Em nome de Deus: fundamentalismo contra a diversidade
“Precisamos falar sobre a influência do discurso fundamentalista religioso nas famílias e suas implicações para toda a sociedade”, diz autor do livro “Semente de Vida”
Onde começa a violência contra nós, pessoas LGBTI+? O que explica a apresentação de ao menos 69 projetos de lei antitrans nas casas legislativas de todo o País só nos últimos três meses? Que ideia segue sustentando, 24 anos após o Conselho Federal de Psicologia banir as terapias de conversão sexual, a busca pela “cura gay”? Por que determinados jovens e crianças continuam sendo expulsos de casa, rejeitadas por suas famílias? São muitas perguntas para responder uma história de condenação que se apresenta, há séculos, a grande parte das pessoas LGBTI+.
No início de 2018, comecei a investigar a origem do ciclo de exclusão às diversidades sexuais e de gênero. Não demorou muito para que a pesquisa me direcionasse a olhar para onde toda história começa, o seio familiar. E para como a religião, em um país onde 86,8% dos lares são cristãos, atravessa o debate — ainda que seja tão evitado pensar na questão sob esse prisma.
Foi então que me juntei a outras pessoas pesquisadoras, todas nós cristãs, para, em um exercício crítico e decolonial, compreender que o discurso do cristianismo colonizador opera, ainda hoje, por meio da criação e reiteração de modelos que se estruturam em normas de identidade e de relações afetivas que rejeitam a diversidade.
Nesse contexto, à semelhança dos estudos sobre raça que denunciam o racismo como sendo estrutural e estruturante, encontramos uma LGBTfobia estrutural e estruturante que se sustenta, principalmente, no que foi sacralizado pelo cristianismo tradicional, hegemônico e, sobretudo, fundamentalista, como norma — as tais heterossexualidade e cisgeneridade compulsórias.
Tudo isso está, corajosa e cuidadosamente, compilado no livro que acabamos de lançar. “Semente de Vida: rejeição e aceitação de filhos/as/es LGBTI+ em lares cristãos”, da Editora Saber Criativo, parte de uma série de vozes manifestadas em incontáveis horas de pesquisa e entrevistas com pais, mães, cuidadores e filhos — além de especialistas de diversas áreas (teologia, saúde mental, ciências políticas, família e estudos comunitários) — para revelar a origem do ciclo de exclusão e violência contra as pessoas LGBTI+.
Não há uma única forma de ser “família cristã” no Brasil. Para quem busca educar os filhos à luz da Bíblia, alguns textos, se observados de forma fundamentalista, resultam em ʽverdades bíblicasʼ que desconsideram o que a Ciência e os marcos regulatórios de Direitos Humanos já dizem sobre as diversidades sexual e de gênero.
Esse mecanismo sutil de interpretação da palavra bíblica padroniza comportamentos, criando prejuízos sociais incalculáveis. De acordo com a teóloga, mestra e doutora em Ciências da Religião, Revda. Ana Ester, uma das autoras do livro ao meu lado: “O discurso fundamentalista cristão opera como um pedagogo colonial que ensina como as coisas são e como as relações devem se dar. Enquanto não nos debruçarmos sobre este debate, continuaremos a gerar condenação e morte”.
Apesar de não ser um projeto religioso, nosso livro apresenta um apanhado de vozes de lideranças, coletivos e organizações comprometidas em anunciar uma visão amorosa de Deus, que celebra e afirma a diversidade. E antes que você pense que a religião não deveria entrar neste debate e pare de ler este texto, eu te faço um apelo.
Precisamos compreender que a disputa narrativa em curso passa pelas emoções e pela função da fé na vida das pessoas. As últimas eleições evidenciaram essa dimensão do debate para a defesa da democracia e dos direitos humanos. E seguirá assim.
“Enquanto o discurso fundamentalista religioso toma o Congresso Nacional com sua violência descabida, o discurso ético religioso já toma as ruas com sua disposição à união”Livro “Semente de Vida: rejeição e aceitação de filhos/as/es LGBTI+ em lares cristãos”
Como dizemos em outro trecho da obra, é urgente que passemos a investir em “esforços de reimaginação de um Deus que sai de um lugar rígido, hierárquico e violento por um que se permite encarnar no afeto, na celebração da vida e de sua potência criativa”. Só assim iremos frear o contágio do mito da “ideologia de gênero”, o ódio e a intolerância.
Nosso intuito, com essa obra, é fortalecer as alianças entre o campo progressista e o campo progressista religioso. Precisamos de mais pessoas aliadas e preparadas para fazer essa disputa. A sinopse do livro já aponta. Muitas delas já estão prontas para ouvir esse chamado: “Enquanto o discurso fundamentalista religioso toma o Congresso Nacional com sua violência descabida, o discurso ético religioso já toma as ruas com sua disposição à união”.
Independente de orientações sexuais e crenças religiosas, este livro é um convite para todas as pessoas que estão cansadas de ver crianças e jovens serem condenados a sofrer. Um chamado para que possamos assumir que o que melhor expressa a imagem de Deus é a diversidade, em defesa da vida e da justiça social.
Gut Simon
Gut Simon é comunicador social e estrategista de advocacy. Bissexual, homem cisgênero e católico, é idealizador e coautor do livro "Semente de Vida", sobre família, fé e diversidade.