Arte: Tomaz Alencar/Diadorim
eleições 2022

‘Ideologia de gênero’: como o clã Bolsonaro usa internet para atacar LGBTI+

Diadorim mapeou mais de 200 publicações da família Bolsonaro sobre “ideologia de gênero”; pesquisa foi feita através do Metamemo

Quando tomou posse como presidente do Brasil, em 1º de janeiro de 2019, Jair Bolsonaro fez questão de reforçar, diante do Congresso Nacional, seu compromisso de “reerguer a pátria” pela perspectiva conservadora e cristã. Na fala de cerca de 10 minutos ao povo brasileiro, o então novo chefe de Estado recorreu às principais bases de sua campanha eleitoral para afirmar que “libertaria” o país de opressões, incluindo, segundo ele, a “ideologia de gênero”. 

“Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um país livre de amarras ideológicas”, disse Bolsonaro.

Termo guarda-chuva presente no vocabulário do presidente ao longo de seus quatro anos de governo, “ideologia de gênero” passou a aglutinar pautas moralistas mobilizadas pelo bolsonarismo a fim de garantir a fidelidade de uma base eleitoral.

Mas antes de ser levada aos pronunciamentos oficiais e às agendas do governo federal, a expressão sempre foi um dos assuntos mais citados nas redes sociais da família Bolsonaro. Como motor político, a expressão “ideologia de gênero” foi repetida por eles ao menos 206 vezes, desde 2014, no Twitter, Facebook e Instagram de Jair Bolsonaro e de seus filhos mais velhos, o vereador do Rio de Janeiro Carlos, o deputado federal Eduardo e o senador Flávio. 

O dado é de um levantamento da Agência Diadorim através da ferramenta Metameto, sistema que coleta e armazena as memórias das redes sociais de qualquer pessoa ou organização, coletivo, empresa e marca. 

De onde vem o termo

“Ideologia de gênero” começou a ser usada pela Igreja Católica há três décadas, em ataques aos movimentos feminista e LGBTI+, aos avanços de direitos sexuais e reprodutivos e à discussão das desigualdades por uma perspectiva estrutural. Aos poucos, também ganhou fôlego entre cristãos conservadores em geral, tornando-se condensador para qualquer assunto que esses grupos julgassem uma ameaça ao modelo heterossexual de família — incluindo equidade entre homens e mulheres, educação sexual e combate à LGBTIfobia.

“Em meados da década de 2010, o campo político da extrema-direita encontrou na ‘ideologia de gênero’ um termo guarda-chuva capaz de articular uma aliança entre forças políticas heterogêneas. É um termo já antigo, que demorou a emplacar mesmo entre conservadores”, explica à Diadorim o pesquisador Richard Miskolci, professor de Sociologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador do Quereres, núcleo de pesquisa em Diferenças, Direitos Humanos e Saúde.

Miskolci é autor de estudos sobre lutas identitárias, gênero, sexualidade e pânico moral — este último, um conceito que define a mobilização conservadora contra pautas comportamentais. 

Para o sociólogo, no Brasil, a crise do governo de Dilma Rousseff (PT), a votação do Plano Nacional de Educação (PNE) e congêneres estaduais e municipais, e, sobretudo, as campanhas eleitorais de 2016 e 2018, criaram o contexto político oportuno para a apropriação da expressão por determinados grupos sociais. “Tal pânico moral foi uma estratégia de disputa do eleitorado por uma aliança circunstancial entre lideranças políticas não apenas religiosas, mas também com pautas econômicas de Estado mínimo e de luta anticorrupção”, explica.

Em um artigo escrito por ele e pelo pesquisador Maximiliano Campana, da Universidad Nacional de Córdoba, Miskolci afirma que “as aprovações do casamento entre pessoas do mesmo sexo em países como Argentina (2010) e Brasil (2011) foram o ponto de inflexão para que a noção de ‘ideologia de gênero’ passasse progressivamente a delimitar uma gramática política na batalha de empreendedores morais”. 

Segundo os dois, a expressão tão recorrente no vocabulário do clã Bolsonaro é uma das armas de grupos conservadores que “buscam delimitar o Estado como espaço masculino e heterossexual”. 

Análise em números

No levantamento realizado pela Diadorim, a primeira postagem feita pela família Bolsonaro sobre o tema data do dia 24 de abril de 2014. A última — identificada até o fechamento da pesquisa — foi realizada em 16 de agosto de 2022. 

Em pouquíssimas postagens, seus autores se preocupam em definir ou mesmo explicar o uso do termo “ideologia de gênero”. Em 97% das ocorrências, a expressão é utilizada em associação com outros temas, como o combate ao comunismo e ao marxismo, ao aborto, à descriminalização das drogas, defesa das crianças e até do liberalismo econômico.

As lutas antiLGBTIfobia, sob o guarda-chuva da “ideologia de gênero”, aparecem nas publicações como promotoras do “homossexualismo”, da promiscuidade, da sexualização precoce de crianças, da imposição da ideia de que não existe diferenciação entre o masculino e o feminino. Há ainda associação ao crime de pedofilia. Nesse contexto, o combate à discriminação e ao preconceito são distorcidos e propagados como algo semelhante a uma “inversão de valores”.

Em quatro postagens diferentes, a “ideologia de gênero” chega a ser apontada como a motivação para o assassinato de uma criança, Rhuan Maycon da Silva Castro, morto cruelmente aos 9 anos. No episódio, ocorrido em 2019 e que gerou grande repercussão, a mãe da vítima e sua companheira foram denunciadas pelo crime de homicídio e ainda aguardam julgamento.    

Eduardo Bolsonaro é disparado quem mais cita a “ideologia de gênero” nas suas redes: 116 vezes. Na sequência estão Carlos, com 37 repetições; Jair, com 33; e Flávio, com 20. 

O mapeamento da Diadorim reflete estratégias políticas já conhecidas do clã. O filho “03” do presidente da República é notoriamente o mais envolvido com pautas conservadoras internacionais, como o combate à “ideologia de gênero”. Segundo reportagem do site Poder 360, Eduardo foi o filho que mais acompanhou Jair em viagens ao exterior. Além disso, o deputado vem se engajando ativamente na construção de uma aliança internacional de direita, para se opor à suposta influência do Foro de São Paulo. 

A rede social mais utilizada pelos quatro políticos para propagar o pânico moral relacionado à  “ideologia de gênero” foi o Facebook. A plataforma da Meta, utilizada em 58% dos posts analisados, já foi criticada por não priorizar o combate à desinformação no Brasil e por ser a maior fonte de disseminação de fake news na internet.

Desde a primeira citação do termo “ideologia de gênero” pela família Bolsonaro, em 2014, seu uso cresceu exponencialmente até atingir seu pico em 2016, ano em que apareceu 53 vezes. O período coincide com a ascensão do bolsonarismo e a derrubada do governo de Dilma Rousseff (PT). 

Para a cientista política e professora da PUC-SP Rosemary Segurado, esse comportamento durante o processo de impeachment da ex-presidenta petista se deve ao “fato de ela ser uma mulher, do campo progressista, de um partido de centro-esquerda, e por defender essa agenda de direitos da mulher e da população LGBTI+”. 

“Foi uma estratégia política dessa ala conservadora para associar a Dilma e dizer ‘olha ela defende isso, então ela é contra a família, contra os bons costumes, contra a religiosidade e por aí afora’”, afirma Segurado. De acordo com a pesquisadora, a defesa da heteronormatividade e da subordinação da mulher ao homem tem um papel central para quem faz uso da expressão “ideologia de gênero”.

Uso eleitoral

Em 2020 e 2021, anos em que a pandemia de Covid-19 esteve no centro das atenções, as menções à “ideologia de gênero” nas redes sociais da família Bolsonaro caíram drasticamente. O termo, porém, ganhou novo fôlego a partir de 2022, somando 17 citações até 26 de agosto — número que já supera com folga os dois anos anteriores. 

Essa tendência, especialmente em ano eleitoral, não surpreende. A pesquisa “Religião e Voto: uma fotografia das candidaturas com identidade religiosa nas Eleições 2020”, do Instituto de Estudos da Religião (Iser), já havia demonstrado o bom desempenho de candidatos que mobilizam pautas morais ligadas à religião. 

Apesar de representarem apenas 10% do total, candidaturas com identidade religiosa ocuparam 51% das cadeiras nas câmaras municipais em 2020, nas oito capitais analisadas pela pesquisa. Sucesso que pode ter contribuído para tornar a expressão “contra a ideologia de gênero” um mantra dos candidatos conservadores que buscam um mandato neste ano. 

O próprio presidente Jair Bolsonaro retornou ao tema “ideologia de gênero” durante a campanha para sua reeleição. Em 26 de agosto, numa crítica à TV Globo, ele disse que “a emissora pode até continuar promovendo perversidades como o aborto, as drogas, a ideologia de gênero, a inversão de valores e a destruição da família se assim desejar, só que não mais sustentada com rios de dinheiro público”. A postagem foi replicada nas três redes sociais mapeadas pela reportagem.

Mais recentemente, no dia 13 de setembro, Bolsonaro voltou a tocar no assunto, desta vez em entrevista a influenciadores evangélicos no podcast Collab (YouTube). Na ocasião, distorceu o conteúdo do Programa Nacional de Direitos Humanos para atacar seu principal adversário na disputa eleitoral deste ano, em que tenta a reeleição.

“Fui pra tribuna e denunciei o Decreto de 2009 do Lula que falava do PNDH-3. Falei aqui, desconstrução da heteronormatividade. A ideologia de gênero (…) era um ataque frontal à família brasileira o PNDH-3.”

A terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos, assinado por Lula em 2009 e vigente até hoje, prevê o reconhecimento e a inclusão “nos sistemas de informação do serviço público, todas as configurações familiares constituídas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, com base na desconstrução da heteronormatividade.”

O texto defende, portanto, não a destruição das famílias heteronormativas existentes ou que venham a se formar, mas a expansão da noção de família para que outros formatos também sejam considerados como tal.

Para a pesquisadora da Escola Nacional de Gênero e Sexualidade e presidenta da ABGLT, Symmy Larrat, o uso eleitoral do termo “ideologia de gênero” é uma estratégia conservadora para angariar mais votos e minar as conquistas da população LGBTI+.  “No fundo, o que eles querem mesmo é manter as velhas estruturas de poder e hierarquias sociais. Mas nós não voltaremos para o armário”, resume a ativista e pesquisadora.

Combater esse tipo de discurso nocivo, no entanto, não é tarefa fácil, aponta Lucas Bulgarelli, Diretor Executivo do Instituto Matizes. Para ele, primeiro é preciso “enfrentar os efeitos concretos da ativação dessa ideologia de gênero”, que produz mais violência e exclusão contra a população LGBTI+. Ao mesmo tempo, reforça Bulgarelli, devemos nos contrapor às mentiras e associações falsas que são amalgamadas nessa expressão.

Com a proximidade das eleições, a palavra final sobre o sucesso ou insucesso da estratégia bolsonarista será dada na urna. E caberá a cada brasileiro e brasileira decidir.

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