

Lala Laurenti é referência e acolhe diferentes gerações de mulheres durante a transição
No oitavo andar de um prédio nos Jardins, um dos bairros mais nobres de São Paulo, está uma clínica que figura entre os endereços mais tradicionais da chamada “estética trans” no Brasil. Quem chega é recebido por Lala Laurenti, cabelos ruivos na altura dos ombros e olhos claros atentos, que há mais de quarenta anos acompanha — e ajuda a construir — o caminho de centenas de mulheres trans.
Prestes a completar 75 anos, ela comanda um espaço especializado na remoção definitiva de pelos, um dos procedimentos mais procurados no processo de feminização. Médicas, dentistas, professoras, funcionárias de padarias, bancos, supermercados e restaurantes passam por ali, muitas vezes dando os primeiros passos no reconhecimento da própria identidade. “Elas estão conseguindo trabalho e se formar”, comemora.
Nascida em Urupês, no interior paulista, Lala carrega desde a infância o mesmo desejo que hoje atravessa suas clientes. “Quando morava no sítio, eu falava: ‘Vou dormir e amanhã vou acordar uma mulher’”, lembra. Não era qualquer mulher — era uma mulher bonita. Esse sonho pessoal transformou-se também numa missão: abrir caminhos, oferecer acolhimento e ajudar outras mulheres a se reconhecerem.
A clínica de Lala é referência em atendimento estético para mulheres trans.
Foto: Acervo pessoalA trajetória de Lala Laurenti na estética começou com a própria transição, enfrentando o desafio da remoção dos pelos faciais. “Minha barba levou oito horas. Oito horas em uma sessão, tá? Com três pessoas fazendo [a depilação por eletrólise]”, recorda, sobre um procedimento em uma agulha finíssima é inserida no folículo piloso e uma corrente elétrica queima a raiz do pelo. Depois, ele é puxado com pinça, já solto. Se mal executada, pode deixar cicatrizes.
Naquela época, a eletrólise era pouco difundida em São Paulo. Por isso, Lala ia quinzenalmente ao Rio de Janeiro para ser atendida pela enfermeira Maria Estela e sua equipe, no Largo do Machado, referência no procedimento. “Ela pegava a gente com barba e ficava o dia inteiro fazendo [pelo por pelo]. Ela e mais três profissionais. Cada uma fazia um pouco, e você ficava horas”, lembra.
Foi também graças a Estela que Lala iniciou sua carreira. Quando a enfermeira abriu uma clínica em São Paulo, ela começou na recepção e, mais tarde, deu os primeiros passos na estética após se formar no Senac — o primeiro de muitos cursos que faria. Hoje, diplomas e certificados estampam, com orgulho, sua sala de atendimento.
Na década de 1970, Lala atendeu nomes conhecidos no mainstream nacional, como a atriz Wilza Carla e a cantora Wanderléa. “E as meninas todas, né? As trans que estão na Europa hoje, da minha geração, todas fizeram eletrólise”, comenta. Sua grande amiga Rogéria, por exemplo, fez todo o processo em Paris.
Com o avanço tecnológico, a depilação a laser substituiu a eletrólise, com sessões mais curtas e menos dolorosa. “Aqui não tem agulha: o próprio pelo conduz a energia até o bulbo. É uma coisa muito fácil”, resume, bem-humorada. Além disso, a técnica estimula a produção de colágeno, ajudando na renovação da pele.
Entre as clientes da nova geração estão a modelo Lea T, a socialite Roberta Close, a ex-BBB Ariadna Arantes e a influencer Maya Massafera.
Lala e Rogéria
Foto: Acervo pessoalAntes de atuar na estética, Lala Laurenti trabalhou no Banco Noroeste, onde chegou a ser cotada para subgerente. No entanto, no momento da promoção, recebeu o golpe: “O gerente falou pra mim: ‘não podemos ter subgerente viado’”, relata, sobre o episódio de homofobia — ainda antes do início da transição, em 1978.
A sorte foi ter feito boas amizades com clientes do banco, o que garantiu sua rápida recolocação em uma empresa de papel. Ficou lá dois anos, até ingressar definitivamente no universo da estética. “Sem emprego eu não fiquei, como as meninas que acabam sem opção e precisam recorrer à prostituição”, afirma.
Apesar da estabilidade profissional, também sofreu com as perseguições da Ditadura Militar. Foi presa mais de uma vez simplesmente por estar na rua — numa delas, passeava com sua cachorra na Rua Augusta.
Primeiro foi o coronel Erasmo Dias quem comandou essas operações; depois, o delegado Richetti. “Ele rodava o centro com três, quatro camburões. Era só viado correndo pra tudo quanto é lado”, recorda.
Na manhã seguinte, quem tinha carteira assinada era liberada — daí o hábito de carregar cópias da carteira de trabalho e dos documentos. Quem não tinha vínculo formal ou era reincidente podia ficar presa por semanas. Algumas, em desespero, se feriam no camburão tentando fugir.
Numa dessas, foi detida na saída do cinema, no meio da tarde, junto de uma amiga. “A sessão terminou às quatro. Quando a gente saiu, passou um camburão que viu a gente — não sei o que eles viam de diferente. Eu me sinto tão normal quanto qualquer pessoa”, afirma.
A amiga, traumatizada, vendeu o carro e se mudou para a Europa pouco tempo depois. “Foi embora pra Paris e hoje mora na Suíça.” Lala, por sua vez, ficou em São Paulo — a cidade que escolheu e onde construiu sua vida por mais de 50 anos.
Lala recebendo o Prêmio Claudia Wonder 2025, na Semana de Visibilidade Trans de São Paulo.
Foto: SP Escola de Teatro“Trabalho como se tivesse 30 anos. Aqui é onde encontro as pessoas e faço amizade”, conta. A rotina vai de segunda a sábado, com o apoio da secretária chilena Pilar — parceira há mais de uma década — e da poodle branca Rose, companheira de mais de 10 anos. Na clínica, conta com o dermatologista Luiz Paulo Barbosa como responsável técnico.
Fora do trabalho, Lala Laurenti gosta de frequentar a Catedral da Sé e encontrar as amigas em bons restaurantes. As boates já ficaram para trás, exceto quando há homenagens — e elas não são poucas. Neste ano, recebeu o Prêmio Claudia Wonder, na Semana de Visibilidade Trans de São Paulo, além de já ter sido reconhecida pelo Prêmio Papomix.