Pessoas em manifestação seguram o cartaz "Ninguém Solta a Mão de Ninguém".
Foto: Reprodução/Mídia Ninja
política

O identitarismo e o bode expiatório

O bode expiatório tem uma longa tradição entre nós. Nos tempos menos metafóricos do Velho Testamento, o caprino em questão, na verdade, era dois: um era oferecido em sacrifício diante de Deus, no Templo de de Jerusalém, na época do Yom Kippur; o outro recebia todos os pecados de Israel e então era solto no deserto, carregando para longe as iniquidades da nação.

Muitas foram as encarnações do bode expiatório ao longo da história. Para René Girard, o tal cabrão sacrificial nada mais é do que a antiquíssima e sempre presente representação da violência mimética. Aquele tipo de violência partilhada, irresistivelmente contagiante e capaz de galvanizar uma coletividade contra um indivíduo ou objeto, que transforma-se no portador de todos os males e causador de todas as crises. Poucas forças, afinal, são tão poderosas quanto o mimetismo homicida da multidão.

No nosso tempo, os bodes expiatórios se multiplicaram. No apagar das luzes das eleições municipais deste ano (e do pleito presidencial dos EUA), parte da esquerda, inclusive, já encontrou o seu: o identitarismo. 

Sem muita explicação sobre o termo, o sociólogo Jessé de Souza foi um dos primeiros a apontar o dedo para o tal cambalacho identitário. No que foi seguido por uma turba de pretensos analistas políticos e propagadores certificados de besteira, como o ex secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Cappelli. 

Do que se compreende desse emaranhado de confusões, que dissolve questões relevantes em um bocado de ressentimento e generalizações, a culpa do ocaso da esquerda seria dos movimentos LGBTQIA+, negro, feminista e indígena, que teriam ganhado uma atenção desmesurada nos últimos tempos, em prejuízo de temas e identidades digamos mais universais e importantes. 

A proposição, além de nebulosa, não tem pé na realidade. O candidato derrotado do PSOL em São Paulo, Guilherme Boulos, mal falou sobre LGBTs em sua campanha, tratou o racismo en passant, além de ter abraçado pautas historicamente identificadas com o centro e com a direita, como o armamento das guardas civis e o empreendedorismo individual. O resultado foi uma derrota acachapante.

Maria do Rosário (PT), em Porto Alegre, foi pelo mesmo caminho de Boulos, que, por sua vez, seguiu pari passu o mapa da derrota de Marcelo Freixo, no Rio de Janeiro. Mas há exemplos para todos os gostos: Lúdio Cabral (PT), em Cuiabá, conseguiu uma surpreendente votação fazendo cosplay de evangélico, enquanto Vinicius Castello (PT), em Olinda, um jovem, gay, preto e periférico, quase derrotou a candidata do atual prefeito e da governadora pernambucana, sem esconder nenhum dos seus predicados.

Quadrinho de Laerte, na Folha de S.Paulo

Quadrinho de Laerte, na Folha de S.Paulo em 7 nov. 2024.

Reprodução

Além disso, duvido apontarem alguma gestão municipal, estadual ou federal de esquerda que tenha pecado pelo zelo excessivo com políticas LGBTQIA+, ou de promoção da igualdade racial e de gênero. Desse crime, certamente, não há culpados em nosso país. 

Mas a realidade é complexa demais para o nosso estreito debate público. Mais cômodo é depositar todas as mazelas da esquerda num objeto de aversão e surfar na violência mimética, tão facilmente propagada pelas redes sociais. E verdade seja dita: as minorias e grupos marginalizados sempre deram excelentes bodes expiatórios.  

Para quem se propõem a fazer o papel da multidão raivosa, pouco importa que a esquerda institucional e hegemônica tenha por décadas aderido a um projeto econômico de espoliação, que tenha abraçado o pragmatismo inconsequente, frustrado promessas de desenvolvimento e se envolvido em escândalos de corrupção em série. Pouco importa, também, que a esquerda tenha se tornado a fiadora de uma ordem social injusta e a paladina de instituições elitistas e disfuncionais. Para quem aponta o dedo para o identitarismo como a origem do pecado no mundo, tudo isso pouco importa. Na opinião dessas pessoas,  a culpa da ascensão da extrema direita é, e sempre será, da trans debochada, que teima em querer viver mais do que 35 anos.

Os movimentos LGBTQIA+, negro, indígena e feminista foram úteis enquanto serviram para apazinguar consciências pesarosas e demarcar uma diferença relacional (cada vez mais efêmera) com a direita. E não foram poucas as lideranças e organizações desses movimentos que abraçaram sem pestanejar o indigno papel de muleta moral de uma política em escombros. Uma política unicamente interessada em disputas simbólicas e de representatividade, eis que abriu mão de transformar a realidade concreta da maioria das pessoas.  

Agora, esgotada sua utilidade para certa esquerda, aos identitários de plantão cabe um último papel: o de carregar no lombo e expiar as iniquidades do nosso tempo.

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Paulo Malvezzi

Co-fundador e editor da Diadorim. Advogado, bacharel em Direito pela Mackenzie e mestre em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Foi coordenador geral do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional e assistente da Ouvidoria Geral da Defensoria Pública de SP.

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