A médica Camille Cabral. Foto: Reprodução
A médica Camille Cabral. Foto: Reprodução
memória

Entre o Sertão e Paris: Camille Cabral, médica trans eleita vereadora na França

O que nos faz participar de um grupo é, sobretudo, o discurso. Mesmo individual, nossa história ecoa nos relatos das outras pessoas dessa comunidade. E foi assim, pela palavra, que Camille Cabral se aproximou de outras mulheres transexuais que desbravaram Paris, na década de 1980. “Saiu do Sertão paraibano de batina. Retornou para casa, anos depois, vestindo um tailleur”, diz ela, em um slogan que sintetiza dramaticamente sua trajetória.

Médica e ativista política, Camille nasceu em Barra de São Miguel, região do Cariri paraibano, na divisa com Pernambuco. Ela, sete irmãos – três atuando na medicina – tinham a atenção total dos pais na formação intelectual. “No ginásio [ensino fundamental], fui morar e estudar na Comunidade Franciscana Alemã de Ipuarana”, recorda. O ensino em seminários e conventos possibilita privilégios como as aulas de grego antigo, latim, inglês, filosofia. “Líamos Ovídio e Virgílio na língua original. A formação humanística daquela comunidade me influenciaria pela vida toda.”

O amor também foi descoberto na fase do seminário, que estava mais interessada em cursar faculdade no Recife, perto da irmã, casada e estudante de Direito. Ainda na escola religiosa, percebia algumas diferenças que a colocavam longe de ser gay. “Me sentia delicado, sensível. Mas nem havia nome para os sentimentos, não pensava sobre transexualidade naquele período. Meu desejo despertou, sabia que não era orientado para as mulheres”, ativa a memória, falando de si com os adjetivos no masculino.

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Esse é um trecho rápido da conversa, visto que sublimar quereres foi uma forma de sobreviver ao machismo e à homofobia recifense e nas cidades por onde passou. 

Adiantamos a história para 1971, data da formatura em medicina pela Universidade de Pernambuco, com estoque de recordações dos comentários e piadas intolerantes durante as aulas. Mais um ano de residência em dermatologia na capital pernambucana e… São Paulo. “O milagre brasileiro tinha emprego para todos os médicos recém-formados”. Na semana seguinte à chegada, já estava em pronto-socorro. O que almejava era a clínica, o cuidado com o outro, trazido do Sertão e da formação franciscana.

Na capital financeira do país, além de dinheiro, conheceu um sentimento novo: liberdade de forma ampla, que os grandes centros oferecem. A alegria de descobrir o olhar do outro, de saber que se interessavam por mim”. Um episódio foi especial, ocorrido no refeitório do Hospital das Clínicas: “Estava na fila, com uma irmã e duas amigas. Um rapaz bonito parou para olhar meu peitoral desenhado na camiseta”. Uma paquera dentro do ambiente que, um dia, foi sinônimo de exclusão.

Paris não estava nos planos. Era apenas um passeio antes do mestrado na Alemanha, com bolsa de estudos do Senado Alemão: chegou à capital francesa em 31 de maio de 1980, durante o verão, enquanto festejava sua 36ª volta em torno do sol. 

Mas, por que não aproveitar a oportunidade, atualizar-se nas pesquisas científicas e na prática médica nos hospitais mais importantes de Paris? Essa passagem tornou-se uma reviravolta na trama repleta de “plot twists” de Camille Cabral. A decisão de ficar na França norteou todos os caminhos que fizeram seu nome conhecido na Europa e em outros continentes, até os dias atuais. 

Camille em cena do filme “Madame”

Foto: Reprodução

Madame, Paris precisa de você!

Para forjar o imaginário dos brasileiros, desde os anos 1960, as revistas de circulação nacional (como “Manchete” e “O Cruzeiro”) apresentavam aos leitores as histórias de “transviados”, de artistas transformistas que conquistaram Paris em espetáculos no cabaré Madame Arthur. Entre elas, Rogéria, Marquesa e Divina Valéria. Era uma representação da mulher transexual mais próxima de um desenho de René Gruau que da realidade enfrentada (por quase todas) na prostituição, em bosques e bordéis da capital francesa.

Antes de Camille nascer, já instalada na França, ela foi Márcia. As transexuais brasileiras que viviam apartadas do glamour e do luxo dos cabarés para turistas e celebridades, descobriram que a “doutora Márcia”, dermatologista que atendia em português, seria um porto seguro. Além da capacidade técnica, ela conseguiu estabelecer um pacto de confiança entre as trabalhadoras sexuais e “a médica Márcia, do Hôpital Saint-Louis”, enquanto atendia na ala de infecção sexualmente transmissível.

Os franceses não estavam acostumados a um tratamento tão próximo durante as consultas que começou a fazer no Hôpital Saint-Louis. “A gente pega nas pessoas, olha nos olhos”, comenta Camille. A barreira da língua, que é espessa e alta, poderia não ser percebida por outros profissionais que tinham o francês como idioma materno, durante os atendimentos.

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Por quase três horas de entrevista, na ligação via WhatsApp, ela demonstrava a sua leveza na condução da conversa. Do apartamento parisiense, ainda carrega Barra de São Miguel no jeito de ser e de dizer, usando “criatura” como expressão para elogiar, pontuar ou, apenas, como interjeição. Não existe hierarquia nem soberba na interação com Camille. Todos os dias, continua a atuar na sua ONG, para não perder o ritmo, prestes a fazer 81 anos. 

Ela foi descobrindo outra camada discursiva, a das experiências transexuais em Paris, com as pacientes. Não havia referências como o “Bois de Boulogne”, “cafetinas”, “silicone industrial”, termos oriundos da prostituição, no vocabulário de Camille. Ela conhecia lâminas usadas na microbiologia, falava latim e grego antigos, como viram na parte inicial de sua história. A sua vivência profissional, como uma mulher transexual, era muito distinta daquelas brasileiras que estavam pela margem parisiense, oferecendo o corpo nos bosques. “A mulher transexual trazia a ideia do trabalho sexual”.

Foram essas profissionais do sexo que sentiram o maior impacto quando a Aids ainda não tinha um nome, nem se conhecia o vírus que causava o conjunto de sintomas da Síndrome da Imunodeficiência. As primeiras notícias sobre uma doença nova, que atingia, basicamente, homossexuais, vieram em julho de 1981. Dois anos após, em maio de 1983, a equipe dos cientistas do Instituto Pasteur, desvendaram o mistério que se tornou o HIV.

Camille atualizou os estudos em microbiologia no próprio Pasteur, acompanhando as descobertas embrionárias.  

Camille fundou a ONG Prévention Action Santé Travail pour les Transgenres (PASTT), em Paris

Foto: Divulgação

Ainda hoje, o endereço da médica brasileira é na mesma rua do Hôpital Saint-Louis. Quando chegou em Paris, o hospital foi a sua casa, de forma literal. Tornou-se a primeira transexual da França a frequentar uma “salle de garde”, o espaço de descanso reservado aos médicos. Por cinco anos, morou naquele ambiente, até conseguir vender o apartamento que tinha em São Paulo para comprar o imóvel no 10º arrondissement.

Trabalhou lá por nove anos, já exercitando seu lado ativista, percebendo que, independentemente do acervo intelectual e das oportunidades, o discurso do corpo a colocava nessa margem. Chegou a enfrentar os olhares enviesados dentro do serviço hospitalar. “Precisei deixar um café, que se negava servir as transexuais”, diz, sobre um episódio vivido nos anos 1990.

O direito de existir, de forma digna, precisava ser reivindicado. Começou a fazê-lo dentro nos ambulatórios e clínicas, aos poucos. A sua figura feminina foi surgindo gradualmente no trabalho. “Deixei meu cabelo crescer um pouco”, acrescentou roupas e acessórios. Depois, vieram as injeções de Progynon, aplicadas por um amigo, médico paraibano que vivia no Quartier Latin. O estrogênio, em outubro de 1984, fez sua feminilidade aflorar. “Me sentia linda, surgiram os seios”.

Ela mesma vítima da discriminação, foi desligada do Saint-Louis, embora fosse unanimidade entre equipe de saúde e pacientes. Já estava ao longo desse processo vivendo com o nome definitivo, em alusão à escultora Camille Claudel, que lutou para que seu gênio criativo viesse antes da alcunha de “amante” ou de “colaboradora” do artista Auguste Rodin. Escolha mais acertada, este prenome para a ativista paraibana que virou tradução de luta e conquistas para mulheres trans e trabalhadoras do sexo na capital francesa.

Mas o nome pode ser explicado pelo viés jurídico. Na França, os cartórios de registros civis trabalham com a exigência de cirurgia de redesignação sexual para averbar nomes estritamente femininos no documento, que era o caso de Márcia. “Camille é usado por homens e mulheres. Não há essa cobrança de ser apenas feminino. Eu não quero fazer a cirurgia”, relembra num trecho de “Madame”, documentário sobre ela, dirigido pelos diretores André da Costa Pinto e Nathan Cirino. As vivências pessoais e os relatos colhidos durante a prática clínica levaram a médica a atuar, também, como ativista pelos direitos humanos.

Em 1992, Camille Cabral fundou a ONG Prévention Action Santé Travail pour les Transgenres (PASTT) para que um novo capítulo, de dignidade, começasse a ser escrito entre transexuais na Franã – a maioria, trabalhadoras do sexo. A ação passou a chamar a atenção da mídia. A parada do Orgulho Gay passou a dar mais espaço às mulheres trans, a rede de contatos de Camille tornou-se internacional, com a colaboração de figuras lendárias no movimento civil para a causa LGBTQIA+.

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Sylvia Rivera, que fez parte da Revolta de Stonewall, em 1969, estava na cooperação do projeto de Camille Cabral, para se ter uma ideia. Atualmente, além da garantia de direitos básicos às transexuais, a PASTT continua a trabalhar com a distribuição de kits de prevenção (preservativos e gel) nos pontos de prostituição nas ruas. “Camille fazia esse trabalho a pé, carregando uma sacola com o material”, informa Rosa do Amor Divino, funcionária da PASTT, durante o programa Profissão Repórter (Rede Globo) exibido em 28 de junho de 2022.

A diplomacia, uma carreira que esteve nos planos de Camille antes da medicina, tornou-se um braço da sua organização. “Ela atende imigrantes em vários idiomas. Não apenas os falantes de português, mas chineses, sudaneses e turcos. Seu trabalho vai além do consulado brasileiro em Paris, segundo a própria cônsul brasileira Maria-Theresa Lazaro. Sua ação é mundial”, avalia André da Costa da Pinta em entrevista para a Estação Sabiá, da TV 247.

Em 2001, ela foi a primeira transexual e imigrante eleita por voto popular na república francesa para um cargo público pelo Partido Verde. Ocupou o posto de conselheira municipal do 16º arrondissement (uma espécie de vereadora da região) na margem direita do Sena, até 2005.

Em 2001, Camille foi a primeira transexual e imigrante eleita por voto popular para vereadora de Paris

Foto: Acervo pessoal

Mamãe não podia saber

O Sertão é apresentado como o lugar de resistência, de acolhimento com o outro, em parte deste texto. Embora, na vida, há sempre um outro lado, diverso, como nos lembra a dialética hegeliana. No sertanejo, esse oposto poderia estar nos olhares inquisidores e no “fetiche” pela macheza, por um papel bem demarcado sobre os elementos de um universo masculino e o que se espera da feminilidade.

Por essa suposição, ela nunca esteve vestida de mulher diante da minha mãe. Depois de 1984, ano da sua transição, de fato, em todas as vezes que se encontravam, precisa de um estratagema e muito controle para não “decepcionar” a mãe. “Enfaixava os seios, vestia roupas masculinas bem largas e usava uma peruca curta, que eu mesma preparava. Uma aparência estranha de homem”, diz, resignada. Justifica-se com o fato de que a mãe era de outra época, não entenderia se seu menino chegasse ao interior como Camille.

No filme “Madame”, um dos momentos mais emocionantes é a volta dela, após 17 anos – depois da morte da mãe – e o encontro com uma prima. Todas as previsões sobre uma possível recepção áspera, caem por terra. São duas pessoas que se amam resgatando os laços. “Minha prima amada”, exclama Camille antes de abraçá-la e soltar um: “criatura!”.

A inquisição que imaginava parece inexistir no olhar de quem a encontra, registrado nas filmagens. Nesse instante, o Sertão, acaba confirmando a teoria de Hegel em relação às ideias contraditórias. “Barra de São Miguel se mostra mais aberta que várias cidades grandes, nesse sentido”, conclui Nathan Cirino, professor de Arte e Mídia na Universidade Federal de Campina Grande, diretor de Madame.

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