

Sofia Favero discute os impactos do controle adulto sobre infâncias trans e propõe o vínculo como chave para o cuidado
No centro do debate sobre os direitos de crianças trans, adultos procuram respostas, diagnósticos, certezas. Enquanto isso, as crianças só pedem espaço para existir. Segundo Sofia Favero, doutora em Psicologia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e autora dos livros “Pajubá-terapia” (2020), “Crianças Trans” (2020) e “Psicologia Suja” (2022), a chave para entender as infâncias LGBTQIA+ está menos nas categorias clínicas e mais nos vínculos cotidianos, sobretudo na escuta.
Integrante da Associação e Movimento Sergipano de Transexuais e Travestis e assessora parlamentar no mandato da vereadora Amanda Paschoal (PSOL-SP), Favero acompanha de perto a instrumentalização do discurso de proteção da infância por parlamentares conservadores que buscam ativamente restringir direitos, conforme mostrou reportagem da Diadorim.
Em entrevista, ela reflete sobre os efeitos da patologização precoce, o medo do arrependimento e o modo como o mundo adulto tenta controlar aquilo que não consegue nomear. E sugere: talvez não devêssemos perguntar se uma criança “é mesmo trans”, mas por que tantos adultos querem impedir que ela descubra por si.
AGÊNCIA DIADORIM – Como você tem percebido, no seu trabalho clínico e institucional, os efeitos da onda conservadora na saúde mental de crianças e adolescentes LGBTQIA+?
SOFIA FAVERO – Quando falamos de crianças, os medos adultos se intensificam. Parte da comunidade médica e psi, de feminismos radicais e de ativismos religiosos, ainda acredita que crianças transicionam porque foram influenciadas. Mas a transição é muito mais tentacular do que linear. Só destransiciona quem está vivo. A ansiedade em torno da “destransição” presume que uma identidade estável é o único desfecho saudável, o que é um paradoxo ético. Crianças entendem que não podem confiar no próprio julgamento quando rejeitadas. Outro aspecto é a política do silêncio. O simples fato de uma criança pedir para cortar o cabelo ou mudar de nome vira motivo de tensão familiar. Às vezes, o ambiente não é abertamente hostil, mas é permeado por microviolências que comunicam: “Isso que você é não pode ser dito em voz alta”.
DIADORIM – Quais são os principais sinais de sofrimento que aparecem nesses jovens quando suas identidades são invalidadas?
SOFIA FAVERO – O que devemos observar não são só os sinais psíquicos, mas os acordos coletivos que mantêm essas crianças invisíveis. O sofrimento aparece nas tentativas de deslegitimação: “Você está confundido” ou “Isso é só uma fase”. E se for uma fase? A criança está dizendo que algo não está funcionando. Mas espera-se que ela sofra o suficiente para provar que merece ser escutada. Isso adoece. Vejo muitas famílias esperando sinais extremos para validar a escuta. Só diante do choro, da autolesão ou da evasão escolar é que reconhecem que há algo acontecendo. Isso coloca as crianças numa posição perigosa, como se precisassem sofrer para serem consideradas legítimas.
DIADORIM – Muitos desses ataques vêm disfarçados de um discurso de “proteção da infância”. Que infâncias estão sendo protegidas – e quais estão sendo apagadas?
SOFIA FAVERO – O que se protege é uma infância cisgênera, branca, normativa. E o que se apaga é a criança de carne e osso. Famílias querem saber se a criança é “trans de verdade”, como se houvesse uma essência a ser desvendada. O que está em jogo é uma fantasia adulta de controle. Crianças trans não são contágio, nem epidemia; são experiências reais que escapam dos roteiros esperados. O discurso da proteção também se manifesta na tentativa de impedir que as crianças tenham acesso a informações sobre diversidade. Mas toda criança, cedo ou tarde, vai se deparar com a diferença. A pergunta é: em que contexto ela vai fazer isso? Com acolhimento ou com violência e isolamento?
DIADORIM – Que papel profissionais da saúde mental podem exercer nesse contexto?
SOFIA FAVERO – O cuidado não pode ser baseado em diagnóstico ou avaliação moral. Crianças devem ter direito à opacidade, como propõe [o escritor francês] Édouard Glissant. Ser trans não é apresentar provas. É viver, experimentar. Crescer é bagunçado. A psicologia precisa parar de buscar a forma correta de ser trans e se comprometer com os vínculos. Não se trata de prever o futuro, mas de estar com a criança no presente. Vejo muitos profissionais ainda esperando um roteiro: querem saber se devem ou não usar o nome social, como se isso dependesse de um laudo. A escuta não pode estar subordinada a um protocolo. É uma prática ética, relacional. O compromisso é com o bem-estar da criança, não com a confirmação de uma identidade.
DIADORIM – Pode compartilhar uma experiência clínica que exemplifique essas tensões?
SOFIA FAVERO – Uma menina começou a usar o nome social na escola. A professora, que não aceitava a transição, passou a não se dirigir a ela de jeito nenhum. Parou de chamá-la por qualquer nome. A criança dizia: ‘Ela acha que eu inventei isso’. Esse tipo de silêncio é uma violência. O apagamento virou método.
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ApoieDIADORIM – Que estratégias de cuidado você recomenda para famílias, escolas e redes de apoio?
SOFIA FAVERO – Não se trata de fazer tudo o que a criança pede, mas de escutar o que ela está tentando dizer. Crianças não querem certezas, querem espaço para errar, tentar, se contradizer. Dizer “sou trans” pode ser uma forma de abrir uma conversa, não de encerrá-la. É preciso que escolas deixem de expor crianças, que famílias reconheçam que nenhuma criança corresponde integralmente ao projeto que se fez dela. Também é fundamental que coletivos e movimentos sociais tenham espaço para atuar dentro das escolas e comunidades. As ONGs e os grupos de apoio familiar têm sido fundamentais para articular uma nova gramática do cuidado. Eles oferecem não só suporte emocional, mas também formação política e jurídica para enfrentar os retrocessos.
DIADORIM – Você propõe que a família “transicione junto” com a criança. O que isso significa?
SOFIA FAVERO – É reconhecer que o adulto também está aprendendo. É admitir que o gênero é uma construção em movimento. E que, no fim das contas, toda criança transiciona – só que nem toda transição é escutada. Transicionar junto é aceitar a dúvida como parte do processo. É sustentar a pergunta ao lado da criança, não tentar respondê-la por ela. Crianças querem ter o direito de existir sem explicações. Isso é o mais revolucionário.