Protesto contra homofobia. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
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Por que justiça obrigou SP a incluir identidade de gênero e orientação sexual em BOs

Defensores públicos contam o processo da ação judicial que exige ao governo paulistano a visibilidade dos dados de violência contra LGBTI+

O reconhecimento da gravidade de uma forma de violência passa pela possibilidade de dimensionar sua extensão e as consequências por ela provocadas. Há tempos, ativistas e militantes pelos direitos das pessoas LGBTI+ buscam romper o silêncio dos crimes motivados por ódio e LGBTIfobia, mas esbarram na falta de dados oficiais produzidos pelos órgãos públicos.

No Dossiê 2020 da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil permaneceu, pelo 12º ano consecutivo, no topo do ranking de assassinatos de pessoas trans no mundo. Ainda segundo o levantamento, nos dez primeiros meses de 2020, já havia ocorrido 151 assassinatos de pessoas trans — um aumento de 22% em relação aos dados de 2019 inteiro, quando morreram 124 pessoas.

A Antra, a exemplo de outras organizações não governamentais, utiliza do monitoramento dos meios de comunicação para conseguir realizar o levantamento de tais dados. Isso porque, conforme restou demonstrado pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, 15 estados e o Distrito Federal não possuem qualquer informação sobre os crimes ocasionados por discriminação à orientação sexual ou identidade de gênero. No Anuário ainda é mencionado que “dos 297 homicídios de LGBTI+ contabilizados pelo Grupo Gay da Bahia (DE OLIVEIRA; MOTT, 2020), somente 84 foram capturados pelas estatísticas oficiais referentes ao mesmo ano, de 2019”.

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No estado de São Paulo, desde 2015, a Defensoria Pública, por meio do Núcleo de Defesa da Diversidade e Igualdade Racial (Nuddir), busca a inclusão dos campos “orientação sexual” e “identidade de gênero” nos boletins de ocorrência e nos sistemas de informação da Secretaria de Segurança Pública. Em 2016, foi entregue ao Estado uma recomendação (01/2016), que instaurou um procedimento administrativo da Delegacia Geral de Polícia Adjunta (DGPAD). Por meio desse expediente, foi possível concluir, com base nas respostas enviadas pelos órgãos técnicos da Secretaria, a insuficiência e o desencontro das informações sobre os registros dos crimes decorrentes de LGBTIfobia.

Em primeiro lugar, foi verificado que o uso do nome social, incluído nos registros em 2015, vem sendo utilizado de forma equivocada, com o preenchimento de apelidos. Por isso, o próprio órgão de inteligência da Secretaria respondeu que existe inconsistência nas informações colhidas, impedindo o uso delas para fins de levantamento de dados.

Além disso, apesar da Secretaria indicar que é obrigatório o preenchimento do campo “intolerância homofobia/transfobia”, no momento do registro do boletim de ocorrência, não é possível realizar pesquisas desagregadas, ou seja, não é possível identificar exatamente quais são os crimes que ocorreram por motivação homofóbica unicamente e quais ocorreram por motivação transfóbica. Ainda sobre o campo “intolerância homofobia/transfobia”, verificou-se que ele não é usado como um filtro de pesquisa informatizado, o que dificulta o levantamento de dados cruzados com os crimes capitulados.

O Estado também informou que no Sistema de Informação Criminal (Infocrim), ferramenta interna da Polícia Civil que congrega os dados dos inquéritos policiais, não é possível realizar pesquisa pelo campo “intolerância homofobia/transfobia”. Apenas em outro sistema, o RDO, onde estão informações extraídas dos boletins de ocorrência, pode-se fazer manualmente um levantamento de registros em que a pessoa tenha declarado “intolerância homofobia/transfobia” — no entanto, não dá para verificar, posteriormente, em relação a quais desses crimes foram instauradas investigações criminais.

Apesar da notória insuficiência das informações colhidas para identificar quais crimes vêm atingindo a população LGBTI+ de São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública se recusou ao acolhimento voluntário da inclusão dos campos “orientação sexual” e “identidade de gênero”, sob a justificativa de falta de recursos.

Em 10 de novembro de 2017, o delegado divisionário de polícia afirmou que “para se aferir o número de casos de violência doméstica em que figuram como vítimas as mulheres trans e travestis, sugere-se, também, realizar pesquisa por vítimas do sexo masculino”. A referida afirmação revelou o menosprezo no atendimento às mulheres trans, que passariam pelo constrangimento de serem identificadas pelo sexo masculino, bem como demonstrou o total descompromisso no levantamento de estatísticas fidedignas. Acrescenta-se que a recusa à não criação dos campos específicos é uma nova violência cometida contra as pessoas LGBTI+. Nesse sentido, como bem pontuado no Dossiê Anual da Antra, citado acima, “não querer levantar esses dados é uma face da LGBTIfobia institucional”, que indica uma resistência no reconhecimento de uma forma de violência específica que atinge um grupo tão marginalizado pela sociedade.

Protesto contra a homofobiaProtesto contra a homofobia Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Esgotadas as saídas administrativas, o Nuddir, em 15 de dezembro do ano passado, ingressou com uma ação civil pública, a fim de requerer a inclusão dos campos “identidade de gênero” e “orientação sexual” nos sistemas RDO, Boletins de Ocorrência e Infocrim, sendo de preenchimento obrigatório aos profissionais de segurança pública, mas opcional aos entrevistados, para respeitar a autodeclaração.

Além deste pedido principal, também foram realizados os seguintes requerimentos: a criação de mecanismos de busca autônomos e informatizados a partir dos novos campos criados por meio do RDO e Infocrim; a correção do preenchimento do campo “nome social”; a apresentação anual, por meio do site da Secretaria de Segurança Pública, de dados estatísticos dos crimes registrados como “intolerância transfóbica/homofóbica” e cometidos contra a população LGBTI+; a criação de normativas internas para orientar o preenchimento dos campos pertinentes à população LGBTI+, bem como a capacitação continuada dos profissionais de segurança pública para o acolhimento e preenchimento de tais quesitos.

Em decisão inédita, proferida em 26 de janeiro deste ano, o juiz Enio Jose Hauffe reconheceu a importância de dar visibilidade às violências sofridas pela população LGBTI+, e, respaldado no princípio da dignidade da pessoa humana, acolheu o pedido liminar para determinar que o Estado de São Paulo realize a inclusão dos campos solicitados, no prazo de 60 dias.

Assim, a decisão representa um avanço na captação correta das estatísticas dos crimes dos quais a população LGBTI+ é vítima. Nessa perspectiva, todos os crimes que afetam esse grupo devem ser nomeados e registrados, evitando-se o apagamento e a perpetuação de violências. Trata-se de uma conquista importante, mas é preciso um alerta: somente a pressão da comunidade LGBTI+ permitirá sua efetivação pelo Estado de São Paulo.

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Vinicius Conceição Silva Silva

Mestrando em Direitos Humanos na USP, defensor público e coordenador auxiliar do Núcleo de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial.

Yasmin Oliveira Mercadante Pestana

Defensora pública, integrante do Núcleo de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial.

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