Francisco Mallmann. Foto: Luana Navarro/divulgação
Francisco Mallmann. Foto: Luana Navarro/divulgação
cultura

A poesia bicha de Francisco Mallmann

Em entrevista, poeta fala da palavra como gesto coletivo e decolonial

Francisco Mallmann, 30, escreve poesia bicha. Autor de “haverá festa com o que restar” (Urutau, 2018), “américa” (Urutau, 2020) e “tudo o que leva consigo um nome” (José Olympio, 2021), o poeta curitibano tem uma das vozes mais potentes da cena literária LGBTQIA+ brasileira na contemporaneidade. 

Seu livro de estreia – um apanhado de poemas sobre a experiência hostil e ao mesmo tempo festiva de se descobrir bicha no Brasil – levou a 3ª colocação na categoria Poesia do Prêmio Biblioteca Nacional, no ano em que foi publicado – sucesso que o artista atribui, em grande parte, à força da criação coletiva.

Mallmann atua entre a escrita e a performance. É graduado em Artes Cênicas pela FAP (Faculdade de Artes do Paraná) e em Jornalismo pela PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), com mestrado em Filosofia pela mesma universidade. Atualmente é doutorando do Programa de Pós-graduação em Artes da Cena da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

assine nossa newsletter

Entre para O Vale. Receba os nossos destaques e um conteúdo exclusivo. Tudo direto no seu e-mail.

Ao se cadastrar, você aceita a política de privacidade da Diadorim.

Em Curitiba, sua cidade natal, Mallmann criou performances híbridas, perpassadas por temas como sexualidade, gênero e decolonialidade, em residência na Selvática Ações Artísticas. Em uma de suas peças mais famosas, “América”, que mais tarde foi transformada em livro homônimo, o artista sobe ao palco nu e discursa de costas para a plateia, de modo a evidenciar sua negação. “Tu me deves uma história, América”, diz o performer, cobrando novos imaginários para corpos que, como o seu, são estigmatizados e silenciados pela violência colonial.

Outra experiência coletiva que atravessa a vivência artística do poeta é a fundação da Membrana Literária, que desde 2018 traz escritores e escritoras que vivem em Curitiba para um espaço seguro de troca crítico-afetiva.

Em 2022, o artista levou um trecho de “haverá festa com o que restar” para o Museu da República, prédio histórico que abriga fragmentos da narrativa colonial no Rio de Janeiro. Na instalação, uma flâmula vermelha de dez metros é estendida como se fosse uma língua, e diz: “devolver a eles este grande susto”. 

Seu trabalho também integra os acervos do Museu de Arte Contemporânea do Paraná e do Museu Oscar Niemeyer, ambos em Curitiba. Em entrevista à Diadorim, Francisco Mallmann fala de sua obra e compartilha referências.

AGÊNCIA DIADORIM – Assim como a palavra “queer” vem sendo ressignificada por autores e autoras do Norte global, você subverte o sentido da palavra “bicha” (por vezes “marica”) na sua obra – e entendo que mais do que se referir a uma orientação sexual específica, você está consolidando uma identidade política. Pode contar pra gente de que compreensão parte essa escolha?
FRANCISCO MALLMANN – Fecho os olhos e penso “bicha”. São paisagens do sul do mundo que me vêm à mente. Penso “bicha” e intuo corporeidades não-normativas. Penso “bicha” e logo me ocorre uma radical processualidade do que pode ser o desejo, as práticas afetivas-sexuais, o corpo, as posições políticas, éticas e estéticas. Penso “bicha” e acho que há, ainda, tudo a ser feito – quando muito já se fez. É definitivamente político. Mas venho pensando como é possível criar identidades de maneiras mais emancipatórias sem que elas nos enrijeçam, sem que elas sejam posses. Penso “bicha” e penso nas armadilhas existentes nas nomeações – que lindo, que horror, que bom, que difícil ter um nome. Fundamental para fazer corpo, coletivo, comunidade – no entanto, me parece, e por isso me interesso: O que poderemos fazer depois? O que pode essa multidão-bicha? Mais que o nome, mais que a identidade: o que é possível criar quando-bicha? 

DIADORIM – Volta e meia você é apresentado como um autor de “poesia bicha”. É uma definição bem-vinda? Pra você, do que se trata esse gênero? 
MALLMANN – É muito bem-vinda, Jess. Tenho pensado o que pode ser essa “poesia bicha” e, me parece, há certa irreconciliação com a norma, no interior de tudo. Certo espanto com a língua: o susto de ser alguém violentamente marcado pela linguagem. Certa insistência no coletivo, no processo, no amor desviante, não-normativo. Não sei se é um gênero. Talvez tencione, exatamente, a ideia de gênero. Pois há isto: um desejo pela não-assimilação, a desfeitura de uma métrica normativa e compulsória para as existências. Certa irmandade com o impossível, certas noções de revolução-levante-revolta, os trânsitos entre o visível e o invisível. 

Doe um acué!

Ajude a Diadorim. Doe via pix ou se torne assinante.

Apoie

DIADORIM – A sua literatura carrega diversas marcas da oralidade, e em América você indica ao leitor: “esse texto foi criado em voz alta/para ser lido em voz alta”. Sei que existe aí uma memória afetiva de ter pais professores que liam para você, e quero te ouvir sobre isso. Mas também quero saber se é uma tentativa de tornas mais acessível o que você escreve. 
MALLMANN – O curioso sobre minha escrita é que ela vem, antes, da oralidade. Minha formação em Artes Cênicas – antes mesmo de eu me entender como alguém que escrevia – me implica muito profundamente na palavra falada. Uma arena pública, um teatro, sempre me pareceu um lugar de fazer literatura e poesia. Não sei pensar um livro sem pensar em multidão: gente reunida fazendo palavra. Faz barulho uma página – acho que persigo esses sons e tento fazer deles matérias de compartilhamento, vias de acesso, de entrada e saída e permanência.

DIADORIM – Transitamos entre os mesmos espaços em Curitiba, cidade onde ambos nascemos, e tendo acompanhado a sua trajetória de perto nos últimos anos, percebo o quanto ela é atravessada pela coletividade e pelo afeto. De que forma compor a Membrana potencializa a sua obra?
MALLMANN – A Membrana é um projeto sonhado, inicialmente, por mim, Semy Monastier e Daniele Rosa. E muito rapidamente ela passou a ser projeto de muitas pessoas. São artistas incríveis. Há dois anos não consigo participar das reuniões, encontros e projetos da Membrana, efetivamente. Mas acompanho com muito desejo, carinho e interessa cada um dos gestos deste coletivo. Tudo mudou na minha criação: a possibilidade de ter pessoas interessadas, debruçadas crítica e afetivamente por sobre nosso trabalho é algo realmente muito sério e importante. Criar interlocução – com ternura e compromisso – é algo muito sério e raro. A Membrana me ensina que literatura não é sozinha – e isso é mesmo muito.

DIADORIM – A Selvática é outra coletiva de artistas que, salvo engano, foi um espaço de formação para você. O que ela tem a ensinar à dramaturgia brasileira sobre diversidade?
MALLMANN – Gosto muito de um texto da Selvática que diz: “A Selvática é um modo de vida, um sonho, um lifestyle, um bicho solto no mato, uma esperança, uma embarcação, um cometa rasgando a noite, um uivo de lobo louco, um projeto para atingir corações. A Selvática é o início de uma revolução que se dá na arte acima da vida quando esta já não basta. A Selvática é construída, todos os dias, incansável e apaixonadamente, é subsidiada por indivíduos que doam tempo, amor e alma a um coletivo que acredita na força da independência, na arte que precisa acontecer para não morrer. A Selvática é o tempo em suspensão dionisíaca, é Apolo domesticado. A Selvática é uma multidão de sentidos, uma metralhadora em estado de graça que esparrama sua singularidade na savana fértil dos leões. A Selvática é um espaço físico e uma força do espírito. A Selvática é uma precipitação azul do céu sobre a urbe polaca e cinza do sul. A Selvática é”. Acho mesmo que é isso.

DIADORIM – Para fechar, queremos indicações! Quem são as artistas brasileiras e latino-americanas que inspiram o seu trabalho?
MALLMANN  – Há mesmo muita gente produzindo vibração em mim. Cito duas grandes referências que (re)li recentemente: Pedro Lemebel, traduzido ao português por Mariana Sanchez, em “Poco hombre”; e “Mar Paraguyo” de Wilson Bueno, em nova edição, cujo trabalho me inspira muitíssimo. 

Publicidade

Publicidade

leia+