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Com políticas públicas esvaziadas, Pernambuco enfrenta ‘onda de ataques transfóbicos’

Em julho, houve pelo menos cinco casos de violência noticiados; desde 2018, orçamento da gestão Paulo Câmara (PSB) para LGBTIs foi esvaziado

Arte: Tomaz Alencar/Diadorim

Esta reportagem é uma parceria da Agência Diadorim com Marco Zero Conteúdo

Entre 2018 e 2020, Pernambuco registrou uma média anual de 402,3 casos de lesões corporais dolosas, 34 homicídios dolosos e 30,6 estupros cometidos contra LGBTIs, de acordo com dados do Fórum Nacional de Segurança Pública (FBSP). A ONG divulga, a cada ano, um levantamento com números fornecidos pelos governos estaduais, obtidos através da Lei de Acesso à Informação. O mais recente deles, referente a 2020, foi lançado em julho.

Dos dez estados que repassaram os registros completos dos três últimos anos ao FBSP, Pernambuco lidera, em números absolutos, o infeliz ranking da violência em função de orientação sexual e identidade de gênero. Somente em 2020, a secretaria estadual de Segurança Pública contabilizou 604 casos de lesão corporal dolosa (aumento de 78,7%, em comparação com 2019), 39 homicídios dolosos (aumento de 30%) e 47 estupros (aumento de 104,3%).

Esses altos índices são reflexo da ausência de políticas públicas efetivas para a população LGBTI+ no estado, como afirma a enfermeira Fernanda Falcão, 29, uma das vítimas de transfobia em Pernambuco. “Os órgãos LGBTs não têm recursos para trabalhar nada, né? A gente é o estado que mais tem mecanismos LGBTs, porém a gente não tem recurso para que esses mecanismos trabalhem, então a gente não consegue buscar muito apoio deles”, conta.

Conforme apurou reportagem da Diadorim e Marco Zero, com apoio metodológico da Plataforma Justa, desde 2018 os orçamentos da gestão Paulo Câmara (PSB) para políticas públicas destinadas à população LGBTI+ foram esvaziados ou contingenciados. Os dados são do Portal da Transparência do governo estadual e podem ser acessados por qualquer cidadão.

Incluída na lista de despesas em 2019, por exemplo, a ação de “Operacionalização e expansão da rede de apoio e atenção à população LGBT” teve corte de 100% em todos os anos. Em 2019, estavam previstos R$ 176.500, em 2020, R$ 5 mil, e em 2021, R$ 120.990. Já o Centro Estadual de Combate à Homofobia (CECH) recebeu R$ 21.358, em 2019, mas em 2018, 2020 e 2021, ficou com orçamento zerado.

Fernanda Falcão personifica as contradições de um estado que diz olhar para a população LGBTI+, mas não prioriza as políticas que garantem direitos a essas pessoas. No último dia 8 de julho, quatro homens tentaram derrubar a porta da casa da enfermeira, em Paulista, Região Metropolitana do Recife. Ela registrou boletim de ocorrência na Delegacia da Mulher, no Bairro do Recife, mas só contou com ajuda de fato do Grupo de Trabalho e Prevenção Positiva (GTP+), onde trabalha como coordenadora de articulação política.

Falcão conta que chegou a procurar o Núcleo de Apoio Provisório (NAP), vinculado à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, programa que dá acolhimento emergencial por até 20 dias a pessoas ameaçadas (testemunhas e colaboradores da justiça, crianças, adolescentes e defensores de direitos humanos), mas “foi muito difícil dialogar com os órgãos do governo”.

“Eles disseram que me colocariam em uma casa alugada, me dariam feira e me afastariam. Pegariam o meu telefone, e eu não teria autorização de me comunicar com ninguém. Achei isso desumano e não quis ser acolhida pelo NAP”, explica. O núcleo informou que ela seria acompanhada pelo Programa Estadual de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (PEPDDH-PE), mas não houve definições.

Enquanto as investigações estão em andamento, ela não se sente segura de voltar para casa. Graças à ajuda do GTP+, conseguiu abrigo. Mas é por um curto período. Depois disso, não sabe o que vai fazer. “Já fui a algumas reuniões com psicóloga, assistente social e advogado [do PEPDDH-PE], mas aí são só reuniões, e o programa tem muito pouco a oferecer em relação a segurança.”

Como mulher trans preta, Falcão sabe o que é enfrentar todo tipo de exclusão, violência e apagamento. Aos 19 anos, foi presa por tráfico e colocada com 99 homens em uma cela, ela e mais duas mulheres trans, como mostrou a jornalista Fabiana Moraes, em 2016. Antes disso, já havia passado por mais duas prisões, acusada de extorsão. Entre agressões e o medo de ser assassinada dentro da cadeia, ela foi estuprada por um dos presos e contraiu HIV. Depois de três anos, foi inocentada. As 36 pedras de crack que ela carregava no dia da prisão haviam sido plantadas, provaram filmagens, mas ela já estava marcada com a dor e o estigma. “Eu morri ali, né? Eu morri no momento em que me encarceraram. E o estupro foi só a confirmação dessa morte.”

Com o passar dos anos, Fernanda Falcão se tornou um nome conhecido da militância LGBTI+ por atuar em diversas frentes, não apenas a da saúde – sua paixão e também área de formação desde 2017, quando concluiu a universidade. Um desses trabalhos é o de coordenadora do Mercadores de Ilusões, projeto que oferece formação sobre Direitos Humanos a travestis, homens e mulheres transexuais profissionais do sexo. O objetivo do grupo é evitar o tráfico de pessoas no Recife.

A enfermeira Fernanda Falcão reclama do atendimento dos equipamentos LGBTI+ do estado

Foto: Acervo pessoal

‘Não quero morrer esfaqueada’

Embora se queixe da ineficiência das políticas públicas estaduais para a população LGBTI+ nas diversas vezes que precisou, Fernanda Falcão também fez parte da equipe do governo de Pernambuco.

Após ser solta, ela trabalhou em duas pastas do então governo Eduardo Campos (PSB): primeiro, no núcleo LGBT da Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude, e depois foi para a Secretaria Executiva de Segmentos Sociais. Desde 2014, também vem atuando como consultora do Conselho Estadual de Direitos Humanos e dos comitês de Prevenção e Combate à Tortura e de Prevenção ao Tráfico de Pessoas. A partir do início deste ano, tem participado da criação do Comitê de Pessoas Trans, vinculado à Secretaria da Mulher do Estado de Pernambuco.

“A gente é aceita enquanto mão de obra, mas dificilmente como beneficiária das políticas, essa é a dificuldade. Existem grandes barreiras. Em um momento você se vê como parte de todo o processo, se vê realmente cidadão, mas, em outro momento, você não se vê, porque não existe um acolhimento específico”, reclama.

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Na opinião de Falcão, ter pessoas LGBTI+ dentro da estrutura pública não é suficiente para transformar a precariedade do serviço prestado nos pontos de atendimento, como é o caso das delegacias. “Não adianta dizer que eu posso ir à delegacia denunciar, se eu sei que eu vou à delegacia denunciar e vou sofrer um outro abuso. Quando chegar lá, [ficam] rindo da nossa cara, perguntam porque a gente estava no lugar em que sofremos a agressão.”

Para não entrar nas estatísticas de travestis e mulheres trans assassinadas de forma violenta em Pernambuco, a enfermeira pretende buscar, na justiça, autorização para ter morte assistida. “Nesse momento, o único órgão que eu procuro mesmo é a Defensoria Pública porque eu quero morrer de forma digna. Mais uma vez, eu tenho que ressaltar isso sempre, eu não quero morrer esfaqueada, eu não quero morrer com várias balas.”

Em protesto, pessoas pedem justiça pela morte de Crismilly Pérola, conhecida como Piu Piu

Foto: Day Louisee/Marco Zero

‘Onda de ataques transfóbicos’

Na grande parte dos crimes cometidos contra a população LGBTI+, em Pernambuco, as vítimas são travestis e mulheres trans. Segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), em 2020 ocorreram sete transfeminicídios no estado. No Nordeste, fica atrás somente do Ceará e da Bahia, que registraram, no mesmo período, respectivamente, 22 e 19 mortes. A contabilização da ONG é feita com base em notícias publicadas em veículos de comunicação e notificações diretas ao grupo, uma vez que a Secretaria de Defesa Social não dispõe de informações sobre orientação sexual e identidade de gênero.

Esses relatórios mostram que, desde 2018, Pernambuco também está entre os dez estados com maior número de assassinatos de pessoas trans, em números absolutos. E no boletim semestral da Associação, divulgado em julho deste ano, ele foi citado em caráter de atenção, devido a “uma onda de ataques transfóbicos”. No mês anterior, houve pelo menos cinco casos noticiados, entre mortes e tentativa de homicídio.

Uma dessas vítimas foi Roberta Nascimento da Silva, 32, que teve 40% do corpo queimado por um adolescente de 17 anos, enquanto dormia próximo ao Cais de Santa Rita, região central do Recife. Silva ficou internada por 15 dias no Hospital da Restauração e teve amputados um braço e parte do outro, por causa dos ferimentos, mas não resistiu. Ela morreu em 9 de julho.

Quatro dias antes da morte de Roberta Silva, em 5 de julho, Crismilly Pérola, 37, foi encontrada morta com marca de tiro no bairro da Várzea, Zona Oeste do Recife, onde residia. Um mês antes, ela havia sido hospitalizada por causa de uma fratura no braço. De acordo com a família, ela tinha se envolvido em uma briga motivada por transfobia.

“Essas pessoas não sentem que são assistidas pelo estado. É muito esforço pra saber que não vai dar em muita coisa. Não tem garantia de que você vai ser bem tratada, ouvida, que sua causa vai ser levada a sério se você chegar numa delegacia pra fazer um boletim de ocorrência, se você quiser prestar queixa de alguém ou quiser encontrar um advogado público”, comentou o estudante Bero Andrade, 22 anos, amigo e vizinho de Crismilly.

Conhecida como Piu Piu, ela trabalhava como cabeleireira, mas também se sustentava com a prostituição. “É uma profissão de muita exposição e muitas ameaças, então isso foi normalizado na vida dela. É bem complicado falar das pautas desses corpos que não têm direito nem à integridade, né? A se sentirem humanos, com direitos, a se sentirem cidadãos na sociedade”, lamenta Andrade.

O que o amigo de Crismilly não consegue explicar é como ela foi assassinada de maneira tão violenta no bairro onde sempre viveu. “Ela falava com as pessoas do comércio e com o morador de rua. O que aconteceu com ela, a 100 metros de distância da minha casa, da forma horrenda como aconteceu, mexeu muito comigo, até me intimidou de alguma maneira porque eu posso conhecer os agressores.”

De acordo com o levantamento da Antra, 18% dos suspeitos nos casos de assassinatos de travestis e mulheres trans ocorridos em 2020 eram de pessoas conhecidas ou que mantinham algum relacionamento com as vítimas.

Crismilly levou um tiro, depois foi espancada com uma pá, arrastada e lançada no rio. No dia seguinte, ela foi encontrada na outra margem. “A população viu isso acontecer e ninguém interviu. Isso porque ela era uma pessoa muito conhecida e querida”, conta Bero Andrade. “Entre nós, LGBTs daqui [da Várzea], ficou um clima de medo”, reflete o estudante.

Em julho, Recife lançou a Estação da Diversidade, para atendimento a LGBTIs nos bairros

Foto: Divulgação

‘Falta a prioridade dos governantes’

Para a codeputada estadual Robeyoncé Lima (Psol), da bancada coletiva Juntas, os casos recentes de violência contra transexuais e travestis são a “ponta do iceberg de uma violência maior, em muitos sentidos, que acontece no estado”. Desde a morte de Roberta Silva, conta Lima, os movimentos sociais tentam uma reunião com o governador Paulo Câmara, mas sem sucesso. “O movimento foi recebido por secretários do governo, mas não pelo governador.”

A principal reivindicação da população LGBTI+ em Pernambuco, segundo a parlamentar, é a garantia de abrigamento para pessoas em situação de vulnerabilidade social. “É uma demanda que precisa de realocação de recursos. Para inaugurar e manter uma casa abrigo, precisa de recursos financeiros. Qual é a verba que a Prefeitura e o Governo estão destinando? Tem que ser uma rubrica duradoura, não é só inaugurar e depois não ter como funcionar.”

A Juntas é um dos mandatos que têm destinado emendas parlamentares para atender à defasagem dos órgãos criados para atendimento da população LGBTI+. “Enquanto parlamentares, nós não podemos legislar sobre coisas que geram gasto ao governo – por exemplo, uma casa de acolhimento. Aí o que a gente faz é encaminhar emendas para que as políticas públicas possam ser executadas minimamente. Mas ainda assim, a gente recebe a notícia de que o governo não executa”, explica Robeyoncé Lima. “A gente encaminhou uma emenda para a Coordenadoria LGBT do estado, para interiorização, mas a emenda terminou perdendo a validade porque não foi executada pelo próprio governo. Falta a prioridade dos governantes.”

Em 7 de julho, dois dias antes da morte de Roberta Silva, o governador Paulo Câmara (PSB) criou o Comitê de Prevenção e Enfrentamento da Violência LGBTfóbica, que oferece capacitação e assessoria, além de mobilizar uma articulação entre municípios para a prevenção, o acolhimento às vítimas e punição a agressores.

Naquele mesmo dia, o prefeito do Recife, João Campos (PSB), anunciou a criação da Estação da Diversidade (uma ação itinerante para divulgar os serviços que são oferecidos à população LGBTI+ da cidade) e de um projeto de implantação da Casa de Acolhida LGBTI+, que será administrada por uma empresa ou Organização Social. O edital de chamamento público referente ao abrigo, no entanto, ainda não foi lançado. A reportagem questionou a Prefeitura sobre a previsão de lançamento da convocatória, mas não obteve retorno.

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