O significado da epidemia de HIV/Aids para a comunidade LGBTI+
Professor de Direito explica por que mobilização para enfrentamento à síndrome é um dos capítulos mais bonitos das lutas sociais no Brasil
Era o começo da década de 1980, quando ainda reverberavam os ecos da potente onda libertária que abalou o mundo em 1968. Movimentos negros, feministas, ambientalistas, pacificistas, LGBTIs refundaram os horizontes de emancipação ao ampliar os limites da luta política. Os corpos, os desejos, as identidades tornaram-se suportes e plataformas da busca pela liberdade, pela igualdade e pela diferença. Classe e nação seguiram sendo vetores fundamentais das mobilizações, mas um novo repertório de marcadores sociais, tais como raça, gênero e sexualidade, passou a ocupar um papel incontornável para pensar e fazer política.
É nesse contexto que emerge um movimento organizado de pessoas LGBTI+. Ainda que rastros de lutas e resistências anteriores não devam ser esquecidos ou subestimados, é a partir da Rebelião de Stonewall, em 1969, que muita coisa se altera com a radicalização de uma agenda da diversidade sexual e de gênero. Os ativismos deixam de pleitear apenas assimilação e integração nos modos hegemônicos de vida para reivindicar, a partir do orgulho de ser diferente, uma refundação da própria sociedade e de sua gramática moral.
Uma série de transformações e tensões vai marcando esse movimento LGBTI+, cada vez mais plural na sua composição e formas de atuação. O início da década de 1980, contudo, vai colocar um dos maiores desafios já vividos por essa comunidade: a epidemia do HIV/Aids. Chamada de “peste” ou “câncer” gay, a doença se alastrava rapidamente. Casos começaram a se multiplicar em progressão assustadora no mundo todo. Autoridades públicas, especialistas da saúde e indústrias farmacêuticas pouco se engajaram para salvar vidas. As próprias pessoas vivendo com HIV/Aids é que se articularam para cobrar ao Estado e ao mercado o avanço no conhecimento, na prevenção e no tratamento. Com uma potente resposta comunitária, marcada por muita luta, foi possível politizar e legitimar a doença como objeto de políticas públicas.
Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro é referência mundial no tratamento de HIV/Aids.
Foto: Marcello Casal Jr./Agência BrasilNo entanto, em uma comunidade LGBTI+ bastante diversa, as visões que circulavam foram muitas vezes diferentes e até contrapostas. A doença representava, naquele momento, uma ameaça à revolução do desejo e do amor livres que os homossexuais encarnavam. Parecia, à primeira vista, mais uma criação perversa do discurso médico para tentar controlar a vida, os corpos e a sexualidade daqueles que não se conformavam aos padrões de uma sociedade que buscava restituir a centralidade da família tradicional, patriarcal e heteronormativa. Assim, alguns setores da comunidade olhavam com ceticismo e desconfiança o risco de repatologização dessas identidades. Outros, contudo, engajaram-se desde a primeira hora no diálogo com demais atores, estatais e da sociedade civil, para ampliar o enfrentamento à doença.
Essa mobilização das pessoas vivendo com HIV/Aids e do movimento LGBTI+ brasileiro é um dos capítulos mais bonitos das lutas sociais no Brasil. Muitas pessoas morreram e há um trauma coletivo associado à doença dentro da comunidade LGBTI+, sobretudo pelo descaso como foi tratada no início pelos governos e empresas. Mas graças a esses esforços, o país conseguiu se tornar referência mundial em sistema de saúde (viva o SUS!) e, particularmente, nas políticas de HIV/Aids.
A epidemia colocou a sexualidade no centro dos debates públicos, permitindo reflexões, conquistas e uma estrutura de financiamento para os ativismos inimaginável até então. Inflexões conservadoras, como a que vivemos hoje, não à toa investem precisamente contra as liberdades sexuais e reprodutivas, contra o Sistema Único de Saúde, contra os direitos sociais e o financiamento das políticas públicas no Brasil. Mas não passarão.
Renan Quinalha
Professor de Direito da Unifesp, advogado e ativista no campo de Direitos Humanos. É autor de “Justiça de Transição: Contornos do Conceito” (Expressão Popular) e co-organizador de obras como "História do Movimento LGBT no Brasil" (Alameda).