Neon Cunha. Foto: Divulgação
eleições 2022

Neon Cunha: ‘A cisgeneridade é filha caprichada da branquitude’

Primeira mulher trans brasileira a mudar de nome sem diagnóstico de patologia, Neon Cunha, 52 anos, sairá candidata a deputada estadual de São Paulo, pelo Psol, nas eleições deste ano. A campanha da ativista completa o “bonde”, como ela mesma chama, de outras trans e travestis que entram para o pleito: as correligionárias Érica Malunguinho e Erika Hilton e a petista Symmy Larrat, que concorrerão a vagas na Câmara Federal.

Nascida em Minas Gerais, mas criada em São Bernardo do Campo, Grande São Paulo, Neon Cunha é designer e servidora pública. Ela acredita que um dos seus maiores desafios nas eleições também “é tornar o Psol popular no ABC”, ao se referir às cidades paulistas Santo André, São Bernardo e São Caetano do Sul. “Não acho que meu voto venha só dessa região, mas quero pensar em uma série de questões que me permeiam”, conta, em entrevista à Diadorim.

Neon diz que um dos eixos da sua campanha é a “responsabilidade afetiva”, fazendo referência também ao legado da vereadora carioca Marielle Franco, assassinada em 2018. “É sobre andar com as minhas”, garante. Por isso, de maneira também orgânica e independente, ela converge em sua base diálogos com mulheres negras, empregadas domésticas e auxiliares gerais, e pessoas trans.

Nesta conversa, ela fala sobre representatividade, ancestralidade e identidades. Também comenta as críticas de membros da “velha política” às agendas identitárias. “O que é pauta identitária para esses homens brancos, cisgêneros e heterossexuais? Essas pessoas são capazes de produzir campanhas com responsabilidade afetivas ou a política é uma indústria também?”

AGÊNCIA DIADORIM Neon, hoje você é uma das figuras mais emblemáticas do movimento LGBTI+ brasileiro, com uma longa trajetória de luta. Mas para as pessoas da comunidade ou de fora dela que ainda não te conhecem, como você se apresentaria?
NEON CUNHA —
Como a filha de uma faxineira. Basicamente sou uma mulher que tem requerido reconhecimento enquanto mulher, negra, ameríndia. Por fim, por ordem de percebimento, transgênera a única coisa que eu tive certeza absoluta é que eu era uma menina e disse isso. Mas ao longo da história as pessoas também resolveram me classificar de uma forma muito taxonômica: “a gente não quer andar com você porque você tem cor de sujeira, parda”. Esse é um termo que eu não uso de jeito nenhum. Uso “mulher negra de pele clara”, “mulher negra não retinta”. Jamais parda. E já vou explicando isso. Minha mãe, quando eu disse para ela essa história [de que me chamaram de parda], eu tinha 8 anos, ela me apresentou como se faz o molho pardo (ou a galinha ao molho pardo ou a galinha de cabidela para algumas pessoas): pega uma galinha, raspa o pescoço na faca, bota o sangue pra pingar, colhe, mistura com vinagre, talha. É um ato tão violento você receber um nome de alguma coisa que está associada a um ato violento. Lógico que eu não posso ser parda.

DIADORIM Em março, você esteve no evento de pré-lançamento da candidatura de Érica Malunguinho (Psol) a deputada federal. Você pretende fazer uma rede de atuação com Symmy Larrat (PT), que também vai disputar uma vaga na Câmara?
NEON
O bonde Neon Cunha é maior. Tem muita gente se aproximando, e eu vou pulverizar. Tem Erika Hilton também, tem gente de todos os lados, que ainda não posso falar. Mas vou manter muito essa pegada de ativista independente, ver como vamos construir.

O maior desafio é tornar o Psol popular no ABC. Não acho que meu voto vem só dessa região, mas quero pensar em uma série de questões que me permeiam. Também tenho falado muito com domésticas e auxiliares gerais, sou muito orgânica.

Eu não sou afeita a essa política-celebridade. Eu tenho um outro eixo que é chamado de “responsabilidade afetiva”. É sobre andar com as minhas. Se essa população vai me permitir andar de transporte público ou se essa população vai me ver sendo executada e depois pixar ‘Neon vive’.

A presidente da ABGLT Symmy Larrat e Neon Cunha; Symmy também é diretora da casa de acolhimento de pessoas trans que leva o nome de Neon, em São Bernardo do Campo

Foto: Reprodução/Instagram

DIADORIM Você faz muito referência a Brizola e ao PDT como bases de sua formação política. Mas por que escolheu o Psol para se filiar?
NEON
Primeiro: a semente de Marielle… Não tem arrego. Se esses machos vão achar que eles vão esquecer o que uma preta fez, eles estão muito equivocados. É uma responsabilidade social, afetiva, não tem como. Aí não tem jeito, né? Quantas das minhas estão no Psol? Qual foi o primeiro partido que conseguiu essa visibilidade? Não tô dizendo que apostou e investiu. Mas olha quantas.

E aí tem uma outra coisa a dizer: eu tenho 40 anos de gestão pública. Eu passei por gestões que se alternaram entre PSDB e PT. Isso diz muito para mim, eu preciso buscar uma nova alternativa. E o Psol tem Aurea Carolina, por exemplo. Olha o que foi essa gabinetona, olha o que foi essa ideia de interseccionar tudo, olha quanta gente envolvida. Também a proximidade com a família de Marielle, com Anielle… Mas é o Psol por conta disso, apesar de muita gente ter debandado do Psol, né?

E aí quando eu coloco o PDT, é bom lembrar que eu falo do Brizola, mas é o PDT de Lélia Gonzalez e do Abdias (do Nascimento) também. O PDT, historicamente, tem um compromisso, apesar de que agora, com esse cenário que tá aí, se debandou.

DIADORIM Numa fala sua, durante um evento no Itaú Cultural*, você usou a migração das borboletas-monarcas como metáfora de ancestralidade e também para criticar o silenciamento que a jornalista Fabiana Moraes – naquela ocasião, mediadora da mesa –, estava sofrendo pelas convidadas. Você encontra uma metáfora também no processo de representatividade trans na política?
NEON
Sim. Acima de tudo na representatividade de mulheres negras. Porque eu tenho questionado se a cisgeneridade cabe à mulher negra. Quando você olha as imagens de muitas mulheres negras ao longo da história, e principalmente as nossas, pergunta-se: qual mulher negra corresponde ao ideal cisgenêro? A cisgeneridade é filha caprichada da branquitude ou da branquidade. Então pare e pense: qual mulher negra nunca foi foi desqualificada?

Então quando eu coloco essa metáfora, acho muito importante colocar aquilo que eu chamo de ancestralidade diaspórica. Uma vez eu participei de um evento da Fundação Rosa Luxemburgo, um festival feminista de esquerda, com dez mulheres do mundo inteiro falando. Eu li o manifesto “Qual é o meu feminismo?” e, quando finalizei, as muitas negras retintas muçulmanas, do norte da África, e outras indianas vieram agradecer o texto. Foi impressionante para mim. 

Essa afetividade, essa responsabilidade, tem a ver com o discurso de Marielle [Franco], que para mim é o mais imprescindível à construção da contemporaneidade de mulheres negras, que não dá para apagar. A discussão muda a partir do fenômeno Marielle em todos os sentidos, para o bem e para o mal , da execução dela. 

A gente não pode reproduzir violência sistêmica.

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DIADORIM Muita gente, inclusive na esquerda, tem colocado as pautas identitárias como um obstáculo para vencer o bolsonarismo, para vencer a extrema direita, e tem criticado pessoas que eles consideram identitárias. O diretor da Fundação Perseu Abramo, Alberto Cantalice, do PT, por exemplo, criticou publicamente as políticas identitárias. Como você enxerga essas críticas?
NEON
Vamos olhar quem é o sujeito, como ele se personifica. Aí está o bendito lugar de fala, né? [Faltam] Empatia, alteridade, conhecimento de privilégio, né? É bom dizer isso porque também é aquela pergunta: quais são as grandes lideranças negras? Por que é que a gente não teve ainda nenhum presidente negro, nenhuma presidenta negra? Eles deveriam fazer essa pergunta antes de falar. O que é pauta identitária?

A questão para mim é um pouco mais séria porque me parece que é um zelo em garantir o “tá bom para mim”. A gente não pode ficar presa nesse processo de deslegitimar as lutas identitárias. Porque foi o grande erro, inclusive, de quem não reconhece o bolsonarismo e o conservadorismo como uma luta identitária. Me parece que essas pessoas que questionam as lutas das grandes maiorias tratadas como minorias são de uma velha política. De uma antiga política do favorecimento, e essa eu conheço bem.

Falta responsabilidade e crítica interna desses partidos de esquerda. Há uma ausência de retorno à base, de escuta da base, talvez porque a base seja completamente identitária.

O que é pauta identitária para esses homens brancos, cisgêneros e heterossexuais? Isso é muito importante para a gente pautar, eu nunca ouvi falar de heteroafetividade. Essas pessoas são capazes de produzir campanhas com responsabilidade afetivas ou a política é uma indústria também?

Me vem à lembrança a quantidade de casos de racismo e machismo na Assembleia Legislativa nesta gestão. Toda semana tem um caso novo. É isso que incomoda? O vereador Renato Freitas (PT), aquele menino negro de Curitiba que teve o mandato caçado, não é pauta identitária para o PT?

A carne mais barata do mercado é a carne preta. Eu posso falar por existência o quanto eu aprendi com tudo que não me permitiram. Fizeram resistência à minha existência. Eu nunca resisti a nada: frequentei a escola dessa gente, eu trabalhei nos lugares que essa gente me reservou, eu assumi os cargos que essa gente me reservou. O direito de escolha é uma discussão de pauta identitária.

* Nota da edição: Em junho de 2017, enquanto assistia a uma mesa de debate sobre transexualidade, arte e representação, Neon Cunha criticou a postura de três participantes que, além de terem feito comentários preconceituosos também deslegitimaram a mediadora, a jornalista Fabiana Moraes. Em ocasião posterior, Fabiana escreveu um texto sobre o que ocorrera, destacando a importância da intervenção de Neon. Para ler o relato, clique aqui.

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