‘Ocupávamos lugares parecidos: o de escárnio e discriminação’
Psicóloga e psicanalista escreve sobre a homogeneidade que aproxima pobres, favelados, mulheres, loucos, pessoas trans, deficientes, sem teto e soropositivos
Aos que leem, me apresento: me chamo Mônica e eu sou preta. Sempre fui preta, desde o nascimento, desde casa, na rua e na escola, e assim se seguiu por toda a vida. Desde muito cedo também percebi que ser preta não se referia somente a uma questão epidérmica, não era uma menção exclusiva à minha cor — como acontecia em casa, quando minha mãe me chamava de pretinha. Fora de casa, na boca de outras pessoas, em outros lugares e contextos, no cotidiano da vida extralar, o significado de preta era bem distante do sentido afetuoso, positivo e elogioso que eu pude aperceber e sentir na fala da minha mãe.
Não demorei a perceber que eu não era a única. Havia outras pretas e pretos como eu. Eram pessoas que, além de ter um certo cabelo, um tom de pele, um tamanho de boca — que, embora até bem distintos, tinham lá sua semelhança — eram igualmente objeto de um escárnio e desprezo constantes.
Maior, mas ainda na infância, entendi que esse “preta” se referia a mais que a pele, ao fato de eu pertencer a uma raça, e o desprezo era uma expressão do racismo. Mas foi só quando jovem adulta que eu compreendi que todos nós, pretos, podíamos nos unir para juntos subverter essa condição.
Me descobrir homogênea foi parte de entender que o que acometia a mim acometia muitos outros. E estar neste estado de homogeneidade foi, por algum tempo, a fonte de todo o vigor, do ímpeto de mudança, da disposição de luta e base da crença revolucionária. Era encontrar-se homogênea a chave para a construção de um novo mundo e viver uma vida em que preta pudesse ser, outra vez, o “pretinha” que eu ouvia da minha mãe.
Mas este texto não é sobre saber-se preta. É sobre saber-se igual em uma condição de discriminação. É sobre ser homogêneo. Mas atentemos: saber-se igual numa condição de discriminação é diferente de saber-se numa condição de discriminação igual. E nesta tarefa importante, necessária e, sobretudo, impetuosa de construir uma outra sociedade, a homogeneidade alcançou uma enorme radicalidade: se, em casa, preta era uma questão epidérmica ou descritiva, e, na rua, era uma questão essencialmente negativa e discriminatória, na luta, era positiva e exaltada.
Marcha em Copacabana para celebrar o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.
Foto: Tânia Rêgo/Agência BrasilComo era de se esperar — ou não — a positividade se construía também por um processo de homogeneização. Não mais orientado pela experiência partilhada de discriminação, mas pelos gostos, pelos gestos, músicas e conhecimentos partilhados, pelos ídolos adorados, pelos mesmos objetos de crítica, pela padronização das verdades, dos discursos e das escolhas amorosas, pela uniformização do desejo.
Contraditoriamente, foi no momento de maior homogeneidade que as rachaduras na homogeneidade emergiram. Primeiro porque essa massa de homogêneos que compúnhamos era muito diversa entre si: entre nós havia variados tons de pele, múltiplos cabelos, diversas expressões de gênero e sexualidade, origens e sotaques particulares. Havia os que viviam em outras regiões, todos morando em diferentes bairros. Todos com habilidades e com gostos musicais tão díspares (às vezes, controversos), da mesma forma que as afiliações políticas e as liturgias de fé.
Nessa trajetória, a ideia de homogeneidade voltou a ser tensionada pela notícia da existência de outros homogêneos. Havia muitos outros homogêneos, diferentes de mim e que recebiam outros nomes: havia as bichas, os viados, as sapatões. Eram homogêneos também todos os pobres, os favelados, as mulheres, os loucos, as pessoas trans, os deficientes, os sem teto, os soropositivos. Curiosamente, todos diferentes de nós, em alcunha e experiência, mas semelhantes na homogeneização. Ocupávamos todos nós lugares, em alguma medida, parecidos: o de escárnio e discriminação.
E um outro elemento se somou a esses dois conflitos da homogeneidade: havia os dupla, tripla ou quadruplamente homogêneos, porque mulher e preta; porque bicha e favelado; porque pobre, trans e deficiente; porque sapatão, soropositiva e sem teto. Leva tempo entender como esses conjuntos de sujeitos, conformados por essa infinidade de lugares e determinações, poderiam ser considerados tão homogêneos. Leva tempo entender que só a raça, como um sistema de homogeneização, entre outros, poderia reduzir a uma igualdade de ordem essencial diferenças tão essencialmente complexas e contraditórias. Leva tempo e leva dor, porque não é fácil enfrentar a homogeneização negativa a que fomos submetidos sem se encontrar na homogeneização positiva que juntos forjamos.
Porém, não se trata aqui de defender a diferenciação abstrata e absoluta — sobretudo porque sem a homogeneidade não há luta. Mas é preciso assumir: sem a heterogeneidade não há sobrevivência, tampouco vitória. E também não há alegria, já que parte da alegria está naquele “pretinha”, herança da minha mãe, esse “pretinha” afetivo, idiossincrático, irrepetível, que nenhuma outra pessoa preta pode ter. E que embora seja só meu, porque assim vivido e sentido, não deixa de integrar o conjunto da experiência dos homogêneos que componho — e justamente por isso, me faz heterogênea na minha própria história.
Neste sentido, compreender a raça e toda experiência de homogeneidade não se trata estritamente de entender sobre a igualdade. Trata-se, expressamente, de entender sobre as diferenças, as diferenças dentro destes grupos que tentaram fazer homogêneos, mas cuja homogeneidade não se sustenta para além do mecanismo de homogeneização, e nem precisa ser mais que um organizador político.
É preciso dialetizar a homogeneidade: ela só pode ser concebida no conjunto das heterogeneidades a partir das quais, em um movimento de composição e decomposição, emerge a similitude. A luta dos homogêneos, que só é possível a partir da assunção da homogeneidade, não pode ser bem sucedida sem a assunção das dessemelhanças e diferenças entre nós, do reconhecimento delas — cuja imprevisão pode custar aniquilarmos uns aos outros. A bravata que empreendemos carece de que reconheçamos e legitimemos, ainda, aquilo que nos difere de outros homogêneos dos quais estamos e aos quais somos estrutural, sistemática, compulsória e cotidianamente aproximados.
Menos por imperativo moral, adesão acrítica àquilo que se estabelece como norma ou obediência servil a hegemonias discursivas, sigo me apresentando Mônica, mulher preta. E assim faço porque dessa forma o mundo me foi apresentado: dividido, racializado, com pessoas que tinham sempre um gênero, uma cor, uma raça e, certamente, uma posição social em função disso.
“Mulher e preta” diz de uma verdade — e isso é bem verdade, e nem é apenas sobre mim. Mas é também verdade que não diz tudo. Nem sobre mim nem sobre as outras muitas mulheres pretas, às vezes faveladas, outras casadas, umas mães e outras atrizes, hétero ou bissexuais, pobres ou militantes, que falam francês ou gostam de biscoito de polvilho, que ouvem jazz ou frequentam a Universal do Reino de Deus, que têm habilidades para o vôlei ou o xadrez.
Assim, me reapresento: me chamo Mônica, escolha de minhas irmãs Thaís e Débora, por causa da Mônica dos quadrinhos (que inspirou o nome e parte do meu temperamento). Além de filha da Isar, que me presenteou com esse “pretinha”, cursei Psicologia e gosto de manga. Eu sou neta da Dora, que me ensinou a oração do santo anjo. E embora eu não tenha fé religiosa ou crença espiritual, é o santo anjo que me acalma em noites duras, naquelas em que só se vê desgraça, nos tantos dias em que homogêneos como eu são brutalmente assassinados, a vistas públicas, em plena luz do dia.
E nesta vida eu escolhi me empenhar para construir, junto com os pretos, os pobres e também as bichas, os soropositivos, os loucos e todo esse contingente de homogêneos uma nova ordem em que nossos atributos não sejam mais princípios ou pretexto de discriminação e violência. Para que me dizer “cachorreira” seja tão banal quanto hoje é necessário me afirmar preta. Eu torço por isso, e espero agir no mundo para que isso seja possível a todos nós, homogêneos.
Mônica Gonçalves
Psicóloga e psicanalista. Doutoranda em Saúde Pública. Discute relações raciais na saúde.