O que é o ‘identitarismo’ e por que ele preocupa a política tradicional
Tema divide correntes do campo progressista; veja opiniões de políticos e intelectuais sobre o assunto
No início do mês, uma fala do candidato a presidente Ciro Gomes (PDT) repercutiu nas redes sociais ao ele se afirmar contrário à adoção da linguagem neutra, defendida especialmente por pessoas não-binárias. Por trás dessa declaração estava o diagnóstico do pedetista de que as discussões sobre a superação das desigualdades têm sido prejudicadas pelo que um grupo de políticos tradicionais chama de ‘identitarismo’ — ou, como Ciro disse, “questões identitárias”.
Em entrevista ao programa “Pânico”, da rádio Jovem Pan, Ciro Gomes atribuiu a recente rejeição da proposta de nova Constituição no Chile a uma suposta “série de baboseiras” identitárias. Ainda que tenha se afirmado solidário às lutas contra o racismo e o machismo, por exemplo, o candidato argumentou que essas questões “hiperfragmentam” os interesses da sociedade. “Vou falar de negro, de mulher, de meio ambiente, como se fossem assuntos separados. E não falo mais em superação da miséria, da desigualdade, na proporção justa dos negros e das mulheres que, de fato, sofrem dobrado em uma sociedade machista e racista como a nossa”, explicou.
Não é a primeira vez que Ciro, em sua quarta disputa ao Palácio do Planalto, fala sobre o assunto. Em novembro de 2018, à GloboNews, ele já havia atribuído ao identitarismo uma parcela de responsabilidade sobre a eleição de Jair Bolsonaro (PL). “Nosso povo é tolerante. Mas daí a você explorar essa tolerância […] com políticas públicas, para afirmar um identitarismo de minorias que são mais próximas do pensamento progressista, é falta de respeito”, disse, alegando que o povo brasileiro é conservador e, dessa forma, acaba se distanciando da esquerda.
Ciro não é o único a pensar assim. Outros políticos e intelectuais ligados ao campo progressista também fazem críticas à ênfase dada às questões identitárias, que têm cada vez mais pautado a política. Alberto Cantalice, diretor da Fundação Perseu Abramo, ligada ao Partido dos Trabalhadores, por exemplo, publicou um tuíte em janeiro com um discurso semelhante. “O identitarismo é um erro. É uma pauta criada por ativistas dos Estados Unidos e que não tem similaridade com questões brasileiras. É a velha síndrome de colonizado que permeia setores ‘progressistas’. Confundem a questão central — a desigualdade — e se divorciam da realidade do povo”, escreveu.
O discurso anti-identitário ganhou eco também na fala do jovem prefeito do Recife João Campos (PSB). Em entrevista ao jornal O Globo, em dezembro, o herdeiro político do clã Campos disse que chegou a externar sua preocupação sobre o tema ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), atual favorito na corrida presidencial. “Os problemas e as soluções do Brasil não estão nessas pautas puramente identitárias ou ideológicas. O que a gente precisa é tirar o debate desse campo”, analisou.
Em 2018, grupos minorizados foram às ruas de todo o país em manifestação contra o então candidato Jair Bolsonaro
Foto: Antonio Cruz/Agência BrasilClasse e identidade
Em outro polo da discussão, o advogado e presidente do Instituto Luiz Gama, Silvio Almeida, reforça que as questões de identidade invariavelmente atravessam os sujeitos, interferindo na forma como cada pessoa sente e se relaciona com o mundo.
Em um vídeo publicado em seu canal no YouTube, o intelectual avalia que os movimentos operários também se utilizam de uma argumentação ligada à identidade para fomentar as transformações almejadas. “Vejam o que fazem os movimentos operários desde o século XIX. É justamente criar a possibilidade de uma consciência de classe, ou seja, um mundo em que haja uma subjetividade de classe para que o sujeito, identificando-se como parte da classe trabalhadora, faça parte de um processo de transformação social”, compara.
Almeida argumenta que os movimentos negro, feminista e LGBTI+, ao se reivindicarem como tais, também fazem parte desse processo de transformação social, uma vez que o conceito de identidade também estaria diretamente ligado à noção de classe. “Basta ver quem são os trabalhadores e aqueles que são donos dos meios de produção”, ressalta, citando o exemplo dos trabalhadores domésticos, que em sua maioria são mulheres negras. Nesse caso, gênero e raça interferindo diretamente na forma como determinados trabalhadores irão desempenhar suas atividades produtivas.
“Se essas diferenças precisavam ser afirmadas com contundência, era porque haviam sido longamente negadas pelo modo como os universais ‘trabalhador’ e ‘humano’ se confundiram com os interesses e demandas do ‘padrão’ homem branco, heterossexual, cristão, cisgênero, ‘conservador nos costumes’”, defendeu o professor de Filosofia da PUC-Rio Rodrigo Nunes em um artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo. Enquanto reduz todos os indivíduos à sua força de trabalho, o capitalismo se aproveita justamente das diferenças para condenar determinados grupos sociais a salários mais baixos e piores condições de trabalho, ele pontua.
Para a socióloga e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Flávia Rios, o discurso recorrente sobre o identitarismo é uma equivocada simplificação de lutas complexas. “Esse discurso sobre um suposto divisionismo estabelece o pressuposto de que há uma oposição entre os grupos que reivindicam diversidade, pluralismo, respeito, reconhecimento, e os que reivindicam demandas materiais ou econômicas. Isso não é verdadeiro”, analisou, em entrevista ao Nexo.
“Todo mundo tem identidade, mas a identidade só é acusada quando é a do outro. Ninguém vê que tem uma própria identidade”, conclui Silvio Almeida.