Foto: Unsplash
justiça

Branda e desconhecida: em 20 anos, lei anti-LGBTIfobia de SP aplicou apenas 28 multas

Uma das pioneiras no Brasil, legislação paulista resultou numa média de 23 processos anuais, com 168 condenações — a maioria foi advertência

Entre janeiro de 2002 e maio de 2021, São Paulo instaurou 467 processos administrativos para investigar denúncias de LGBTIfobia no estado, mas em apenas 28 deles houve aplicação de multas — o que representa 5,9% dos casos. Esses dados foram levantados pela Agência Diadorim, por meio da Lei de Acesso à Informação.

A punição a atos discriminatórios em razão de orientação sexual e identidade de gênero está prevista na lei paulista nº 10.948, promulgada em novembro de 2001 e uma das pioneiras no Brasil. Em duas décadas, a legislação resultou numa média de 23 processos anuais, com 168 condenações — a maioria, 140 delas, advertências. Já as multas — 26 de 1 mil UFESPs (unidade fiscal, equivalente a R$ 29,09) e 2 de 3 mil UFESPs — totalizam cerca de R$ 940 mil em valores atuais. A penalidade máxima prevista, a cassação de alvará de funcionamento, não foi aplicada em nenhum dos casos.

A aplicação da lei é feita pela Secretaria da Justiça e Cidadania de São Paulo, a partir de registros de Boletim de Ocorrência ou de denúncias à Ouvidoria da pasta e à Coordenação de Políticas para a Diversidade Sexual. O órgão abre a instauração de processos administrativos e os encaminha a uma comissão especial. Inicia-se então a análise do caso, “adotando-se todas as diligências necessárias, muitas vezes consistentes em providências que demandam órgãos externos, tais como Defensoria Pública e delegacias”, como explica o governo.

A média de tempo para conclusão da investigação é de dois anos em cada processo. De acordo com a Secretaria de Justiça e Cidadania, o tempo se deve, em algumas situações, além dos trâmites comuns, à dificuldade de localizar o denunciado para proceder sua citação.

A lei paulista foi proposta pelo então deputado estadual Renato Simões (PT) e assinada pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB). A legislação entrou em vigor quatro anos depois da criação do Programa Estadual de Direitos Humanos (PEDH), em 1997, na gestão Mário Covas (PSDB), que estabeleceu instrumentos e mecanismos para a garantia dos direitos de grupos minorizados. O PEDH seguia as principais recomendações do programa nacional publicado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) no ano anterior.

Ao contrário do texto do governo federal, no entanto, em que havia apenas duas citações à palavra “homossexuais” e uma a “orientação sexual”, entre as políticas definidas por Covas em São Paulo estava um tópico intitulado “homossexuais e transexuais”, se referindo a “gays, lésbicas, travestis e profissionais do sexo”. No trecho, o estado propôs criar, apoiar e divulgar ações de enfrentamento ao preconceito em esfera pública e privada, além de colaborar com o funcionamento de centros de acolhimento para adolescentes expulsos de casa.

“No ano 2000, nós fizemos um levantamento e verificamos, pela Comissão de Direitos Humanos da Alesp, que a grande maioria dos compromissos do estado com os direitos LGBTs não tinham saído do papel”, lembra Renato Simões. “Apresentamos vários projetos de lei, entre eles, aquele que se transformou na lei nº 10.948, com o objetivo de tornar realidade o compromisso do estado de São Paulo na punição da LGBTfobia. São medidas administrativas, porque não é possível legislar sobre matéria penal em legislação estadual, mas foi um grande avanço para a época, quando se lutava em todo país pela criminalização da homofobia.”

Desde a promulgação da lei de São Paulo, 12 outras similares a ela foram aprovadas em assembleias legislativas do Brasil. Somente em junho de 2019, o STF (Supremo Tribunal Federal) permitiu a criminalização da homotransfobia em âmbito nacional, igualando o ato como racismo. A pena é de 1 a 5 anos de prisão.

Desconhecimento da lei é o principal gargalo

Em São Paulo, a lei estadual é usada para punir tanto pessoas quanto empresas com advertências, multas e até cassação de alvará de funcionamento. Na maioria das vezes, ela tem sido aplicada em casos de discriminação no ambiente familiar e em locais de trabalho, como explica o defensor público Vinícius Silva, coordenador auxiliar do Núcleo de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial da Defensoria Pública do Estado.

“Ela é aplicada bastante em casos de discriminação interpessoal, individual, mas ainda há uma dificuldade de aplicação da lei em face de instituições e de servidores públicos”, conta Silva. “A lei trabalha com uma lógica de violação de direitos. É uma lei do início do anos 2000, que dialoga com a busca de reconhecimento de direitos e também no sentido de que a população LGBTI+ muitas vezes é impedida de acessar espaços públicos e estabelecimentos comerciais por conta da sua orientação sexual e a sua identidade de gênero.”

Para Vinícius Silva, trata-se de uma lei com grande potencial de ser utilizada, principalmente, em face de pessoas jurídicas, como comércios, porque possibilitaria maior sanção administrativa. Entretanto, segundo o defensor público, embora esteja em vigor há quase 20 anos, a legislação ainda é pouco conhecida entre grande parte da população LGBTI+ do estado, com mais casos de aplicabilidade na capital.

O bacharel em Direito Leo Paulino Barbosa foi uma das pessoas que já recorreram à lei nº 10.948 em um caso de transfobia que sofreu. Em 2015, um banco recusou a inclusão do nome social de Barbosa na conta e no cartão dele. “Eles desrespeitaram meu nome social enquanto eu não tinha retificado [a certidão de nascimento] e continuam desrespeitando depois de retificado”, conta. Ele aguarda agora o resultado da última audiência do caso, realizada em julho deste ano. “É uma violação ao meu direito de reconhecimento de personalidade. Não é frescurinha.”

Barbosa concorda com a afirmação do defensor público sobre o desconhecimento da população acerca da lei paulista, principalmente em espaços periféricos e no interior. “A gente só conhece aqui. Quando a gente entra na periferia, ninguém sabe dessa lei. Falta um pouco dessa percepção do estado sobre a LGBTfobia.”

Parada LGBT de São Paulo, em 2016, a maior do Brasil. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Lei precisa de atualização, dizem entrevistados

Após 20 anos, além de melhor divulgada, a lei precisa ser atualizada. É o que defendem os entrevistados pela reportagem, inclusive a própria Secretaria de Justiça e Cidadania, que, em nota, afirmou: “A lei estadual nº 10.948 é de 2001, portanto, são necessárias algumas mudanças que acompanhem a evolução da sociedade, como: alteração no enquadramento dos atos discriminatórios e situações de agravamento das penalidades, por exemplo, no caso de discriminação coletiva proferida pelos meios de comunicação ou que incitem a violência, gradação das penalidades, retratação, casos de mediação, entre outros.”

Para o autor da lei, o ex-deputado Renato Simões, os ajustes estão ligados a dois pontos centrais, que são o conhecimento da sociedade e a criação de um fundo especial. “Teríamos que aprimorar muito a divulgação da lei. Ela prevê, expressamente, que o estado deveria realizar campanhas de divulgação, e isso raramente foi feito”, explica. “Outro elemento que vem sendo também discutido na Assembleia Legislativa é a atualização dos valores referentes às punições e a sua destinação, de modo a tornar mais efetivo o apoio da receita desta lei no financiamento de políticas públicas para garantia dos direitos LGBTs.”

Atualmente, o dinheiro recolhido com as multas é direcionado aos cofres do estado, sem necessariamente ser usado em políticas anti-LGBTIfobia.

Presidenta da ABGLT (Associação Brasileira de Gays Lésbicas Bissexuais Travestis e Transexuais), Symmy Larrat acredita que as alterações da lei não passam, necessariamente, pelo seu conteúdo, mas pela metodologia. “Há uma dificuldade na aplicação dessa legislação no estado de São Paulo porque ela passa primeiro pelo Conselho Estadual LGBT, que vai avaliar, então tem um trâmite que dá mais morosidade. E quanto mais morosidade, quanto maior a impunidade, maior o descrédito das pessoas nos mecanismos”, afirma.

Segundo Larrat, 467 denúncias em 20 anos de lei estadual “demonstra que as pessoas não estão denunciando”. “Quanto mais celeridade nos déssemos aos processos e mais visibilidade nós déssemos para a aplicação positiva da legislação, com certeza nós teríamos mais êxito e maior demanda sendo apresentada”, diz.

Para a deputada Erica Malunguinho (PSOL), a lei nº 10.948 é um marco importante para as lutas dos movimentos LGBTI+, assim como outras vitórias que foram alcançadas com o tempo. “De todo modo, discutindo sobre eficácia e ineficácia, penso que nenhuma lei se esgota em si mesma, e isso está para além de sua aplicação. Um exemplo é a Lei Maria da Penha e o aumento de feminicídio há cada ano. Uma lei como a 10.948 deve vir acompanhada de um pacto social”, explica.

Ainda de acordo com Malunguinho, combater a LGBTIfobia por meio de multas é uma ferramenta válida, mas cabe ao poder público estipular outras estratégias — inclusive do ponto de vista pedagógico nas escolas — que incidam de forma mais ampla. Isso diz respeito à disputa de narrativas, sendo necessário reorientar o imaginário brasileiro.

Na Alesp, está em tramitação o PL 475/2019, protocolado pela deputada Professora Bebel (PT), que propõe a destinação dos valores recebidos com as multas aplicadas pela lei nº 10.948 para a implantação de políticas públicas para a população LGBTI+ no estado de São Paulo. “É sabido que carecemos de assistência social para essa população. A abertura de casas de acolhimento é uma demanda histórica dos movimentos e o valor arrecadado com as multas poderia ter esse fim. O projeto de lei [475/2019] está na Comissão de Constituição, Justiça e Redação e recebeu parecer positivo. Vamos acompanhar.”

assine nossa newsletter

Entre para O Vale. Receba os nossos destaques e um conteúdo exclusivo. Tudo direto no seu e-mail.

Ao se cadastrar, você aceita a política de privacidade da Diadorim.

Publicidade

Publicidade

leia+