O sucesso global do K-pop e a fetichização dos corpos asiáticos
Como filha brasileira da diáspora da população Ainu, é estranho me identificar com ícones da cultura pop sul-coreana
A terra inteira é uma ilha, é só ligar o radinho de pilha. Meu radinho não é de pilha. E na verdade não é exatamente um receptor de sinal radiológico, mas um streaming das ilhas. Nele dá para organizar uma playlist com a ordem de músicas da minha preferência, quantas eu quiser, e, como pagante do serviço de streaming, pulando aquelas que não quero escutar neste ou naquele momento.
“Betêéssers” é uma das playlists mais tocadas do meu radinho que não é de pilha. Vez em vez, dada ao estímulo audiovisual, prefiro ligar o radinho dos videoclipes das ilhas. Também no streaming. Só que outro.
Não queria falar do K-pop como fenômeno global do soft power sul-coreano. Porque isso implica falar de política de Estado. Mas vai ser inevitável. Não queria falar do K-pop como uma das políticas de Estado mais eficientes em produzir uma masculinidade asiática cheia de contradições no nada soft capitalismo. Queria mesmo era falar de K-pop naquilo que o K-pop me deu de presente ao me reconhecer muito mais do que nos rostos, mas no modo de movimentar o corpo, transmitir pensamento, ler o mundo e, até, no jeito “ao contrário” de entender perguntas de uma entrevista.
“Diversidade étnica” é como Kim Nam Joon, membro do BTS, descreveu certa vez a legião global de fãs do grupo em que é um dos letristas, rappers e coreógrafo. Sonho com Suga, rei dos beats, em feat com o Bnegão. J-Hope bem podia se jogar em uma parceria com o Heavy Baile. E aqueles falsetes impressionantes de Park Ji-min, Jin, Kim Tae-hyung e Jungkook? Por que eles ainda não cantaram ao lado da Pabllo Vittar? Fico em choque com a qualidade das letras, das coreografias perfeitamente executadas (de dar inveja a qualquer boy branco da rua de trás). É de cair o queixo o uso do grave do groove pensado por Suga. Eles são gênios.
Era assim que eu queria falar sobre o meu grupo favorito de K-pop. Mas a indústria fonográfica, a política de Estado de “entrismo” da economia soft power (que de soft só tem o nome) e a fanbase branca ocidentalizada não deixam.
Vocês sabem o que é ver, pela primeira vez, rostos asiáticos fazendo sucesso e aparecendo nas mídias? Me fizeram engolir, durante a minha adolescência inteira, a referência pop da trajetória da meninice para a fase dirty girl da Britney Spears e me botaram os Backstreet Boys como referência de homens mais desejados do início dos anos 2000. O mundo pop da Ásia se resumia à política de produção de animes e mangás, e muitos dos caras que flertaram comigo na adolescência eram uns otakus [fãs desses elementos da cultura japonesa] insuportáveis que me fantasiavam personagem de um hentai. Já era o soft power inventando corpos e subjetividades para serem consumidos.
Uma definição rápida antes de continuarmos: soft power é a ação política de moldar as preferências de consumo por meio do apelo e da atração. Os principais recursos de uma política de Estado que pratica o soft power são valores políticos, políticas externas e cultura. E a cultura popular é, atualmente, a fonte mais usada de soft power. A banda BTS ou o seu anime preferido, não são por si mesmos uma prática de soft power. Pois o soft power é uma política de Estado que usa o apelo de recursos soft (acessórios atrativos da cultura pop como estrelas de cinema e ícones pop, atrações turísticas e um ambiente acolhedor para programas de estudo no exterior) e os combina para criar e solidificar mudanças de longo prazo na forma como as pessoas pensam sobre, interagem e consomem o que o país em questão produz. Assim, os países que lançam mão deste recurso, lucram com o desespero de consumir seus produtos culturais ao redor do mundo e, de quebra, não assistem como meros coadjuvantes o desenrolar das decisões econômicas, participando da economia global.
Não vou nem entrar a fundo no assunto do lucro da Big Hit Entertainment (empresa criadora do BTS) nos últimos dez anos ou da indústria fonográfica sul-coreana desde o lançamento de Gangnam Style, do Psy. Apenas tome nota de que 2020 foi o melhor ano financeiro da gravadora (mesmo com a pandemia de Covid-19) – que inclusive comprou a gravadora do Justin Bieber, tá, querida? Os grandes selos de animação japoneses, como a Toei Animation (estúdio que produz a série Dragon Ball Z e One Piece), cresceram na década de 1990 de maneira assustadora, em movimento semelhante ao atual fenômeno fonográfico sul-coreano.
Todo “Bacurau” tem seu Grupo Globo, e com “Parasita” não foi diferente. Como vocês acham que Bong Joon-Ho arrastou aquele Oscar de 2020? Isso é política de Estado, tá funcionando. E o curioso: me identifico com aquele discurso que falava sobre o humor com capacidade de rir de si mesmo, a maneira de andar e os trejeitos do diretor, mais do que com sua suposta genialidade. Me identifico com a maneira como os Bangtan Boys se sentam, se portam, convivem. Enxergo gente asiática como eu e toda a minha família na forma como se movimentam esses corpos e em como dão o melhor de si para entregar discos excelentes, de uma qualidade musical que pouquíssimos boys brancos norte-americanos que chegavam no Top 10 da MTV foram capazes de executar. Tem carão asiático para consumir e não abro mais mão de me ver nas obras musicais do pop.
Mas aí é que tá: me vejo mesmo? Representatividade importa, né? Mas não é o suficiente.
Que representatividade está sendo vendida aí? Em primeiro lugar, esse sentimento é estranho e complexo. Como filha brasileira da diáspora da população Ainu — indígenas expulsos do Japão no processo de colonização do Reino de Ezó-chì (hoje, província de Hokkaido) —, é um sentimento estranho me identificar com ícones da cultura pop sul-coreana. O que esses rapazes significam para a população diaspórica, nem ouso tentar definir, só sei que foi um fenômeno interno acompanhar esse sucesso. Uma vez a humorista Thamirys Borsan dizia sobre sua prática de entender as questões raciais como anteriores às questões de gênero — afinal, mulheres brancas estereotipam e são racistas com homens negros. Muito bom vídeo, aliás. Salvei e compartilhei sem dó. Seria desproporcional me colocar em leitura sobre as masculinidades asiáticas em mesma toada que a de Thamirys, uma falsa simetria. Mas sabe, Thamirys? Tu me botaste umas pulgas atrás da orelha sobre como me sinto quando penso sobre, me relaciono e consumo entretenimento de pessoas asiáticas.
É horrível como esses produtos fonográficos, especificamente os rapazes do BTS, são lidos por pessoas brancas. É perturbador como essa representatividade é colocada e recebida pelo mundo ocidentalizado. Por um lado, rapazes produzidos em suas subjetividades de homens jovens asiáticos; por outro, estamos aqui, frutos das diásporas de diferentes territórios da Ásia, sujeitos ao filtro de como a branquitude se relaciona com pessoas asiáticas: consumindo, sempre.
Foram fenômenos concomitantes: a explosão de BTS em sucesso global e a fetichização dos nossos corpos, mesmo dos que nem descendem de sul-coreanos. Se relacionar hétero-cis-normativamente com um rapaz de descendência asiática parece significar ter para si um garoto coreano fofo, dócil, de masculinidade amena e não-violenta em comparação com a do homem branco. Só me pergunto se ao se deparar com a primeira complexidade desse homem, ele não será racializado e estereotipado como “estranho” ou, ainda, com comportamentos que “devem ser típicos de homens assim, calados e machistas porque de família asiática conservadora e, igualmente, estranha”.
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Fico mal só de pensar no como tudo isso fica para os corpos feminilizados, nem quero pensar muito, só sei que docilidade e submissão, além de fantasias perturbadoras sobre a anatomia das partes íntimas, são a toada reforçada no consumo das maravilhosas e talentosas integrantes de Black Pink. Estranha forma de me sentir no menu de um cardápio para a escolha de gente branca, e tudo isso como se nos diferentes territórios da Ásia não existissem pessoas LGBTI+ e pessoas fora do padrão de beleza de gente considerada gata, de corpos impossíveis, magros, de modelo.
Essa é a representatividade do que o mundo ocidentalizado aceita consumir e, ainda por cima, consome na leitura de corpos racializados e fetichizados. Ai. Me pego não querendo mais, então. Vou lá ligar o radinho para continuar sonhando com os feats de Suga e Bnegão, Black Pink e Pabllo Vittar, Lisa e Ludmilla, J-Hope e Heavy Baile, Kim Nam Joon e Mc Carol, gohan e feijão carioca. O resto é o capitalismo na regra dos brancos, no seu power que de soft não tem nada.
Umeno Morita
Descendente de fornitura de cidade pequena e da diáspora Ainu, no estado de São Paulo, oscila na filosofia acadêmica perseguindo aspectos das montagens corpóreas da população asiático-brasileira nas suas diferenciações étnicas. Pesquisa possibilidades conceituais nas práticas, vivências e narrativas do povo Ainu em diáspora.