Os desafios de pesquisar a história de personagens LGBTIs marginalizados no Brasil
Recontar a memória de personagens LGBTI+ depende de relatos orais para ser acessada; autores contam as dificuldades de pesquisar e escrever biografias dessas pessoas no Brasil
Quanto da história LGBTI+ deixou de ser registrada? Quantos membros da comunidade foram silenciados em vida e tiveram suas histórias apagadas da posterioridade? Para ambas as perguntas, a resposta é incalculável. Enquanto existe uma produção fervilhante sobre as narrativas daqueles que vivem o amor e ousam dizer o seu nome, pesquisar e escrever sobre personagens marginalizados, acessando e construindo a memória dessas pessoas, é um desafio e tanto no Brasil.
Apesar da escassez de fontes documentais, a licenciada em Pedagogia e policial Vitória Holanda abraçou a tarefa de resgatar a dignidade da travesti Dandara dos Santos, que foi brutalmente assassinada em 2017, no livro “O Casulo Dandara”. Os registros em vídeo do assassinato violento viralizaram nas redes sociais, mas pouco sabemos sobre a trajetória daquela vítima. Outra travesti, Cintura Fina precisou aprender a manusear uma navalha nos anos 1940 e enfrentou diferentes margens (sociais e raciais) para alcançar a independência, como resgatou o pesquisador Luiz Morando em “Enverga, mas não Quebra: Cintura Fina em BH”.
Membro do icônico jornal “Lampião da Esquina”, o escritor e crítico João Carlos Rodrigues contou a vida do autor carioca, mulato e homossexual, João do Rio, em biografia homônima, que levou 10 anos para ficar pronta. Mais recentemente, o jornalista Chico Felitti revelou a história de Ricardo, um personagem queer de São Paulo chamado, de forma pejorativa, como Fofão da Augusta. Nas idas e vindas da reportagem, que se transformou no livro “Ricardo e Vânia” — e que ainda deve ganhar os cinemas —, Felitti descobriu o antigo amor de Ricardo em Paris, a transexual Vânia.
Para entender os desafios de apurar histórias marginalizadas, a Agência Diadorim conversou com esses autores e listou uma série de aprendizados para o resgate da memória LGBTI+.
Seja sincere
“Você pode mudar a história que é contada sobre os arquétipos e as pessoas, principalmente as impressões limitantes ou preconceituosas que são comumente associadas aos membros da comunidade LGBTI+”, observa Chico Felitti, sobre a importância do trabalho de revisitar as narrativas a respeito dessas personagens. Na maioria dos casos, o que se descobre “não é a história óbvia, não é a história que se esperava”, analisa.
Na busca dessas histórias, é preciso que haja uma relação sincera entre quem relata e quem consulta e registra. “Temos que ser honestos o tempo inteiro. Não pode forçar uma amizade que não existe. Construir uma relação leva tempo, então é preciso dispor desse tempo. E ser muito sincero também quanto às suas intenções”, afirma o jornalista.
Para o próximo livro (ainda sem nome divulgado), o autor de “Ricardo e Vânia” conta que se aproximou muito de travestis, drag queens e pessoas intergênero idosas. “Eu não poderia simplesmente dizer: ‘Vim tomar um chá com vocês, fazer companhia, porque você é solitária’. Eu era super sincero: ‘Quero contar essa história, imagino que você tenha feito parte disso e que possa me contar sobre’”.
O jornalista Chico Felitti, autor de “Ricardo e Vânia”
Foto: Marcus Leoni/DivulgaçãoAfinal, o que é história oral?
“É uma história que não foi registrada [de forma institucional, em papéis e documentos]. A gente teve que entrevistar pessoas que viveram, literalmente, uma história oral, porque ela só existe na cabeça e na memória das pessoas que presenciaram aquilo e já estão, relativamente, velhinhas”, comenta Chico Felitti sobre o processo do próximo trabalho. A maior parte da pesquisa foi feita a partir de relatos contados em primeira pessoa. Documentos e registros materiais praticamente inexistem.
Para falar sobre Dandara, Vitória Holanda também dependeu dos relatos orais. Ela foi amiga de infância da travesti cearense, mas perderam contato ao longo dos anos. Na hora de escrever o livro, foi preciso juntar todas as faces da personagem. Para isso, “foi formada uma rede de amigas, com as meninas travestis que moravam fora e também se prostituíram com ela no Rio de Janeiro, em São Paulo e na Itália. A gente se falava por WhatsApp. Com algumas que estavam em Fortaleza, eu acabava me encontrando pessoalmente”, relata Holanda.
Luiz Morando, pesquisador da história LGBTI+ em Belo Horizonte, conta que a história oral é parte importante dos seus estudos. Para contar a história de Cintura Fina, por exemplo, conversou com inúmeras pessoas que a conheceram, o que nem sempre é uma tarefa simples. Com o passar do tempo e a experiência adquirida, aprendeu a não encher as pessoas de perguntas. “Essa ansiedade de querer saber muito atrapalha. Aprendi também a não gravar, porque percebi que isso causava um certo desconforto e colocava a pessoa em um outro lugar”, explica Morando. Hoje tem o costume de anotar algumas expressões e frases e, somente no pós-entrevista, reconstitui a conversa.
“O maior desafio, no Brasil, para pesquisar qualquer coisa, não apenas grupos marginalizados, são arquivos, falta de documentos e depoimentos. A história oral ajuda muito, mas em si mesma não é uma saída. Deve ser vista como um valioso instrumento de pesquisa, mas sempre que possível deve ser complementada com outros tipos de informação”, alerta João Carlos Rodrigues, o biógrafo de João do Rio. A dinâmica entre os registros documentais e orais é o que transforma a história em algo vivo e sempre passível de revisão.
Vitória Holanda, autora da biografia de Dandara dos Santos, sua amiga de infância
Foto: DivulgaçãoOrigens dos relatos orais na imprensa brasileira
“O depoimento oral, principalmente de pessoas das camadas pouco favorecidas [e documentadas] da população é importantíssimo. Curiosamente, os primeiros depoimentos orais recolhidos no Brasil foram as reportagens do João do Rio”, revela o biógrafo Rodrigues. “João do Rio foi quem introduziu a reportagem in loco [com o livro “As Religiões no Rio”, em 1904] e a entrevista [no livro “O Momento Literário”, de 1908] na imprensa brasileira, dentro da Gazeta de Notícias”, pontua. No livro de 1904, foram incluídas entrevistas com pais de santo, algo incomum para a época.
De acordo com Rodrigues, “antes os jornalistas não saíam da redação e escreviam artigos pesadões. A entrevista era tão novidade que Machado [de Assis] se recusou a dar uma para ‘O momento literário’ porque acreditava que era coisa passageira, uma moda que não iria pegar”. Décadas se passaram, João do Rio, o homem não assumido e que sofria com as caricaturas e piadinhas por ser “um gay indisfarçável e pintoso”, acabou do lado certo da história.
Curiosamente, João do Rio só foi redescoberto a partir dos anos 1970, justamente por ser homossexual. “Entre 1930 e 1970 ninguém mais falava nele nem reeditava, estava morto. O lado gay abriu nova janela de estudos, para além da crônica carioca e a ficção decadentista. Mas é claro que pode ser ainda mais conhecido e ainda não alcança o Machado de Assis ou Lima Barreto, mas é bem mais presente que outras estrelas de sua época, como Olavo Bilac e Coelho Neto”, esclarece Rodrigues.
Revirando arquivos de jornais e da justiça
Os poucos documentos e arquivos que contemplam a comunidade LGBTI+ são partes preciosas da história quando disponíveis. A partir deles, o pesquisador Luiz Morando planeja escrever um livro voltado para os casos de mudança de sexo. “Contarei sobre a transgeneridade — mesmo que esse tema não existisse lá atrás — entre 1917 e o final dos anos 1940 em Belo Horizonte”, afirma.
“O projeto de pesquisa sobre memória LGBTI+ é baseado em jornais, inquéritos ou ações penais e relatos orais de pessoas que viveram na época”, explica Morando. Sobre as buscas nas mídias impressas, sente a necessidade de ir à biblioteca, ao arquivo público, passar folha a folha de cada jornal. “Garimpei, coletei tudo o que saiu sobre esse universo nos jornais da cidade. Não apenas aqueles que eram de grande circulação, mas jornais que tiveram curta duração ou nos jornais da imprensa marrom”, conta o autor.
Diante desses periódicos, a dica do pesquisador é ler também nas entrelinhas. “Nas páginas policiais, fica muito explícito quando se trata de uma determinada classe social. Quando são camadas mais baixas, era muito fácil atribuir adjetivos, como anormal, pederasta, pederasta passivo, invertido. Esses são os termos típicos dos anos 1950 para se falar de pessoas homossexuais, lésbicas e travestis”, observa. Fora deste espaço e nas classes mais abastadas, o preconceito é mais sutil. Por exemplo, um indicativo de homossexualidade pode ser o termo “refrigerado” nas crônicas ou colunas sociais.
Outra fonte de informação são os arquivos do judiciário, por meio dos quais Morando consegue acessar a fala desses personagens em primeira pessoa, registrada durante os depoimentos feitos e transcritos, na íntegra, durante um julgamento. No total, mais de 60 processos já foram lidos pelo pesquisador durante os seus estudos, sendo 18 exclusivos sobre a travesti Cintura Fina.
Questões financeiras
Se a maioria dos desafios até agora citados pode ser contornável de alguma maneira, há um grande limitador para a pesquisa da história LGBTI+: a falta de financiamento. As pesquisas são, em sua maioria, todas independentes e sem incentivos públicos ou da iniciativa privada. “Imagina, ninguém quer bancar um livro-reportagem, um documentário, um podcast que seja sobre LGBTI+ marginais. É dificílimo”, afirma Chico Felitti. “As grandes editoras e produtoras dizem que abraçam a diversidade até chegar o orçamento de uma história”, aponta.
“Penso que as pessoas têm a intenção, mas estruturalmente é um mercado tão formatado para contar as mesmas histórias que, quando chega uma diferente, todo mundo trava, não sabem nem como agir. Baseados no medo do inédito, de nunca ter feito nada parecido, a coisa não vai para a frente”, explica o autor. “Ricardo e Vânia” é um dos poucos casos de sucesso nesse universo. Afinal, a reportagem — que deu origem ao livro — publicada no BuzzFeed registrou um milhão de visualizações nas primeiras 24 horas. É um indicativo forte de que há espaço para essas narrativas, mesmo que ainda marginalizadas.