Relatório da Abraji denuncia ameaças de estupro e morte a jornalistas trans no Brasil. Foto: Unsplash
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Relatório da Abraji denuncia ameaças de estupro e morte a jornalistas trans no Brasil

Mulheres cis e trans foram as principais vítimas da violência explícita de gênero em 2023

A Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) divulgou, no fim de março, o novo relatório do monitoramento de ataques gerais e violência de gênero contra jornalistas, com dados sobre a liberdade de imprensa no Brasil em 2023.

Foram registrados 32 ataques com violência explícita de gênero, sendo que as principais vítimas (78,1%) foram mulheres cis e trans. Pessoas não binárias apareceram pela primeira vez no relatório, representando 3,1% das vítimas.

Os homens representam 18,7% das vítimas de violência explícita – e 66,6% deles foram alvos de comentários homofóbicos, ainda que não se identifiquem como parte da comunidade LGBTQIA+.

Entre os principais tipos de violência de gênero contra jornalistas estão os comentários machistas, misóginos e/ou transfóbicos, representando 56,2% do total de ofensas.

Já os principais agressores são os homens (50%). “Entre os identificáveis, 25% são agentes estatais, como funcionários públicos e políticos cumprindo mandatos”, cita Rafaela Sinderski, pesquisadora da Abraji e responsável pelo monitoramento.

Em entrevista à Diadorim, a pesquisadora comenta o cenário complexo da violência contra jornalistas trans, que sofreram, inclusive, agressões físicas no ano passado. 

“É comum que esse tipo de violência seja recorrente, justamente porque a transfobia é estrutural, enraizada na sociedade brasileira e em seus mecanismos de funcionamento”, destaca Sinderski. Confira a entrevista na íntegra.

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RAFAELA SINDERSKI – O relatório aponta que 0,3% dos alvos de violência foram pessoas não binárias. De que modo a violência contra essas pessoas se manifesta?
AGÊNCIA DIADORIM – Em 2023, a violência contra pessoas não binárias se manifestou, sobretudo, no ambiente on-line. Os discursos estigmatizantes ainda são a principal forma de violência de gênero contra jornalistas e as redes sociais têm um papel de destaque nessa dinâmica. Infelizmente, muitas pessoas comunicadoras são alvos de campanhas de descredibilização na internet. Elas, frequentemente, são perseguidas e humilhadas por suas identidades de gênero, aparência e/ou orientação sexual. Acho que é importante dizer que esse número, certamente, representa uma subnotificação. Um dos desafios de monitorar ataques de gênero é a dificuldade em acessar os casos, ainda que seja feito um esforço para seguir uma metodologia de coleta variada. Denunciar um episódio de violência é algo difícil. Quando se trata de violência de gênero, isso fica ainda mais custoso. Um dos objetivos do monitoramento é dar visibilidade ao assunto. Um problema que não é visto dificilmente é tratado.

SINDERSKI – Grande parte dos homens que sofreram violência explícita em 2023 foram vítimas de comentários homofóbicos, ainda que não sejam gays. O mesmo ocorreu com mulheres? Como vocês analisam essa disparidade?
DIADORIM – Não. Quando a vítima é uma mulher cisgênero e heterossexual – pode ser que ela viva um relacionamento heterossexual ou que se encaixe em estereótipos de heteronormatividade, ainda que não fale sobre sua orientação sexual publicamente –, a violência de gênero costuma se manifestar de outras maneiras. Essas profissionais são julgadas por sua aparência e chamadas de “velhas” e “feias”, por exemplo. Suas capacidades são colocadas em xeque e elas são apontadas com menos profissionais, menos inteligentes, como emocionalmente instáveis, como histéricas e malucas. Isso acontece, principalmente, quando falam sobre política ou economia, assuntos que costumam ser encarados como “masculinos”. São formas de dizer que o lugar delas não é ali, que elas precisam voltar para a esfera privada – a casa, a família –, pois, para os agressores, esse é o lugar delas. As mulheres transgênero e/ou não-heterossexuais sofrem com tudo isso, com o peso extra da LGBTfobia. Para os homens, as ofensas homofóbicas é que dominam os discursos agressores. Essa dinâmica é reflexo de uma sociedade machista e misógina, em que algumas identidades são vistas como superiores, mais capazes e mais confiáveis. Esse papel, geralmente, é dado ao homem branco, cisgênero e heterossexual. Não ser “homem” nesses moldes é visto como uma transgressão, como se esse tipo de masculinidade fosse um selo de qualidade social e profissional. Quem está fora desse grupo vale menos como pessoa e como jornalista. É uma estratégia de ataque que foi muito alimentada nos anos de governo Bolsonaro – basta lembrar do episódio do “imbrochável”. Nesse contexto, para os agressores, ser um homem gay é como ser uma mulher: incapaz.

DIADORIM – Mulheres cis e trans são tratadas como uma categoria única, mas sabemos que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans em todo o mundo, e mulheres trans apresentam uma sobreposição de vulnerabilidades. É possível desagregar esses dados? Se sim, qual é o panorama da violência contra jornalistas trans?
SINDERSKI – Entre os casos que vitimaram mulheres, 5,3% envolveram mulheres trans e travestis. Desses episódios, 50% envolveram agressões físicas ou perseguições e todos os agressores identificados são homens. Outro dado relevante é que 50% desses ataques tiveram atores estatais como agressores, incluindo políticos que estão cumprindo mandatos. Mas, como eu disse antes, registrar casos de violência de gênero demanda lidar com a subnotificação. É possível que esse quadro seja ainda mais grave.

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DIADORIM – Vocês citam o caso de uma jornalista trans que teve o carro apedrejado. É possível afirmar que a violência contra mulheres trans apresenta requintes de crueldade e/ou maior gravidade?
SINDERSKI – Com certeza. Metade dos casos de transfobia registrados pelo monitoramento em 2023 envolveram situações de perseguição e/ou violência física, somadas a discursos estigmatizantes e a ameaças de agressão, morte ou estupro. Além disso, é comum que esse tipo de violência seja recorrente, justamente porque a transfobia é estrutural, enraizada na sociedade brasileira e em seus mecanismos de funcionamento. As vítimas tendem a estar envolvidas em mais de um episódio de agressão. Às vezes, os agressores se repetem, configurando uma perseguição contra aquele(a) profissional. Isso ocorre bastante entre jornalistas que cobrem política e que vivem em cidades pequenas. 

DIADORIM – Diversos veículos especializados na cobertura de gênero – a exemplo de Azmina, Catarinas, Gênero e Número e Diadorim – foram alvos de ataques de TERFs no ano passado. Esses ataques transfóbicos vêm sendo monitorados? Qual é a posição da Abraji sobre eles
SINDERSKI – Todos os ataques a meios de comunicação que chegam ao conhecimento da Abraji são registrados no monitoramento. Inclusive, a variável de violência de gênero tem uma categoria específica para episódios motivados por conteúdos, publicados e divulgados, que são focados em questões de gênero. Não é aceitável que organizações jornalísticas sejam atacadas por produzir informações de interesse público. O jornalismo livre é um pilar da democracia. Tentar derrubá-lo é uma atitude autoritária e antidemocrática.

DIADORIM – De modo geral, qual é o perfil dos agressores LGBTfóbicos no Brasil? 
SINDERSKI – Temos um dado interessante sobre isso: 50% dos casos de violência explícita de gênero registrados pelo monitoramento em 2023 tiveram homens como agressores. As mulheres estão envolvidas, como agressoras, em apenas 15,6% dos casos. Nos outros 34,4%, os autores dos ataques não puderam ser identificados – são, em sua maioria, internautas, que se escondem por trás do anonimato ou do efeito manada das redes sociais. Entre os identificáveis, 25% são agentes estatais, como funcionários públicos e políticos cumprindo mandatos. Nossos dados sobre os agressores se limitam ao gênero e ao tipo – estatal, não estatal, não identificado. Mas, com isso, é possível ver que a violência de gênero é uma atividade dominada pelos homens.

DIADORIM – Os casos de LGBTfobia vêm sendo denunciados às autoridades? A Abraji tem conhecimento de agressores que tenham sido responsabilizados?
SINDERSKI – A Abraji oferece assistência às pessoas jornalistas que sofrem violência e buscam ajuda, orientando como elas podem denunciar os casos às autoridades e quais medidas podem ser tomadas para sua proteção. Há situações em que os envolvidos são responsabilizados, como foi o caso da Patrícia Campos Mello, que sofreu, por muitos anos, com discursos estigmatizantes proferidos pelo ex-presidente Bolsonaro e por seus apoiadores. Ela ganhou um processo por danos morais após ser alvo de violência de gênero. Mas, infelizmente, muitos agressores ainda ficam impunes. Além disso, o processo de denunciar é marcado por estigmas e pela revitimização, fazendo com que muitas pessoas não falem sobre as agressões que viveram. Essa é uma situação bastante complexa, que demanda mudanças culturais, políticas públicas de apoio às vítimas e medidas mais duras de responsabilização dos agressores. Ainda assim, espero que o trabalho de monitorar esse cenário e de tirar o problema das sombras ajude a transformar o quadro que temos hoje. Acredito que discutir a violência é parte de um pequeno passo em direção à mudança.

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