Cena do espetáculo 'Morte e Vida Severina', em cartaz de abr. a jun. 2022. em SP. Foto: João Calda/Divulgação
saúde

‘Saúde mental é insistir’

“Que toda forma de apenas estar, nem bem nem mal, produzida pela insistência possa ser reconhecida”, deseja a psicóloga e psicanalista

Este texto levou três meses e meio para sair. O convite foi feito em 20 janeiro e o pedido era que escrevesse algo sobre saúde mental diante do estado de franca decomposição em que o país se encontra. Definido o tema, imagino que muitos compreendam os motivos da demora, mas como é sempre melhor dizer que supor, registro: foi muito difícil escrever sobre o fim dos tempos, sobre a morte de tudo, sobre a falência total de todas as coisas. Dada a ser otimista — como já afirmei aqui, mais por afiliação epistemológica que por ingenuidade — ultimamente tenho sido surpreendida por um pessimismo incorrigível, que se instalou onde a esperança costumava estar e fazer boa companhia, sempre muito amparada pelas pequenas alegrias, as histórias de transgressão, o exemplo da minha mãe, o entusiasmo dos pequenos avanços coletivos, e fundamentada pela dialética dos livros e do cotidiano. Mas quando essas coisas deixam de ter efeito, o que falar de saúde mental?

Como alguém que está no campo acadêmico, entendo que toda fala ou escrita implicam uma tarefa além de transmitir conceitos. Mais que fazer compreender certos fenômenos ou fatos da realidade e refletir criticamente sobre eles, os textos deveriam, fundamentalmente, transmitir a crença na possibilidade de transformar o mundo e contagiar com a ideia de que mudanças são possíveis. Mas diante da cena que vivemos, ficou quase impossível se contagiar com isso. É plausível, nestes tempos, nutrir qualquer esperança? Me dei conta de que, talvez, muito possivelmente, o texto não tinha saído por isso: desta vez, não havia nada de bom a transmitir.

Mas ainda assim, havia um pedido, que permaneceu e pacienciou, como essa escrita. Um pedido que retornou e de novo esperou, aguardou e seguiu reafirmando que era preciso escrever; um pedido que me fez lembrar de que eu tenho um vínculo com este veículo, com as pessoas que o constroem, com aqueles que leem, com a política e com a fala e a palavra. E por isso, mesmo depois de tantas desistências, mais vezes retornei a ele e aqui ele está.

E o que isso tem a ver com saúde mental?

Ingenuamente, de modo geral e no senso comum, tendemos a entender saúde mental como algo da ordem do bem estar psicológico. Nesse lugar do debate, cada vez mais público, saúde mental tem a ver uma condição emocional essencialmente positiva, que deve ser assegurada e garantida; tem a ver com gostar de si, se achar adequado, sentir-se feliz ou alegre, considerar-se bom — pelo menos suficientemente, se não boa parte do tempo. Tem a ver com encontrar-se maduro e resolver os problemas, estar “adulto”, sentir-se tranquilo, fazer tudo o que é preciso e necessário fazer. Tem a ver com se entender bem sucedido e realizado no que se faz, ostentar boas escolhas — ou as consequências delas com elegância. E nestes termos, temos como saúde mental aquela condição almejada, um oásis de vir a ser, que sempre deveria estar — embora nunca esteja. E também, pudera: dá pra ser feliz frente a tamanha miséria e precariedade, material e existencial?

E desta maneira, o engodo da saúde mental, impossivelmente alcançado, fica ainda mais distante nesses tempos em que falta saúde, falta direitos, falta solidariedade, falta paz, falta pão e falta, sobretudo, esperança. Aliás, penso comigo e imagino não estar sozinha, que ela é o que mais falta: herdeiros da colonização, sobreviventes da escravidão, explorados cotidianamente pra sustentar a riqueza de poucos, diariamente esmagados no busão, jogados da uberização para a sarjeta, escolhendo entre o almoço ou a janta, assediados nas ruas, depois do golpe e da ascensão de milícias ao poder, humilhados nas filas dos postos de saúde, menos sociáveis, quase fóbicos pela reclusão afetiva e inseguranças advindas de uma pandemia, assistindo ou sofrendo um genocídio que corra em plena luz do dia ao lado do enriquecimento de figuras duvidosas em plataformas virtuais: dá pra acreditar que o mundo, o país, a vida, podem ser melhores? É possível sentir-se bem? Dá pra ter saúde mental?

Contra todas as evidências, muito capciosamente, eu digo que sim. Porque saúde mental não diz respeito ao que é bom, a estar bem; saúde mental é o que insiste, saúde mental se trata do que faz insistir. E justamente por isso, e ainda assim, e apesar de tudo, com tudo e contudo, não se enganem: vamos seguir. Sobreviveremos. E é suposto também que muitos vão tombar pelo caminho. Sem banalizar estes, tantos outros vão insistir e, nesta insistência, toda forma de vida há de se instaurar, insistindo, do mesmo modo que aqui chegamos até agora, nestas condições e resistindo a outras, pelo trabalho da insistência. A questão é: como? De que maneiras? A que custo?

Deste modo, este debate passa a ser sobre as possibilidades de invenção, do que seremos capazes de fazer com isso que está determinado a partir dessa coisa que insiste. Na insistência, por um fio, pelos motivos já ditos ou quaisquer outros, este texto saiu. Na insistência, encontra quem o leia e faça dele o que for possível. E embora eu fique curiosa com o que se possa fazer de uma leitura — e desta, especificamente — já fico grata que algo se produza em cada leitor dessa insistência, mesmo sem saber o que. É o que me intriga também nesse papo: no fim das contas, a discussão sobre a saúde mental em tempos do fim do mundo envolve fundamentalmente um debate sobre os caminhos da humanidade, do que será feito de nossa insistência.

Desta perspectiva, saúde mental mais uma vez não pode repousar entre estar bem ou mal, apenas no estar — e o que se produz nesta condição. E se estar aponta para o que pode ser criado, ela abrange um campo necessariamente indefinido, impreciso, não rascunhado, mas é justamente nesse nem bem nem mal que se pode nutrir a esperança de algo melhor — e insistimos, porque, quem sabe, às vezes, pode até ser bom. Quando me percebo nessa volta, entendo que seja difícil esperançar nestes tempos, mas que é ainda mais difícil desesperançar. Se insistimos por isso ou qualquer outro motivo, se saúde mental é insistir, torço que nossas insistências se encontrem e possam produzir o que possa ser produzido. No limite do indefinível, em que qualquer coisa possa se produzir, sigo sem descartar a possibilidade de um mundo melhor e, quem sabe, boa saúde mental pra todo o mundo. Mas antes disso, eu desejo que toda saúde mental, toda forma de estar, apenas estar, nem bem nem mal, produzida pela insistência possa ser reconhecida. Acreditem, é exatamente com isso — com essas vidas precárias, com essa condição miserável e essa saúde mental capenga, mais pra ruim que pra boa, que vamos seguir. É exatamente essa a mais expressiva e legítima forma de insistência e de saúde mental. Porque saúde mental é insistir.

* ‘Morte e Vida Severina’, de João Cabral de Melo Neto, reflete sobre a esperança da vida e a insistência em mantê-la, apesar da morte constante e contínua.

Publicidade

Publicidade
Mônica Gonçalves

Psicóloga e psicanalista. Doutoranda em Saúde Pública. Discute relações raciais na saúde.

leia+