Foto: Agência Brasil/Acervo
justiça

Exigir cirurgia para trans irem a prisões femininas é política transfóbica do governo de SP

Descumprindo decisão do STF, a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo só autoriza a transferência para unidades femininas de mulheres trans que fizeram cirurgia de redesignação sexual

Embora muitas pessoas tenham receio de se autodeclarar LGBTQIA+ no sistema carcerário, na pesquisa “LGBT nas prisões do Brasil: Diagnósticos dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento”, realizada em 508 unidades prisionais e publicada em 2020, foram identificadas 4.748 pessoas LGBTQIA+. O cenário para essa população encarcerada é de potencialização das vulnerabilidades próprias do sistema prisional e da LGBTfobia estruturantes, de forma que os desvios da cisheteronormatividade são utilizados como ferramentas de tortura. 

No dia 2 de agosto de 2023, foi veiculada matéria, pelo portal UOL, sobre a situação alarmante das mulheres trans e travestis no sistema penitenciário paulista. A Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo só autoriza a transferência para unidades femininas de mulheres trans que fizeram cirurgia de redesignação sexual. As consequências disso são os relatos de graves violações de direitos humanos, desde violência institucional até de violência física, sexual e moral dentro do sistema carcerário.

“Isso aqui parece uma vagina?”, perguntou o enfermeiro de uma prisão masculina em São Paulo. Diante dele, estava uma detenta, nua da cintura para baixo. Ele fotografou os órgãos genitais dela. Levou as imagens para um superior, que disse: “Era o que eu queria. O pedido vai ser negado”.

Até o dia 14 de agosto, o que valia era o entendimento da ADPF 527, que estabelece o direito de mulheres trans e travestis de cumprir pena em penitenciária feminina, colocando o governo do estado em situação de descumprimento flagrante da determinação do STF. Diversos casos individuais das internas foram encaminhados ao STF, havendo decisão favorável do Ministro Barroso em um deles, em 7 de julho deste ano, estabelecendo que a cirurgia não é requisito para a validação do direito à transferência.

Derrota parcial das mulheres trans no STF

No dia 14 de julho, a decisão do STF foi revista, garantindo o direito à transferência para mulheres trans, mas não para travestis. Valendo o seguinte entendimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ):

Resolução 348/2020 

Art. 8º De modo a possibilitar a aplicação do artigo 7o, o magistrado deverá: 

[…]

II – indagar à pessoa autodeclarada parte da população transexual acerca da preferência pela custódia em unidade feminina, masculina ou específica, se houver, e, na unidade escolhida, preferência pela detenção no convívio geral ou em alas ou celas específicas, onde houver; e (redação dada pela Resolução n. 366, de 20/01/2021) 

III – indagar à pessoa autodeclarada parte da população gay, lésbica, bissexual, intersexo e travesti acerca da preferência pela custódia no convívio geral ou em alas ou celas específicas. (redação dada pela Resolução n. 366, de 20/01/2021)

A decisão é uma derrota, na medida que retrocede da definição da ADPF 527 e não garante o direito de transferência para as travestis. É uma compreensão binária e medicalizadora do gênero, que não abarca a diversidade das identidades trans e a garantia de seus direitos como tal.

É importante compreender o contexto no qual se dá uma decisão desse tipo. A transfobia vem sendo o carro chefe da política bolsonarista, mais do que nunca. Desde o caso Nikolas Ferreira, no 8 de Março deste ano, no qual o deputado vestiu uma peruca loira e subiu no pulpito do plenário da Câmara dos Deputados para afirmar que as conquistas das pessoas trans são um ataque aos direitos das mulheres cis até os mais diversos projetos de lei antitrans que vêm sendo apresentados. Na Alesp, além de uma série de proposições que atacam frontalmente a comunidade T, uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi instalada para intimidar equipamentos de saúde pública que realizam terapia de hormonização em crianças trans.

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Uma decisão desse tipo, além de permitir o seguimento de graves violações de direitos humanos, fortalece a extrema-direita golpista, ao avesso de qualquer suposta aspiração democrática do STF.

Mas cabe afirmar um elemento importante: o critério estabelecido pela resolução do CNJ é a autodeclaração, e não a realização de qualquer procedimento médico, fato que ainda coloca o estado de São Paulo em desacordo com as definições dos tribunais superiores, na medida em que segue exigindo a cirurgia de redesignação de gênero.

A cirurgia de redesignação é de difícil acesso pelo SUS e extremamente cara na rede particular de saúde. Além disso, nem toda pessoa trans deseja passar por uma cirurgia desse tipo, sua obrigatoriedade constitui uma violação da nossa liberdade sobre nossos corpos, servindo apenas como argumento para a perpetuação da transfobia institucional.

Devemos seguir lutando para que avance a compreensão do STF sobre o direito das pessoas trans, mas mais do que isso, para garantir os direitos das pessoas trans vitimadas pela política transfóbica do governo do estado de São Paulo.

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Carolina Iara

Carolina Iara é codeputada estadual pelo PSOL-SP, mulher intersexo, travesti, negra e vive com HIV/aids. É mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisa sobre empregabilidade de pessoas negras que vivem com HIV. Também é escritora e poeta.

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