Política LGBTQIA+ avança em 2023, mas direitos trans e Educação patinam
Conselho e Secretaria Nacional LGBTQIA+ cobram ações do Ministério da Educação para combater falácias sobre “ideologia de gênero”
Lula (PT) encerrou o primeiro ano do seu terceiro mandato abrindo portas para a participação social, mas ainda com entraves na implementação efetiva de políticas públicas para a população LGBTQIA+, sobretudo as de proteção a pessoas trans. É o que avaliam entrevistados da Diadorim, em balanço sobre 2023.
Entre os principais avanços citados estão a criação de uma Secretaria Nacional LGBTQIA+ e a retomada do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, liderados por Symmy Larrat e Janaina Oliveira, respectivamente.
O ativista Toni Reis, diretor presidente da Aliança Nacional LGBTI+, também destaca a implementação das coordenações de participação social e diversidade em todos os ministérios. A medida, segundo o governo, é para organizar o debate e garantir a participação social na formulação e execução de políticas públicas.
Na opinião de Reis, os editais de apoio à população LGBTQIA+, publicados ao longo do ano passado, são frutos dessa abertura para o diálogo. Foram eles:
- A Serpro, empresa pública que desenvolve soluções de tecnologia da informação e comunicação para o governo federal, destinou um milhão para o Edital Agora 3T, visando incluir pessoas trans no mercado de tecnologia.
- O Ministério da Cultura dedicou quase dez milhões ao reconhecimento e valorização da produção cultural feita por pessoas idosas, com deficiência, LGBTQIA+ e em sofrimento psíquico, via Prêmio Diversidade Cultural.
- O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania destinou, por meio do Edital nº 3/2023, pouco mais de 1,2 milhões para o fomento à promoção e defesa de direitos de pessoas LGBTQIA+.
- Em dezembro, a pasta também anunciou o Prêmio Cidadania na Periferia, que vai reservar um milhão para 20 iniciativas periféricas que promovam a cidadania LGBTQIA+. As inscrições seguem abertas até o dia 1º de março de 2024.
A principal limitação apontada pelos entrevistados, no entanto, é o Congresso Nacional, ocupado majoritariamente por conservadores, que barram avanços legislativos e confrontam o Executivo em pautas de defesa dos direitos humanos.
Em dezembro, a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, da Câmara dos Deputados, chegou a convocar a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, para explicar o conceito de mulher adotado pela pasta, partindo de uma premissa transfóbica que não reconhece os direitos trans e travestis.
Segundo Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), a pauta trans continua sendo instrumentalizada pela extrema direita para incitar pânico moral na população, sem que o governo assuma um posicionamento antitransfobia.
“Ajudamos a eleger Lula, mudamos de governo, mas o contexto ainda é o mesmo. Temos uma secretária nacional que é travesti, temos algumas políticas sendo pensadas, mas eu posso dizer que a situação para a grande maioria da população trans continua inalterada, principalmente por conta da ausência de um compromisso público efetivo com a vida das pessoas trans”, cobra a ativista.
Secretaria Nacional LGBTQIA+
O novo mandato de Lula tem um marco na visibilidade trans. Pela primeira vez, o Brasil tem uma travesti no segundo escalão do governo: Symmy Larrat, nomeada pelo ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, secretária Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+.
No posto desde janeiro de 2023, ela conta que trabalhou com uma time de dez pessoas até o final de março e só começou a ordenar despesas em abril, por conta dos trâmites burocráticos de criar uma nova secretaria.
Hoje, a equipe tem 48 pessoas, muitas delas terceirizadas, e ainda carece de orçamento para fortalecer sua atuação. No ano passado, a Secretaria operou com R$ R$ 11.748.341,46, conforme informou à Diadorim. Em 2024, terá R$ 27.223.794 disponíveis, de acordo com a LOA (Lei Orçamentária Anual).
“Será o maior orçamento da história da política específica, mas é muito menos do que a gente precisa”, assegura Larrat, que tem pela frente o desafio de ajudar a implementar políticas públicas para a população LGBTQIA+ via Executivo.
No fim de 2023, uma emenda à LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) proposta pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e aprovada pelo Congresso Nacional proibiu a União de ter despesas com políticas que atentem contra a “família tradicional”, mas foi vetada por Lula no começo de janeiro de 2024.
“A vigilância do ódio é terrível sobre nós. A gente passa metade do nosso tempo respondendo coisa, opinando sobre projeto que quer acabar com a gente, emitindo nota técnica. Eu tô pensando em fazer uma publicação só das nossas notas, porque é muita coisa. Eles não querem que a gente trabalhe”, lamenta a secretária.
Apesar dos obstáculos, ela comemora a simplificação do processo de acolhimento de refugiados LGBTQIA+, aprovada em maio pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio do Conare (Comitê Nacional para Refugiados).
Em dezembro, a Secretaria divulgou a Estratégia Nacional de Enfrentamento à Violência contra Pessoas LGBTQIA+, que vai monitorar dados de violência com desenvolvimento de metodologia para compilação desses indicadores, além de oferecer capacitação de agentes públicos e fomento à produção de conhecimento junto a universidades e instituições de pesquisas.
Integra essa estratégia também o programa Acolher+, que prevê o mapeamento de equipamentos de atendimento e acolhimento às pessoas LGBTQIA+.
“Nós vamos fazer uma apuração das casas de acolhimento para pensar o que vai para cada casa, e já no início de 2024, vamos ajudar com aporte financeiro emergencial para apoio ao recurso humano da casa, para ela poder funcionar, e alimentação. Ao final disso faremos um desenho que possa institucionalizar essa política”, explica a secretária. “O investimento inicial em casas de acolhimento é de 2 milhões, mas é o inicial – é o que a gente começa o ano, não é o que a gente termina.”
Segundo o governo, o objetivo do órgão é construir, a partir dessa experiência, uma Política Nacional LGBTQIA+, a ser publicada no Diário Oficial da União até 2025.
A Secretária Nacional LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos, Symmy Larrat.
Foto: Marcelo Camargo/Agência BrasilRetomada do Conselho
Em abril, o governo federal anunciou a criação do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, no lugar do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, que na gestão Bolsonaro deixou de ter foco nas pessoas LGBTQIA+. O colegiado é um órgão consultivo e deliberativo, composto por 19 representantes do governo federal e outros 19 da sociedade civil, além de conselheiros permanentes.
Segundo Janaina Oliveira, presidente do Conselho, este foi o ano de arrumar a casa, elaborando um regimento interno de funcionamento e emitindo as duas primeiras resoluções do órgão.
A Resolução nº 1 atualiza as orientações para a inclusão da orientação sexual, identidade ou expressão de gênero e nome social nos boletins de ocorrência, além de chamar a atenção para a importância da tipificação correta de crimes LGBTfóbicos. A Resolução nº 2 traz orientações sobre nome social, vestimenta e uso do banheiro em unidades educacionais.
Em dezembro, o 1° Encontro Nacional de Conselhos LGBTQIA+, promovido de maneira inédita pelo Ministério dos Direitos Humanos em parceria com o Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, teve a participação de 22 estados.
“Ouvimos os conselheiros e conselheiras que estão na ponta. Pensamos conjuntamente a política pública, estabelecemos entre nós uma rotatividade de diálogo para pensar a estratégia de forma conjunta”, fala a conselheira.
Entraves no MEC
Apesar da proposta de incentivar a diversidade em todos os ministérios, o governo ainda patina na discussão sobre a população LGBTQIA+ em algumas áreas. É o caso da Educação.
Ao longo do ano, Symmy Larrat foi recebida pelas diferentes pastas do governo, mas relata dificuldades com o ministério liderado por Camilo Santana (PT), que ainda não implementou políticas específicas para combater as fake news que se alastram pelo país em torno da falaciosa “ideologia de gênero”.
“Agora, nós estamos construindo um plano de um programa de trabalho digno e de geração de renda que perpassa por algumas ações da educação. É nesse sentido que a gente está direcionando o diálogo com o MEC, para que ele venha para dentro com ações pontuais de trabalho digno, para geração de renda”, comenta a gestora.
Janaína Oliveira também sentiu o MEC “tímido na política”. “Acho que ele precisa, inclusive, ser mais incisivo no apontamento da política pública para população LGBTQIA+ e no enfrentamento ao discurso de ódio nas escolas. É um espaço que está limitado nas respostas que precisa dar aos grupos vulneráveis.”
Disputas em torno da população T
Em 2022, quando Lula foi eleito, a Antra sistematizou 20 demandas do movimento de pessoas trans e travestis para enviar ao novo governo e sua equipe de transição, em carta aberta. Passado o primeiro ano do novo mandato de Lula, Bruna Benevides diz que as urgências seguem as mesmas.
“O governo, sim, tem aberto possibilidade de diálogo com a sociedade civil, temos tido diversas reuniões em muitas pastas importantes, mas nós não conseguimos realmente avançar. Nós somos recebidas, encaminhamos as nossas propostas, nos colocamos à disposição para prestar todo tipo de informação e até mesmo formação, mas mesmo assim a gente percebe que a nossa pauta está como se fosse interditada no âmbito do Executivo”, pontua.
Para a ativista, Lula tem dificuldade de assumir um compromisso público com a vida das pessoas trans no Brasil, que pelo 15º ano consecutivo foi considerado o país que mais mata essa população, segundo dados da Antra.
“Há alguns acenos, a exemplo da atualização do Processo Transexualizador e da publicação da nova política de saúde trans, mas ainda não é algo concreto. A gente compreende que o governo só vai assumir uma posição efetiva quando romper com as pautas que são defendidas pela extrema direita, quando romper com medo de assumir uma postura antitransfobia”, cobra a liderança da Antra.
“A gente ainda não tem o direito à vida, então como vai pensar numa política educacional? Como que a gente vai pensar numa política de integração com a geração de emprego e renda ou mesmo na assistência social, se nem sobreviver a gente está conseguindo? A própria segurança pública tem falhado miseravelmente por não ter dados ou ações específicas para o enfrentamento”, critica Benevides.
De modo geral, ela acredita que falta de letramento ao governo. “A gente tem falado muito sobre direitos das mulheres, sobre a luta antirracista, sobre direitos dos povos indígenas, proteção à infância, proteção às pessoas mais velhas, mas no caso de pessoas trans, a gente sente que há um certo bloqueio em lidar com essa pauta por falta de conhecimento, sobretudo de gestores e ministros”, aponta.
A ativista menciona dois retrocessos do primeiro ano da nova gestão Lula: o aumento desproporcional no preço da testosterona, medicamento utilizado na hormonização de homens trans e pessoas transmasculinas; e a manutenção do campo “sexo” e da distinção entre o nome social e o nome de registro documentados no novo RG.
“Foi um retrocesso gigantesco o governo escolher manter um modelo de identidade que viola, sobretudo, os direitos trans ao expor o sexo. Em vez de termos avançado, retrocedemos”, afirma Benevides.
Symmy Larrat defende que a demanda de rever o novo RG, proposto durante o governo Bolsonaro, chegou durante a transição de governos, e a nova gestão constituiu um grupo de trabalho com a Cefic (Câmara-Executiva Federal de Identificação do Cidadão), órgão do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, para discutir o tema.
“Esse grupo saiu com a opinião de que o sistema precisa ter os dados, mas o que aparece publicamente ou não? O GT disse que publicamente a pessoa escolhe e o sexo fica no sistema interno, porque [esse dado] não pode deixar de constar por questões internacionais, de saúde, segurança pública etc.”, explica a gestora.
Segundo Larrat, o decreto nº 11.797, publicado no Diário Oficial da União, atribui à Cefic a determinação de quais campos devem aparecer no RG, portanto, a Secretaria enviou questionamento ao órgão, mas ainda não obteve resposta. “O que eu acho é que o decreto não extinguiu essa possibilidade. Tem que ter esses campos obrigatórios, mas não disse onde eles vão estar, quem diz isso é a Cefic.”
Demandas LGBTQIA+ para 2024
Em 2024, as principais políticas voltadas à população LGBTQIA+ a serem trabalhadas, na opinião da conselheira Janaína Oliveira, devem ser a empregabilidade e o combate à violência política contra essa população, em face das eleições municipais. “Os parlamentares e as parlamentares LGBTQIA+ têm sofrido cada vez mais ataques, uma tentativa de impedir que eles possam exercer seus direitos enquanto mandatários, e é preciso continuar provocando o Congresso.”
Do Executivo, Toni Reis demanda uma maior atenção à pauta da educação. “Nós queremos uma educação segura, protegida, acolhedora para toda a população, inclusive para a comunidade LGBT”, cita. Ele também pede a sensibilização e a capacitação dos profissionais de saúde para o atendimento à população LGBTQIA+.
“Na segurança pública e no geral nós precisamos de dados. Hoje nós não temos dados da nossa comunidade, somente algumas pesquisas e levantamentos da sociedade civil, mas não do Estado brasileiro, então é uma das prioridades para a gente. Nós precisamos que assassinatos, discriminações e outros dados que chegam via Disque 100 sejam sistematizados”, adiciona o representante da Aliança.
Benevides endossa o pedido do colega, ressaltando que o IBGE tem sido “resistente” em relação à produção de dados sobre a população LGBTQIA+ – mesmo tendo sinalizado que vai incluir questões a respeito desse segmento em suas próximas pesquisas, Antra, ABGLT, Liga Brasileira de Lésbicas e Mulheres Bissexuais, Rede Brasileira de Pessoas Intersexo questionam as perguntas propostas pelo instituto de pesquisa.
“O IBGE anunciou que vai fazer uma pesquisa específica experimental sobre a nossa população, mas essa pesquisa já nasce com a elaboração de perguntas problemáticas, que não levam em consideração todo o trabalho que nós temos feito em diálogo com o IBGE desde 2016”, destaca a ativista.
No entanto, a principal pauta da população T continuará sendo o “parem de nos matar”. “Nós precisamos que o Brasil assuma um compromisso em enfrentar os altos índices de genocídio da população trans, sobretudo população trans negra, pois 80% das pessoas assassinadas são negras e jovens entre 13 e 29 anos”, menciona.
A ativista pede que, em 2024, o governo federal reconheça as existências de pessoas trans em todos os seus ciclos da vida, em especial crianças, jovens e idosos trans, e que volte sua atenção para os direitos básicos dessa população.
“Nós ainda estamos lutando pelo direito ao nome, que está sendo violado pelo novo RG. Nós ainda estamos lutando pelo direito de usar o banheiro. Nós ainda estamos lutando pelo direito de estudar, não existe uma política educacional que garanta a permanência e o sucesso de estudantes trans dentro de todas as unidades de ensino, em todos os ciclos. Nós ainda clamamos por uma segurança pública antitransfobia, que não apenas gere dados mas pense medidas preventivas para enfrentar essa violência, além de medidas de reparação e de responsabilização, já que muitos casos ficam impunes”, fala a secretária da Antra. “O governo ainda não saiu do armário.”
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