíram muitas matérias relacionando a minha postagem à retirada da cena do ar. E parece que eu fui a heroína da parada e fiz a grande diferença do mundo, mas não. Eu não sou nenhuma heroína, sabe? Isso foi resultado de uma grande mobilização, de uma grande insatisfação legítima de que aquilo que estava acontecendo era mais uma expressão racista dentro de uma emissora que está se dispondo a não ser mais racista.
Eu não sou a única figura pública que está falando sobre ser amarela. A gente tem vários atores e atrizes que falam sobre isso, como a Bruna Aiiso e a Jacqueline Sato, por exemplo. A Bruna Tukamoto tem uma página super bacana na internet. O Leo Hwan, que é um cara que me ensinou muito, inclusive.
Dito isso, posso te dizer que a empresa onde trabalho e também a qual represento está abrindo um diálogo muito grande em relação a essas questões raciais. Esse diálogo está sendo construído com os funcionários. Eu, enquanto funcionária, fui convidada pela própria Globo para falar internamente sobre essas novas políticas, sobre essa nova maneira de a Globo se apresentar. A gente está em 2022. A Globo, se não correr atrás disso, vai ficar para trás — e ela tem consciência disso. E é por isso que a política interna da Globo é de debater essas questões e de retirar mesmo qualquer conteúdo que tenha cunho racista, homofóbico, transfóbico e assim por diante.
É por isso que eu tive coragem de postar publicamente. Porque a minha postagem é a minha conduta dentro da empresa, e é uma conduta que é aceita pela empresa. Tanto é aceita que a cena foi retirada do ar. Então essa é a minha tranquilidade.
Ana Hikari, 27
Foto: DivulgaçãoDIADORIM — Você foi a primeira mulher amarela a protagonizar uma novela da TV Globo, em 2017, e por ora segue sendo a única, cinco anos depois. Apesar das discussões constantes sobre representatividade, ainda há uma discrepância gigantesca entre a população brasileira e os rostos que vemos na TV. O que é possível fazer para mudar esse cenário?
ANA — Que desespero ouvir isso, sério. Acho que não tinha me dado conta. Quando você fala que eu fui a primeira, dá a sensação de que vem outras aí. Só que já tem cinco anos e não veio nenhuma. É um absurdo, gente. Já tem cinco anos que eu fui a primeira protagonista asiática e em 60 anos de Globo não tem uma protagonista indígena.
Acho que isso é uma falta de coerência com o que é o nosso país. O contexto do audiovisual fora do Brasil já entendeu que isso é necessário. A gente está falando, por exemplo, de super-heróis da Marvel com absoluta representatividade. A gente vê protagonismo amarelo em vários filmes, várias séries nos últimos cinco anos, desde que fui a primeira protagonista da Malhação.
Ainda falta caminhar muito nesse sentido e é urgente. As pessoas já estão começando a entender que a gente realmente não vive no mito da democracia racial que tentaram pregar no nosso país. A gente vive em um país que é muito racista e precisa começar a questionar isso. E isso não vai acontecer se todos os protagonistas de todas as produções audiovisuais continuarem sendo brancos.
DIADORIM — Apesar de também serem racializadas, pessoas amarelas têm uma série de privilégios em relação a outros grupos. Qual é o nosso papel na luta contra o racismo direcionado a negros e indígenas?
ANA — Acredito que compreender a sua identidade enquanto pessoa amarela é entender que a gente não faz parte da branquitude e não pode servir de ferramenta de opressão dessa branquitude. Porque é isso que a gente faz, serve de massa de manobra para oprimir outros grupos.
A gente conhece uma grande figura pública [o presidente Jair Bolsonaro (PL)] que já falou isso publicamente: “Ah, você já viu um mendigo japonês? Nunca viu. Porque eles batalharam, conquistaram as coisas e não ficaram pobres”. Isso é o maior exemplo de como o discurso de meritocracia relacionado à racialização pode ser utilizado como ferramenta de opressão de pessoas amarelas contra pessoas negras, por exemplo.
E isso é uma mentira, é uma falácia. A gente teve oportunidades diferentes de trabalho quando chegou aqui. Claro, em condições muito precárias muitas vezes, mas recebendo o mínimo — que já era o suficiente para ser diferenciado de um grupo de pessoas negras daquela época, logo após o fim da escravidão.
É muito diferente o que a gente viveu e o que pessoas negras viveram, mas a gente precisa entender que tem muito mais semelhanças entre nós do que com um grupo de pessoas brancas. Reconhecer a nossa identidade é reconhecer que somos melhores enquanto aliados para esses grupos não brancos do que a serviço da branquitude.
Ana Hikari
Foto: DivulgaçãoDIADORIM — Em 2020 você integrou a lista Under 30 da revista Forbes, que destaca jovens que fazem a diferença. A que você atribui esse título?
ANA — Talvez por ter crescido em um ambiente não só artístico, mas de muita militância. Cresci absorvendo arte de grupos de performance, de manifestação artística, como a Frente 3 de Fevereiro, que para mim é uma das maiores referências de arte e performance. Eles trabalham com intervenções urbanas que questionam a existência de pessoas negras nos espaços.
Cresci entendendo que a arte serve para questionar, olhar para o mundo em que a gente vive e transformá-lo. Isso fez com que eu me tornasse uma artista que questiona o mundo e que utiliza a minha capacidade de comunicação para trazer essas mensagens, esses questionamentos, essas possíveis transformações. E quando eu digo “transformação” eu não acho que eu estou transformando o universo. É aquilo, se eu tenho cinco pessoas que viram meu story e absorveram uma informação, já estou transformando a vida de cinco pessoas. Isso para mim já é uma transformação.
DIADORIM: Você utiliza suas redes sociais enquanto uma plataforma para amplificar questões sociais e políticas. Qual é a importância de que personalidades que têm essa projeção se engajem, fomentem discussões?
ANA — Arte é política. Arte é transformação, é vida, é o espelho do mundo. Se a gente não tem posicionamentos políticos, a arte se esvazia. Hoje tenho 1,3 milhão de pessoas me seguindo. A troco de que elas estão me seguindo? Não é só para ver minha cara. O mínimo que posso devolver para elas é o que tenho de mais precioso para mim, que é o meu conhecimento, principalmente em relação a questões sociais. Depois posso compartilhar entretenimento, que é o que faço também: um pouco de política, um pouco de questões sociais, um pouco de besteira para vocês darem risada, e assim a gente vai trabalhando nas redes sociais.
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entrarDIADORIM — Estamos em plena campanha eleitoral. Quais bandeiras aqueles que se candidatam, especialmente para a Câmara e Senado, precisam levantar para receberem seu voto?
ANA — Tenho escolhido os meus candidatos pensando em representatividade trans, em mais mulheres na política, em pessoas negras na política. Penso em todos esses grupos que foram oprimidos por tanto tempo e que nunca tiveram espaço na política. Por exemplo, a maior parte dos eleitores são mulheres e a gente não tem nem 20% de representação feminina na Câmara dos Deputados. Isso é um absurdo.
DIADORIM — Vivemos um cenário de profunda polarização, em que os dois candidatos líderes nas pesquisas representam projetos de país bastante diferentes. Para você, o que está em jogo nas eleições deste ano?
ANA — Tem muita coisa em jogo nas eleições desse ano. Acho que, primeiro de tudo, é a educação, que está completamente abandonada. A saúde também, porque ter vivido os últimos quatro anos de um governo completamente negacionista e contra a ciência foi tenebroso.
A gente viveu um governo que recusou a educação, que recusou a ciência e, principalmente, recusou a arte em todos os sentidos. Sucateou a arte de todas as maneiras possíveis e impossíveis a ponto termos a Cinemateca [Brasileira], que guarda tesouros do cinema nacional, pegando fogo. E não foi por falta de aviso, foi por negligência do governo.
A gente está vendo aí uma escolha muito óbvia, entre um governo que abandonou completamente coisas primordiais para nossa população e um governo que pode dar a possibilidade de reconstruir o país. É uma escolha muito óbvia para mim.