O preço da criminalização da homotransfobia
Para defensores, decisão do STF dá visibilidade à luta contra preconceito; mas símbolos não operam apenas como nossos planos e prescrições
O número de pessoas encarceradas no país vem aumentando de forma exponencial nas últimas décadas, passando de 90 mil, em 1990, para mais de 726 mil em dezembro de 2017, segundo o último levantamento realizado pelo Depen (Departamento Penitenciário Nacional). Já os crimes ou tipos penais previstos em lei passaram de 800, também no início dos anos 1990, para mais de 1.800, em 2010, sem contar as alterações legislativas que aumentaram penas ou tornaram mais rígido o seu cumprimento.
Os resultados dessa opção pelo encarceramento em massa e pela expansão do aparato punitivo estatal são bem conhecidos: violação sistemática de direitos de presos e presas, desvio de recursos públicos de outras áreas para financiar o sistema prisional, expansão e fortalecimento de facções etc. E isso sem que se tenha observado qualquer impacto significativo na redução dos índices de criminalidade. Ao contrário, tudo indica que a prisão apenas impulsionou a violência e as ocorrências criminosas, despontando como um relevante fator criminógeno.
A seletividade desse sistema também é bem conhecida e se traduz no perfil da população que habita nossas masmorras, ainda de acordo com o Depen: homens (94,8%), negros (63,64%), com baixa escolaridade (60,65% sequer têm ensino fundamental completo) e jovens (54% têm até 29 anos). Retrato quase perfeito de uma sociedade urdida pelo racismo e por múltiplas formas de exclusão e marginalização social.
Dessa forma, a experiência das últimas décadas parece apenas atestar o que já se sabia há algum tempo: criminalização e encarceramento não reduzem necessariamente a ocorrência de determinadas práticas — que o diga a malfadada “guerra às drogas” no Brasil. Tampouco o direito penal é capaz de resolver fissuras sociais sem criar seus próprios abismos.
Nesse contexto, como explicar a multiplicação das iniciativas de criação de novos crimes ou de endurecimento de penas, que partem da esquerda à direita e mobilizam inúmeros movimentos sociais feministas, negros e LGBTIs?
A questão é complexa, mas parte da resposta pode estar nas disputas simbólicas e valorativas, que hoje parecem centralizar a política institucional. Assim, se acreditarmos que o direito penal cristaliza os bens jurídicos e valores mais caros de uma sociedade, é apenas natural que ele se torne um campo de batalha privilegiado para afirmarmos nossas próprias convicções e valores.
Especificamente sobre a decisão do STF (Superior Tribunal Federa), em 2019, que equiparou a homotransfobia ao crime de racismo, o que parece estar fundamentalmente em jogo (deixando de lado aqui as filigranas do debate jurídico) é a afirmação estatal clara e contundente de que tais práticas discriminatórias não podem ser socialmente toleradas. E que o tema exige atenção e ação das autoridades públicas.
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O raciocínio não é, em absoluto, descabido, embora pareça ignorar que os símbolos não operam apenas de acordo com nossos planos e prescrições. Independentemente dos resultados trazidos pela decisão do Supremo, que até o momento são questionáveis, o que parece invariavelmente fortalecido é o próprio poder simbólico do direito penal.
Ao lançar mão dele como estratégia, esquecemos que também reafirmamos seus valores básicos e sua centralidade na esfera política. Parecemos esquecer que sua aplicação é manifestamente seletiva e brutalmente reprodutora de desigualdades. Consequentemente, também colaboramos com a construção de uma sociedade que, como afirma Angela Davis, naturalizou a prisão e a intervenção penal a tal ponto que parece incapaz de conceber o mundo ou a solução dos conflitos sociais sem esses dispositivos.
O direito penal é, por excelência, um instrumento de exceção, de exclusão e de violência, que opera suspendendo certos direitos individuais e autorizando a mais extrema intervenção estatal sobre nossos corpos. Não é por menos que, em cerca de 70 países, ele ainda é utilizado para multar, encarcerar, açoitar e até executar, sob um verniz de legalidade, pessoas condenadas por práticas homossexuais.
Todavia, é preciso reconhecer que não é possível contornar completamente os dispositivos penais, tal é o espaço que eles ocupam em nossas vidas. Na luta por justiça e reparação, sobretudo nos casos de assassinatos e agressões contra LGBTIs, exigir investigações céleres e efetivas, a análise justa dos fatos e a condenação dos responsáveis são, por vezes, as únicas estratégias possíveis.
O então ministro do STF, Celso de Mello, relator da ação de criminalização da homotransfobia. 26nov.2016
Foto: Carlos Moura/SCO/STFElas emergem de uma realidade penosamente concreta e da necessidade viva de vítimas e familiares de buscar alguma voz e reconhecimento público das violências sofridas. Sua importância, portanto, não deve ser desprezada ou minimizada, inclusive para tensionar e denunciar o rigor seletivo do sistema de justiça criminal.
Nada disso, porém, deveria nos levar a reivindicar novos mecanismos de criminalização ou de recrudescimento de penas. A própria decisão do STF não contribui em nada para reduzir os entraves que impedem a devida apuração de casos de homicídio e lesão corporal contra LGBTIs, que já eram condutas tipificadas penalmente.
A referida criminalização da homotransfobia, na verdade, passou a abranger condutas — como o impedimento de acesso a estabelecimentos comerciais e a incitação à discriminação, previstas na Lei 7.716/89 — que já vinham sendo combatidas por outros meios e estratégias, inclusive com sanções na esfera civil ou administrativa. A medida de 2019, portanto, só tem a oferecer dubiedades, abstrações simbólicas e nenhuma efetividade para a garantia da vida e da dignidade da nossa comunidade.
Ao olharmos para os horrores do encarceramento em massa, é importante compreendermos que ele é o resultado de escolhas políticas feitas, em igual medida, por grupos de direita e esquerda, por reacionários e progressistas. E o preço dessa escolha foi e continua sendo pago pelas pessoas historicamente excluídas em nossa sociedade — inclusive pela população LGBTI+ empobrecida e marginalizada, que sofre violências indescritíveis em nossas prisões.
Para enfrentar a centralidade que o direito penal e o encarceramento ganharam em nossas vidas é preciso negá-los sempre que possível. É preciso reimaginar formas de solução de conflitos e, sobretudo, nos abrirmos para outras estratégias e ações políticas que podem dar corpo, vida e visibilidade às causas LGBTIs.
Paulo Malvezzi
Co-fundador e editor da Diadorim. Advogado, bacharel em Direito pela Mackenzie e mestre em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Foi coordenador geral do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional e assistente da Ouvidoria Geral da Defensoria Pública de SP.