Luz no fim do palco: a retomada da cena drag de São Paulo
Com relaxamento das restrições, artistas voltam aos shows em festas e baladas; das mais novas às experientes, drags viram brilho da noite se apagar na pandemia
Quem viu Lucas Guilherme, 26, rodar de bicicleta pelo centro de São Paulo com a mochila vermelha do iFood durante os períodos mais agudos da pandemia nem imagina que na noite ele responde por Kyrah Spiurt. E que suas maiores habilidades profissionais são dublagem e bate-cabelo.
Quando o coronavírus começou a se espalhar e aglomeração virou uma palavra maldita, a carreira de uma década do artista e promoter entrou num hiato forçado. A balada em que Lucas trabalhava, a Tunnel, na Bela Vista, se transformou em restaurante, e a drag se “destransformou” em entregador de comida.
Com 20 anos de carreira a mais que Lucas, Silvio Cássio Bernardo, 54, a Silvetty Montilla, uma das drags mais conhecidas do país, não chegou a se desmontar, mas trocou os holofotes do palco pelo ring light e o celular. “A gente foi muito criticada no começo, quando pedia pix, o pessoal falava ‘olha lá, vai começar a live das penosas’”, conta.
Das mais novas às mais experientes, as drags se juntaram aos demais trabalhadores que viram o brilho da noite paulistana se apagar por causa da pandemia de Covid-19.
O centro de São Paulo na palma da mão
Morador do Jardim Almanara, perto da Vila Brasilândia, na Zona Norte da capital paulista, Lucas Guilherme é habitué do centro, onde sempre trabalhou. Com as ruas da Bela Vista, Vila Buarque, República e Arouche na cabeça, o inesperado trabalho no delivery ficou mais fácil.
Ele havia iniciado um emprego como promoter da Tunnel quando a pandemia começou. “Quando tudo fechou, eles começaram a fazer refeições pra vender. Foi o jeito de manter as contas, de manter muitos empregos”, relembra.
Com a flexibilização gradual do distanciamento social ante a diminuição no número de casos e mortes de Covid-19 no estado de São Paulo, os shows foram retomados. E Lucas Guilherme, de volta à promoção dos eventos, contou com o empurrão de, digamos, uma fada madrinha: Silvetty Montila, que estava fazendo seu tradicional show de stand-up.
“A Silvetty me chama de faísca, porque eu sou muito serelepe. Um dia, na Tunnel, ela me chamou pra bater cabelo, e eu bati cabelo, como menininho mesmo. Aí o dono pediu pra eu me apresentar no aniversário dele. E aí começaram a vir mais convites”.
Agora, os panfletos que os promoters entregam nas ruas do centro estampam o rosto de Lucas. Ou melhor, o de Kyrah Spiurt.
O retorno da diva
A drag Silvetty Montila atendeu à ligação deste repórter depois das 11 da noite, um pouco antes de fazer pela primeira vez um show numa virada de segunda para terça-feira desde março de 2020. “Graças a Deus, estou com a agenda bem cheia até o fim do ano”, comemorou.
Nos primeiros três meses da pandemia, quando medidas de isolamento social começaram a ser aplicadas, os eventos foram sendo cancelados. Só voltaram em um curto intervalo, de forma virtual, em junho, mês da diversidade e da Parada LGBT de São Paulo.
“As pessoas pensam que porque eu sou Silvetty Montilla eu sou rica, milionária. São pensamentos doidos. A gente só tem dinheiro enquanto trabalha”, esclareceu Silvio Cássio Bernardo.
Os auxílios financeiros emergenciais disponibilizados pelo governo não chegaram a todos os trabalhadores da cultura. E o jeito foi apelar para sorteios no Instagram. “Umas amigas minhas começaram a fazer live, rifa, colocar o pix à disposição, eu fiz também. Mas não é uma coisa que eu gosto, não tem muito a ver comigo. Eu gosto de plateia, de público.”
Vacinado com duas doses, Silvio tem voltado a fazer apresentações em boates que ficam no triângulo formado pelas avenidas São João e Ipiranga e o Elevado João Goulart. É lá onde ficam a Danger Dance Club, na rua Rego Freitas, e o Bar Queen, no Arouche, onde Silvetty Montila não pisava havia 10 anos.
No estado de São Paulo, o decreto que suspendeu a limitação na ocupação de bares e restaurantes e extinguiu limitação no horário de funcionamento para estes estabelecimentos ainda não prevê a liberação de baladas e shows com público em pé.
A orientação é para que as apresentações de drags ocorram com a plateia sentada, no chamado formato bar.
A drag da família tradicional
No universo drag, nem todos os artistas trabalham com shows em boates e bares frequentados pelo público LGBTI+.
Gustavo Tonini, 42, a Drag Pri (sim, inspirado em “Priscila, a Rainha do Deserto”) circula por festas de aniversário, casamentos, despedidas de solteiro e chás de bebê da Região Metropolitana de Campinas, distante 100 quilômetros de São Paulo.
Do começo da pandemia pra cá, foram mais de 150 eventos cancelados. “12 casamentos acabaram de vez, porque as pessoas se separaram. Mas, pelo menos, pagaram metade do cachê”, comemora aos risos.
Em tempos áureos, Gustavo chegou a fazer 38 shows por mês. Ele e o marido, Felipe Miranda, 31, dirigem o carro, carregam e descarregam equipamentos e cobram o cachê.
Para segurar as contas, quando o telefone parou de tocar, o casal abriu um mercadinho. A empreitada durou apenas nove meses. Juntos, eles ainda venderam salgados e roscas doces pra fora. Agora, com os eventos familiares voltando, os shows de humor foram retomados.
Apesar de estar completamente imunizado, o intérprete de Drag Pri diz ter medo de ser infectado pelo coronavírus. E reconhece que não há medidas de prevenção suficientes nas festas.
“A maior mentira que existe em 2021 é ‘estamos seguindo todos os protocolos’. Não existe meio seguro. Mas as pessoas [que criticam] têm salário. É diferente de mim. Quem faz meu salário sou eu, eu preciso conquistar o cliente. Eu passei um apuro muito grande nessa pandemia”, finaliza.