Quem escuta o sujeito que vive com HIV/Aids?
Médico propõe formas discursivas que possibilitem a criação de novas maneiras de “sobre-viver” a HIV/Aids
Os primeiros casos de HIV/Aids foram oficialmente identificados em 1981 (embora levantamentos mais recentes apontem alguns casos identificados em 1979). Em quase cinco décadas desde os primeiros registros, foram 75,7 milhões de pessoas infectadas e 32,7 milhões de óbitos devido a doenças relacionadas à Aids, em todo o mundo, segundo dados publicados no ano passado pela Unaids.
No Brasil, foram 966.058 casos de HIV/Aids, de 1980 a 2019, apresentando uma média anual de 39 mil novas notificações. O número de óbitos relacionados à síndrome no país desde o início da epidemia, chegou a 338.905 até dezembro de 2018. Somente em 2018, foram diagnosticados 43.941 novos pacientes com HIV, 37.161 vivendo com Aids e foram registrados 10.980 mortes, de acordo com o Ministério da Saúde.
O HIV/Aids segue sendo uma epidemia globalizada e que revela os problemas graves do laço social: exclusão, homo-lesbo-transfobia e racismo. Ainda hoje, as populações-chave mais atingidas por esta epidemia são as de pessoas não-brancas, trans e de baixa renda. A ideia de que uma doença infecciosa não vê classe/cor da pele/gênero é uma falácia. Talvez o vírus não veja. Mas a doença é social. As diversas vulnerabilidades fazem com que a construção social desta epidemia afete mais algumas populações em específico. Desde Susan Sontag, já sabemos que “o vírus invade o organismo e a doença invade a sociedade”.
Há de se destacar que não estamos mais na crise da epidemia, quando não se sabia o agente etiológico (a corrida pela descoberta do vírus expõe o quanto o discurso biomédico, muitas vezes, funciona dentro de uma lógica de mestria e alinhado ao mercado) e nem havia perspectiva alguma de tratamento. Hoje, entrando na quinta década da epidemia e estando na terceira onda da mesma (de acordo com Parker), temos todo um cardápio de antirretrovirais disponíveis para controle da replicação viral, possibilitando a cronificação da doença. Atualmente, é possível viver com HIV/Aids com carga viral indetectável e sequer o transmitir sexualmente.
Contudo, algumas várias questões ainda persistem.
Passados quarenta anos da epidemia, por que significantes como a morte, doença, pecado, finitude e ruína são ainda aqueles que parecem apresentar e representar o HIV/Aids? Se é apenas uma doença infecciosa que todos podem pegar, por que às pessoas que vivem com HIV são relegadas posições de esconderem seus diagnósticos? Cabem às pessoas que vivem com HIV/Aids ficarem à mercê do pudor e da vergonha? Por que esta epidemia ainda é tratada de uma forma tão asséptica pelo discurso biomédico, cabendo às ciências humanas trazer para conta justamente o que aquele discurso parece excluir sempre: o sujeito? Quem escuta os sujeitos (e aqui trago o sujeito do inconsciente, aquele que deseja e goza, que é movido pelas pulsões) que, por uma contingência, veem-se diagnosticados com uma doença que traz uma carga de estigma que parece ser impossível de se zerar? Talvez uma aproximação ainda maior da psicanálise e da saúde pública seja um caminho para se furar tantos estigmas e predestinações.
Como ampliar uma clínica do HIV/Aids de forma que todas as pessoas que vivem com este diagnóstico possam ter acesso universal a um tratamento que inclua também a escuta de seu sofrimento? Como desconstruir o estigma que atravessa as pessoas que vivem com HIV/Aids de tal forma que mais de 60% delas relatam já terem sofrido alguma espécie de discriminação, e mais de 15% relatam que já sofreram preconceito por profissionais de saúde?
Não, não é exagero, e são dados retirados o Índice de Estigma 2019, publicado no final do ano passado.
Na mitologia grega, Aidos (Aedos) é o demônio do pudor; ele representa a vergonha que reprime aos homens o que lhes é inapropriado. Lacan chega a falar que o Aidos, o pudor, surge, justamente quando o falo é desvelado. Ora, o falo é o significante da falta. E talvez seja importante nos perguntar inclusive da nomeação da Aids, que não deixa de remeter ao Aidos e que traz em si a terminologia de uma imunodeficiência — de uma falta na imunidade. O que a Aids nos revela e causa tanto pudor? O que nos falta enquanto sujeitos enredados em um laço social extremamente adoecido e que o HIV/aids parece nos revelar? São perguntas um tanto quanto infernais, mas sobre as quais precisamos nos debruçar enquanto cidadãos e profissionais de saúde. Não é um debate antigo, contudo é um debate urgente; e não há qualquer possibilidade de ser desenvolvido sem que as pessoas que vivem com HIV sejam escutadas de forma ética, com protagonismo e não como objetos de estudos, mas, sim, como sujeitos singulares.
Mais do que insistir numa guerra contra o HIV/Aids, talvez seja necessário apostar e investir em novas formas discursivas que possibilitem a criação de novas maneiras de “sobre-viver” ao HIV/Aids. Novas maneiras que não ignorem o sujeito em sua relação com o corpo, que não apaguem o sujeito em sua singularidade e que, por fim, apostem na potência daquilo que é de fato incurável no ser humano, esta sim a peste que cabe a cada um de nós: a subjetividade (DEAN, 1993).
Indicações de leitura:
- “Aids e suas Metáforas”, de Susan Sontag;
- “O Terror e a Dádiva”, de Pedro Paulo Pereira;
- “How to have Theory in an Epidemic: Cultural Chronicles of Aids”, de Paula Treichler;
- “A Elite que lava as mãos e o vírus do individualismo”, de Ana Laura Prates;
- “Grassroot Activism, Civil Society Mobilization, and the Politics of the Global HIV/AIDS Epidemic”, de Richard Parker;
- “Devassos no Paraíso — A Homossexualidade no Brasil, da Colônia à Atualidade”, de João Silvério Trevisan;
- “The Psychoanalysis of Aids”, de Tim Dean;
- “Notas sobre ‘Grupos de Risco’ em Tempos de Coronavírus”, de Rafael Pinheiro.
Francisco Rocha
Médico pela UFMG e mestrando em Saúde Coletiva pela Unifesp. Atua nas áreas de psiquiatria, psicanálise e saúde de família e comunidade.