Dados incompletos afetam retrato da violência contra LGBTI+ no Brasil
Governos de 13 estados e do DF não divulgaram número de homicídio de 2019; grupos criam metodologias para pesquisar violência no país
Em março de 2019, Gustavo Bergonzi, de 51 anos, gay, foi encontrado morto, dentro da própria casa, em São José, Santa Catarina. O corpo de Bergonzi foi mutilado com um estilete e deixado ao lado do desenho de um pentagrama feito com o sangue dele. O principal suspeito do crime era um ex-companheiro da vítima, e as características do assassinato levaram a polícia a suspeitar de homofobia, segundo jornais locais.
Mas Bergonzi não consta entre os números oficiais de violência contra LGBTI+ divulgados pela Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina e que compõem o mais recente levantamento de dados de violência no país, o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), lançado em outubro do ano passado, com informações referentes a 2019. Segundo o governo catarinense, não houve assassinato de LGBTI+ – ao contrário de 2018, quando houve três casos.
A falta de registro não significa necessariamente a inexistência de homicídios dolosos – quando há a intenção de matar – de gays, lésbicas, travestis e transexuais em Santa Catarina, como explicam representantes de organizações civis. A incompatibilidade entre os números oficiais e os casos reais de assassinatos é reflexo, na verdade, de uma despadronização dos estados na forma de documentar e classificar as ocorrências. Embora haja uma resolução federal, publicada no Diário Oficial da União, em dezembro de 2014, que estabelece parâmetros para a inclusão de orientação sexual e identidade de gênero nos boletins policiais, o registro não é regra em todo o país.
‘Apagão’ dos números atrapalha políticas
O Anuário do FBSP reúne os números sobre violência no Brasil a partir de informações repassadas pelos órgãos estaduais de segurança pública. No que se refere à população LGBTI+, dos 26 estados e o Distrito Federal, 15 não disponibilizaram os índices de agressão, homicídio e estupro ou divulgaram parcialmente.
Sem dados oficiais que de fato representem a realidade da violência contra LGBTI+, é difícil criar políticas de segurança pública efetivas para proteger a população, como explica o pesquisador Dennis Pacheco, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Os números dariam base, por exemplo, para as estratégias de atuação das autoridades, além de traçarem um perfil detalhado dos crimes, das vítimas e dos agressores e assassinos.
O registro de identidade de gênero e orientação sexual da vítima, em um boletim de ocorrência, seria fundamental para esse levantamento de dados, frisa Pacheco. “Isso é muito simples de ser implementado, é questão administrativa e não precisa de aporte financeiro. Mas essa implementação não acontece porque existe uma falta de sensibilidade [das autoridades públicas]”, diz. De acordo com o pesquisador, uma das razões para a invisibilidade da temática LGBTI+ na segurança pública é o “alinhamento ideológico conservador” na polícia brasileira.
Uma pesquisa também publicada pelo Fórum, em agosto de 2020, mostrou que 24% dos assuntos mais compartilhados por policiais militares nos seus perfis pessoais, nas redes sociais, são conteúdos contra gays, lésbicas e transexuais – atrás apenas de postagens sobre política institucional, que são 49% das publicações. Entre policiais civis e federais, no entanto, a LGBTIfobia não é tema, ainda de acordo com o mesmo estudo.
O posicionamento pessoal de um agente público pode refletir na atuação institucional dele, na opinião de Dennis Pacheco. “Não há contrapesos e protocolo específico de atuação de política institucional que façam frente a esse tipo de posicionamento. Enquanto representante de Estado, o agente tem que estar disposto sobre uma série de parâmetros que vão lhe guiar.”
No início de dezembro, a Clínica de Políticas de Diversidade da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Direito SP lançou uma cartilha contendo protocolo policial para enfrentamento da violência a LGBTI+ no Brasil. O documento orienta agentes públicos tanto na forma de abordagem quanto nos procedimentos de registro de ocorrências e de casos de homotransfobia.
Em junho de 2019, o STF tornou crime a homofobia. 12fev.2019.
Foto: Rosinei Coutinho/STFGrupos criam metodologias alternativas
Enquanto os dados oficiais da população LGBTI+ não são sistematizados de maneira completa e objetiva, organizações da sociedade civil desenvolveram seus próprios critérios de coleta de números, divulgados em relatórios anuais que são as principais referências para o panorama da violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e pessoas intersexo ou não-binárias.
O mais antigo levantamento é feito pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), há quatro décadas. Começou com pesquisas em bibliotecas de Salvador e recortes de jornais enviados por correspondentes pelo Brasil, através dos Correios, e hoje se baseia também em notícias publicadas em sites e blogs – contabilizando não apenas os homicídios, mas também os casos de suicídio. Atualmente, a organização conta com apoio da Aliança Nacional LGBTI+ e da Acontece – Arte e Política LGBTI+.
Em 2016, a Rede TransBrasil e a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) também começaram a contabilizar os casos de mortes de travestis e transexuais e a divulgá-los em dossiês anuais, utilizando métodos similares aos do GGB.
Sayonara Nogueira, vice-presidente do Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE) e uma das organizadoras do dossiê publicado pela Antra, explica que uma das principais dificuldades desses levantamentos é justamente a imprecisão das informações oficiais.
“O nosso levantamento é feito a partir de indicativos de identidade de gênero nos textos das notícias, buscadas principalmente na internet por meio de palavras-chave. Dependemos do olhar de quem escreve aquilo”, conta ela. “Às vezes alguém conhecido avisa de um caso por mensagem também, mas a polícia não vai se dar ao trabalho de alterar informações de identidade de gênero ou incluir orientação sexual se descobrir ou for notificada depois de encerrar o caso. Daí a divergência de números entre o que apuramos e os dados oficiais.”
No caso do relatório do GGB referente a 2019, publicado em abril de 2020, por exemplo, foram contabilizadas 329 ocorrências em todo o território nacional. São 230 casos a mais em comparação com os nove registros de assassinatos dos 13 estados que repassaram dados ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Reflexo do preconceito
Mato Grosso é um dos estados brasileiros onde o boletim de ocorrência tem campos para preenchimento de orientação sexual e identidade de gênero. No entanto, de acordo com o secretário do Grupo Estadual de Combate aos Crimes de Homofobia da Secretaria de Segurança Pública mato-grossense, o tenente-coronel Ricardo Bueno de Jesus, isso não é suficiente.
“Os números não refletem a realidade de nenhum tipo de violência da sociedade, seja ela homofóbica ou transfóbica, haja vista que inúmeras vítimas não denunciam as violações – seja por medo de represálias por parte da família, algum tipo de retaliação em seus empregos, ou por vergonha e culpa que o tema possa trazer para suas vidas pessoais”, conta Jesus.
Mato Grosso está entre os 11 estados que apresentam divergência no número de mortes em 2019, comparando o levantamento do Anuário de Segurança Pública e a pesquisa do GGB – são 9 casos oficiais contra 12 não oficiais. Apenas as informações do Amapá e do Acre, ambos com um registro, são iguais nos dois documentos.
São Paulo foi o campeão nacional, segundo a ONG baiana, com 50 mortes, o que representa 15,2% dos 329 óbitos catalogados. Ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no entanto, o governo informou apenas dois casos. A Diadorim entrou em contato com a assessoria de imprensa do governo do estado para comentar o assunto, mas não teve resposta.
Padronização dos registros é urgente
A solução para um retrato mais completo da violência contra LGBTI+ no Brasil tem que partir do governo federal, segundo Sayonara Nogueira, com medidas que unifiquem e padronizem o levantamento de dados sobre essa população do país, não só para fins de combate à violência, mas também de inclusão e permanência nos espaços.
“Eu fui professora do ensino fundamental e havia um estudante cadeirante na escola em que eu trabalhava, mas o prédio não tinha elevador, então tínhamos que nos reunir, alguns professores, para levá-lo ao pátio na hora do intervalo todo dia, além do horário de entrada e saída. Isso desestimula”, lembra ela. “Não é suficiente permitir que a pessoa se matricule, entende? É preciso entender as necessidades das pessoas e criar condições para elas participarem, se envolverem no que está sendo proposto. É urgente olhar para as pessoas LGBTI+ com esse olhar mais atento.”
Ainda de acordo com Sayonara, em 2018, a Antra fez o pedido para inclusão de pergunta sobre identidade de gênero no próximo censo, adiado para 2021 por causa da pandemia de Covid-19, mas não tiveram retorno. “O Brasil tem dimensões continentais, só quem consegue cobrir todo o território é o governo federal. Mas, nesse governo atual, a gente sabe que isso não vai acontecer”, comenta, se referindo ao recorrente rechaçamento do governo Bolsonaro às pautas relacionadas à diversidade e à garantia dos direitos fundamentais à população LGBTI+.