Torcida com integrantes assumidamente LGBTQIA+ na frente do Allianz Parque. Foto: Reprodução/Redes Sociais
LGBTIfobia

Torcedores LGBTQIA+ do Palmeiras vão juntos ao estádio pela primeira vez

A Palmeiras Livre, que há 10 anos luta contra o preconceito no futebol, reuniu seus membros “em casa” para assistir ao jogo contra o Botafogo

Para quem é LGBTQIA+, ir ao estádio de futebol para acompanhar o time do coração pode ser um risco devido à LGBTfobia enraizada entre as torcidas. Apesar disso, alguns grupos têm ocupado as arquibancadas e reafirmado que o futebol não é coisa apenas de “macho”. No dia último 25 de junho, a Palmeiras Livre, torcida que há 10 anos luta contra a LGBTfobia, o racismo, o machismo e demais opressões sociais em campo, conseguiu, pela primeira vez, reunir seus integrantes para assistir juntos à partida do Palmeiras contra o Botafogo no Allianz Parque.

Jornalista, ativista de Direitos Humanos e um dos fundadores da Palmeiras Livre, William de Lucca concedeu entrevista à Diadorim e falou sobre como foi a experiência de ir ao estádio com o grupo, a história da Palmeiras Livre e de outras torcidas LGBTQIAP+, além dos avanços e desafios das torcidas “não tradicionais”. 

AGÊNCIA DIADORIM Como começou o amor pelo Palmeiras?
WILLIAM DE LUCCA Ele começou graças à inabilidade do meu pai de me fazer ser santista. Meu pai é santista, mas os meus dois avôs eram palmeirenses. Por acaso, eu nasci na metade dos anos 1980 e comecei a entender de futebol na metade dos anos 1990, quando o Palmeiras vivia uma fase excepcional, com os times de 1994 e de 1996, times espetaculares. Aí quando eu tinha 14 anos, o Palmeiras foi campeão da Libertadores, em 1998 e 1999. Daí começou meu amor pelo Palmeiras. Foi uma herança familiar que o meu pai, santista, e um outro tio meu, que tinha falecido e era corintiano, não deram prosseguimento, já que a família inteira era palmeirense, mas comigo não teve jeito.

DIADORIM – Qual é a sua história com o grupo Palmeiras Livre?
DE LUCCA – A torcida foi fundada 10 anos atrás, em março de 2013. Eu achei a página no Facebook alguns depois da criação e comecei a participar. A origem da Palmeiras Livre remonta ao que a gente chama de “segunda fase das torcidas progressistas”.  A gente teve uma época com a Coligay (Grêmio), Flagay (Flamengo) e a Maré Vermelha (Internacional), nos anos 1970 e 1980. Aí teve um período de inatividade, sem manifestações desse tipo. 

Imagem: Reprodução/Instagram

O ex-jogador e atual comentarista esportivo Richarlyson sofreu ataques durante a carreira por ser o primeiro jogador de futebol com passagem pela seleção brasileira a ser assumidamente não hétero. Em entrevista ao podcast Nos Armários dos Vestiários, Richarlyson declarou ser bissexual.

Nos anos 2010 a 2020, a gente teve um boom de torcidas progressistas relacionado ao caso de homofobia contra o Richarlyson. Surgiu a Galo Queer, em Belo Horizonte, que é a torcida do Atlético Mineiro. Depois surgiu a Bambi Tricolor, aqui em São Paulo. Na sequência, a Palmeiras Livre. Somos a terceira mais antiga dessa leva, e a única em atividade até hoje. Somos coletivos de torcedores LGBTQIA+ e progressistas*.

O grupo surgiu por conta de ataques homofóbicos da torcida do Palmeiras, na época, contra a possibilidade do Richarlyson vir a ser jogador do time. Parte da torcida levou faixas lá pra frente do estádio dizendo coisas tipo “A Homofobia Veste Verde”. Daí fundamos um coletivo para discutir essas questões e ocupar esse espaço na torcida do Palmeiras. A Thaís Nozue foi a principal fundadora, junto com outras duas pessoas que hoje não fazem mais parte do coletivo. Então a gente foi juntando outras pessoas. Em princípio nesses espaços digitais mesmo, onde a gente tinha mais espaço de voz e tinha mais segurança para fazer o debate a que a gente se propunha.

*A Palmeiras Livre faz parte do coletivo Canarinhos LGBTQ+, que reúne torcidas LGBTQIA+ de diversos times brasileiros.

DIADORIM – Recentemente, vocês foram juntos para o estádio enquanto coletivo, pela primeira vez, em um jogo do Palmeiras contra o Botafogo. Como foi essa experiência?

DE LUCCA – Foi bem legal, é algo que a gente já vinha conversando há muito tempo. Não era algo que a Palmeiras Livre tinha como meta, mas sempre teve no nosso horizonte. A gente sempre pensou que seria uma coisa que poderia ser feita se a gente entendesse que era o momento e que teríamos a segurança para isso. 

Nós fomos assistir Palmeiras e Botafogo, e antes tinha um jogo do time feminino do Palmeiras. Então a gente levou um homem trans para assistir a um jogo do Palmeiras pela primeira vez dentro do Allianz Parque. Foi uma das ações que a gente fez. No jogo masculino, ele também participou. E a gente levou pela primeira vez a nossa bandeira e as nossas camisetas para dentro do estádio. 

Essas ações precisam ser feitas de uma forma muito organizada porque a gente sabe que o espaço do futebol é um espaço ainda muito refratário a esses debates da diversidade. Nesses 10 anos, a gente conseguiu avançar muito nesse debate, inclusive com o surgimento de outros coletivos, de outras torcidas, mas a gente sabia que tinha que ser feito de uma forma muito cautelosa. 

A gente sempre diz que não quer ser mártir, não quer morrer por conta de uma causa. A gente quer só poder assistir o jogo em paz, com toda tranquilidade com que todas as pessoas o fazem.

DIADORIM – Como foi a recepção dos torcedores que não fazem parte da Palmeiras Livre?
DE LUCCA – A gente sempre tem receio, né, fomos sabendo que algo podia acontecer, mas foi tudo bem tranquilo. A gente tem várias fotos em grupo, tem várias fotos com o Abel Ferreira (treinador do Palmeiras), acho que a gente teve um espaço de visibilidade bem legal.

Tem sempre intercorrências que a gente sempre vê em jogos, que quando a gente está em grupo dá pra ter outro tipo de reação. Perto da gente, havia um cara soltando gritos homofóbicos contra os atletas do outro time, então a gente repreendeu ele, o que não aconteceria se um de nós estivesse sozinho. Coletivamente, a gente sente que tem um suporte para fazer esse tipo de intervenção.

DIADORIM – O espaço dos estágios geralmente não é visto como um lugar seguro para minorias. Nos últimos anos, o Brasil teve um presidente LGBTfóbico que, inclusive, se dizia palmeirense. Você acha que tem sido mais seguro para essas minorias irem assistir a um jogo de futebol?
DE LUCCA – Eu acho que ainda é um espaço de disputa. Os estádios ainda são espaços do recrudescimento de uma cultura machista, homofóbica, sexista, em grande parte racista. A gente tem feito uma boa disputa em vários espaços, né? Na imprensa, nos estádios, nos grupos de discussão na internet, nas redes sociais, em todos os lugares onde a gente pode fazer, mas o futebol ainda é um bastião dessa heteronormatividade masculinista tóxica, que usa o futebol como um espaço de catarse para ser preconceituoso. A gente ainda tem esse lugar do futebol no imaginário de muitos homens, e muitas mulheres que acabam reproduzindo, de que o futebol é lugar de “macho”, e tem que agir que nem “macho”.

Essa ideia de macho construído que é muito particular do futebol. Você não pode ter emoção, você não pode ter o afeto entre dois homens que não seja o afeto da hora do gol e da hora do quase gol, onde você abraça e beija desconhecidos. Você não pode ter uma mulher lésbica que, por exemplo, não cumpre o estereótipo feminino que a sociedade espera. Você não pode ter uma pessoa transexual que não performe o masculino ou o feminino que é esperado dentro dessas caixinhas. Então ainda é um espaço de disputa.

É muito melhor do que a gente tinha há 10 anos. É outro cenário, há 10 anos a gente não imaginava estar dentro do estádio com bandeiras, com camiseta, mas hoje isso é possível, em parte, pelos esforços das torcidas LGBTQIA+ de fazer esse debate. Ainda tem muito para avançar. 

Todo mês do Orgulho LGBTQIA+, dia de combate à homofobia, dia de combate à lesbofobia, a gente trazia o questionamento “por que o Palmeiras não se posiciona?”.

Agora precisamos avançar em outros pontos, como, por exemplo, o Palmeiras ter um protocolo de segurança para casos de LGBTfobia dentro do estádio, normas para respeitar o nome social de pessoas travestis e transexuais que sejam parte do quadro societário, fazer o processo de palestras, oficinas, imersões, diálogos com sócios, conselheiros, jogadores, funcionários, diretoria e torcedores para que todos façam parte desse movimento.

Trazer o tema da diversidade para dentro do clube para que ele seja um debate interseccional e atinja todas as áreas do Palmeiras, e promova uma cultura de diversidade o ano inteiro, não só durante dias comemorativos.

Também reforço que também precisa ser cobrada responsabilidade das federações estaduais, da CBF, Conmebol, FIFA, para que os atos de homofobia nos estádios sejam punidos de forma desportiva, com perda de pontos, suspensão dos times no campeonato, como aconteceu no caso de racismo contra o goleiro Aranha, no jogo contra o Grêmio. 

Os casos de LGBTfobia continuam acontecendo nas torcidas. Recentemente, a gente teve o Corinthians punido por conta de cantos homofóbicos e meses depois a torcida voltou a cantar contra a torcida do São Paulo. 

Acho que os clubes precisam ser punidos duramente, financeiramente e desportivamente, para que os torcedores aprendam que a homofobia não tem lugar nenhum na sociedade e nem no futebol.

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