Integrantes do Somos GALF e SOS Mulher na sede do GALF junho de 1983. Foto: Acervo Rede de Informação
memória

Imprensa lésbica brasileira: 40 anos de existência e muito por fazer

Cofundadoras do Arquivo Lésbico Brasileiro (ALB) recontam a trajetória de militância e papel da imprensa lésbica na história dos movimentos sociais do país

Em 1983, o “Amazonas” era publicado pela primeira vez, em Salvador. A iniciativa foi idealizada pelo Grupo Libertário Homossexual da Bahia (GLH) – a primeira organização exclusivamente lésbica de que se tem registro no estado. Influenciado pelo feminismo, a contracultura e o anarquismo, o grupo pretendia criar um canal de comunicação com suas iguais num mundo que as classificava como invertidas.

O jornal libertário, feito artesanalmente por estudantes de Letras da Universidade Federal da Bahia, ultrapassou os limites dos círculos estudantis do estado. Suas edições chegaram ao Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) – responsável pela edição de outro periódico lésbico: o “ChanaComChana”, que foi a publicação mais longeva do segmento nos anos 1980.

Ainda assim, hoje, o “Amazonas” não passa de uma projeção. Existe na memória de suas idealizadoras e na imaginação das pesquisadoras que recusaram a máxima de que “o que a história não diz nunca existiu”*. Ironicamente, a trajetória das guerreiras cujo nome é evocado pelo GLH em seu jornal também atravessou o tempo como mito. É inegável o papel de uma história escrita no masculino nesse processo. Foi por isso que nós, cada uma a sua maneira, contou uma história da Imprensa Lésbica brasileira, que, diga-se de passagem, já é uma quarentona – embora poucas tenham celebrado a data.

Janeiro de 1981 é a data na capa do primeiro boletim “Iamuricumá”, organizado por um grupo de amigas no Rio de Janeiro. Algumas delas haviam passado parte dos anos 1970 exiladas na França, onde tiveram contato com movimentos feministas e de lésbicas. No mesmo mês, foi publicada a primeira edição do jornal “ChanaComChana”, composto em gráfica e trazendo uma matéria com a cantora Angela Ro Ro na capa. Depois de uma reconfiguração, o GALF volta a editar a publicação em 1982, agora como um boletim montado à base do “recorta e cola”.

Enviado para assinantes ou vendido nos bares do “gueto” de São Paulo – o que levou à “invasão do Ferro’s Bar”, quando ativistas ocuparam o botequim que havia passado a impedir a comercialização do periódico –, o “ChanaComChana” marcou a história do ativismo lésbico. Suas pautas incluíam reflexões sobre diferentes aspectos da experiência lésbica e constituíram verdadeiras pedagogias culturais para quem não teria acesso a discursos não discriminatórios sobre lesbianidade. Mais do que isso, em suas páginas é possível acompanhar debates políticos da época, operações policiais no “gueto” homossexual de São Paulo e a atuação de movimentos sociais em torno da Assembleia Constituinte.

Boletins e jornais da imprensa alternativa foram importantes canais de comunicação na oposição à ditadura. A partir da “transição democrática”, novos periódicos se tornaram ferramentas estratégicas de apresentação e interação entre movimentos sociais e suas pautas. Publicações lésbicas às vezes partiam de grupos informais, como o núcleo de amigas que produziu o “Iamuriucumá”, em 1981, as estudantes que escreviam o “Amazonas”, em 1983, ou as outras universitárias que organizavam o “Xerereca”, na Faculdade Nacional de Direito, no Rio, em 1987.

O início da década de 1990 vê um florescer no número de organizações lésbicas do país, e algumas destas começam a publicar seus próprios boletins. Como exemplos, podemos citar o “Deusa Terra”, produzido pelo grupo paulista de mesmo nome entre 1991 e 1994, e a revista “Femme”, publicada de 1993 a 1996 pelo Afins – Grupo de Emancipação Lésbica, de Santos. Além dos contatos mantidos entre os grupos a partir da troca desses materiais, algumas publicações também permitiam que lésbicas buscassem amigas e parceiras através da publicação de anúncios para correspondências. É o caso da própria “Femme” e do boletim “Um Outro Olhar”, o sucessor do “ChanaComChana” – que, por sinal, também tinha uma seção de anúncios. Em 1995, o boletim “Um Outro Olhar” cedeu lugar para uma revista com o mesmo nome – comercializada até em bancas de jornal e que foi publicada até 2002.

Outro evento importante marca os anos 1990: a realização do primeiro Seminário Nacional de Lésbicas, o Senale (hoje Senalesbi), em 1996, organizado pelo Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro (Colerj). Esta organização, aliás, também publicou seu próprio veículo, o jornal “Visibilidade”, que teve edições em 1998 e depois entre 2001 e 2004. Mais ou menos no mesmo período, o Grupo Lésbico da Bahia colocou em circulação, por correio e nos bares de Salvador, o boletim “Ponto G”. Mas não foi só a militância organizada que publicou periódicos impressos para lésbicas: em 2006, a jornalista Nina Lopes, que já escrevia para portais como o “MixBrasil” e posteriormente para o “Dykerama”, editou a revista “Sobre Elas”.


Apesar da relevância do relato acima, é importante lembrar que histórias sobre a Imprensa Lésbica não se fazem apenas olhando para o passado. No presente, também temos grupos dedicados a produzir publicações de lésbicas para lésbicas. Essas trajetórias, ainda que contemporâneas, estão por serem descobertas e analisadas. Esse é um campo que está apenas se abrindo. Se o exercício de revisitar as publicações anteriores, nos permitiu refletir sobre ativismo, redemocratização, constituição de redes, educação, comunicação e jornalismo, o presente nos coloca novas questões.

Encontro Ocupa Sapatão, no Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, no Rio de Janeiro. 29/09/2018

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

“Como pensar a relação das lésbicas com as letrinhas que se renovam continuamente no movimento?” A revista “Alternativa L”, por exemplo, nos dá pistas sobre o assunto. Antes focada em lésbicas, agora divide metade de suas páginas com outros segmentos da comunidade LGBTI+. Podemos perguntar ainda: “Que repercussão teve o ativismo antirracista na Imprensa Lésbica?” Quando publicadas pela primeira vez, “Tia Concha” e “Brejeiras” não fugiram ao tema. Já a “Lésbi” tem, entre outras qualidades, o pioneirismo de ter sido a primeira revista para lésbicas e bissexuais em Minas Gerais. E, ao contrário das publicações de outras épocas, é acessível em diferentes formatos.

Aqui, selecionamos apenas alguns momentos importantes da história da Imprensa Lésbica no Brasil – e isso apenas da parte que pesquisas sobre esse fenômeno conseguiram localizar até agora. Ainda há muito a descobrir sobre os títulos que já conhecemos (e, quiçá, localizaremos outros). O resgate dos documentos que contam essa história é uma tarefa urgente, e sua manutenção é um esforço que aponta para o futuro – para que lésbicas, agora e depois, possam conhecer ao menos parte de seu passado.

*Provocação feita pela historiadora Tania Navarro-Swain, ao discutir a ordem masculina e heterossexual na escrita da história. Essa discussão foi feita no texto “Amazonas brasileiras: impossível realidade?”

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Arquivo Lésbico Brasileiro (ALB)

Caio C. Maia, Gabriela Coutinho, Larissa Martins e Paula Silveira-Barbosa. Cofundadoras do Arquivo Lésbico Brasileiro (ALB) e idealizadoras do primeiro curso sobre a história da Imprensa Lésbica no Brasil. O curso aconteceu entre fevereiro e março deste ano e teve o objetivo de financiar o site que abrigará a biblioteca virtual do ALB.

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