Arte: João Menezes/Diadorim
eleições 2022

LGBTIs vivem conflito familiar por causa de Bolsonaro

Para LGBTIs apoio ao presidente é ataque à existência deles enquanto seres humanos

Desde 2018, a disputa política no Brasil tem rachado famílias e grupos de amigos. Em 2022, esse conflito voltou a se acentuar, desta vez intensificado pelo risco de fortalecimento da extrema direita no país. 

No caso de pessoas LGBTI+, o apoio incondicional de familiares, como pais e irmãos, a Jair Messias Bolsonaro (PL) é tido, por muitos LGBTI+, como um ataque direto a existência deles enquanto seres humanos. O presidente tem repetidas declarações de cunho LGBTIfóbico.

Em 3 de outubro, logo após o primeiro turno das eleições, uma publicação no Twitter despertou uma série de depoimentos de gays, lésbicas, bissexuais e trans sobre a dificuldade de conviver com bolsonaristas próximos. “Ser LGBTQ+ é ver familiares e pessoas queridas apoiando líderes que querem a aniquilação de gente como você e ter que tentar não levar isso para o pessoal”, escreveu Germana Belo, iniciando uma longa discussão virtual.

O recifense Glebson França, de 23 anos, é uma dessas pessoas que vivem conflito familiar por causa do presidente. “Se a gente estiver no mesmo espaço da casa, meu pai não fala e eu também não falo. Muito dessa relação que a gente destruiu foi por conta do bolsonarismo, do ódio gratuito que é propagado [pelo presidente]”, conta ele à Diadorim. O rapaz é gay.

O fim do diálogo entre Glebson e o pai ocorreu após uma séria discussão. “Meu pai sempre joga uma ‘faisquinha’ para ver se eu vou cair e, na maioria das vezes, fico calado. Um dia,  que eu estava muito cheio e cansado, estourei. E começamos a discutir”, lembra. 

O pai de Glebson apoia declaradamente Bolsonaro em 2022. Apesar disso, ambos continuam morando na mesma casa. O teto da família também abriga a mãe — que aceita França e com quem tem uma relação “bastante tranquila”, diz ele — e seu outro irmão, que também é gay.

‘Perdi a minha irmã para o bolsonarismo’

Os efeitos dos familiares bolsonaristas podem ser outros quando o contato não é mais diário e nem envolve morar na mesma casa. Só que o distanciamento físico não significa um impacto psicológico, apenas diferente. Inclusive, quando ocorre, de forma nítida, somente pelas redes sociais.

Mesmo sem um conflito direto, dois irmãos pararam de interagir por causa de posicionamentos políticos. “Deixamos de nos seguir e, de certa forma, também de conversar. Ela vive postando fake news a favor do Bolsonaro”, explica Julian Santt, homem trans, de 31 anos, que mora em São Paulo. Santt nasceu em Campina Grande, na Paraíba. 

“Ela não vem diretamente a mim, mas apoia o governo genocida e tudo que ele prega”, diz Santt.

Em tempos passados, a parceria entre os irmãos era maior. “Ela ficou do meu lado quando soube que gostava de mulheres e quando expressei que era trans… Ela foi a pessoa que já me disse que eu sou mais homem que muito homem, mas, agora, prega contra a ‘ideologia de gênero’ nas escolas. Coisa que nem existe”, diz. “Perdi minha irmã para o bolsonarismo.”

‘Busco entender o lado dele’

“Estou tentando apresentar para o meu pai o outro lado, através do amor. Tenho tentado apelar para essa questão de conceito de família que o Bolsonaro defende. Busco também entender o lado dele”, afirma Kamila Elisabeth, bissexual, de 26 anos, que mora em Curitiba, no Paraná. 

“Quando meu pai vota ‘pela família’, ele está votando por uma família que não é a que eu existo”, explica. É assim que ela tenta convencer o pai contra Bolsonaro. Desde 2018, Kamila não faz mais parte dos grupos da família em redes sociais nem frequenta encontros deles. “Achava que evitar as conflito político me deixaria mais em paz dentro das relações familiares”, explica.

No entanto, os resultados do primeiro turno deste ano fez com que voltasse a gerar conflito. “Curitiba é uma cidade bem conservadora e muitos homofóbicos passaram a se sentir mais seguros em atacar verbalmente ou até mesmo fisicamente [aqueles que pensam de forma contrária], desde que o discurso bolsonarista surgiu”, afirma ela. “Agora, com a possibilidade de reeleição, fico ainda mais tensa — e pensar que meu pai colaborou com isso me deixa profundamente triste. A minha experiência pessoal não é suficiente para ele mudar de ideia”.

Crise no divã

Com conflito sobre a política envolvendo diferentes famílias brasileiras e membros da comunidade LGBTI+, é inevitável que este problema não transborde também para as sessões de terapia. 

“Na prática clínica, observo o relato de uma sensação de constante ameaça e sentimentos como tristeza, decepção, revolta, mágoa e ansiedade. Desde 2018, muitas pessoas já haviam se desvinculado e se afastado afetivamente de familiares. Mas, aqueles que mantiveram ainda alguma proximidade, passam a se questionar nessas relações”, explica a psicóloga Camila Bruna da Silva, especialista em terapia comportamental. 

Segundo ela, é preciso assumir que, antes mesmo da eleição de Bolsonaro como presidente, o Brasil já marginalizava pessoas não cis e não heterossexuais. “Temos relatos de pais que expulsam filhes de casa ou que os agridem verbal ou fisicamente. [A questão é que] a saúde mental da população LGBTI+ no governo Bolsonaro se fragiliza ainda mais”, afirma Silva. 

Para o também psicólogo Rogério Melo, “o extremismo da direita reforçado e legitimado pelo bolsonarismo, fez com que nos déssemos conta das pessoas que nos circundam, dos seus reais pensamentos sobre a comunidade [LGBTI+] que fazemos parte”. “Isso chateia, magoa e, por vezes, causa separações, agressões e mortes”, acrescenta ele, que é doutor em Psicologia e Sociedade e pesquisador nas áreas de gêneros, sexualidades e políticas de subjetivação.

O resultado dessa situação, acrescenta o psicólogo, são “afogamentos existenciais”. Os pacientes “não estão dando conta de tudo isso que temos visto em grande escala com narrativas perversas sobre cura gay, ideologia de gênero, mamadeira de piroca, banheiro para pessoas trans, de preferir ter um filho morto do que um filho gay”, conta.

Como resistir

Para sobreviver a estes momentos que podem ser tão difíceis com a família, não existe uma fórmula simples, dizem os especialistas. Afinal, estas relações envolvem afetos, sentimentos, laços e até dependência financeira, dependendo do caso.

“Precisamos aprender conosco o que damos conta naquele momento e que batalha vale a pena travar. Não quero dizer, com isso, que devemos nos silenciar ou que devemos dar a cara a tapa, mas penso que o melhor caminho é criar redes de apoio, alianças de resistência e suporte”, explica Rogério Melo.

As redes de amizade e apoio podem ajudar os membros da comunidade LGBTI+ a não se sentirem sozinhos diante do conflito e também a respirar. 

“A família é formada por vínculos afetivos. Não é o vínculo sanguíneo que determina o amor e o cuidado. Criar formatos familiares diversos, com pessoas queridas, é algo que a comunidade pode fazer e que tem um potencial incrível na saúde mental”, reforça Camila Bruna da Silva. “Se rodear de pessoas que se querem bem e se acolhem é urgente”, alerta a psicóloga sobre estes tempos de bolsonarismo.

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