

Parlamentares brasileiros miram crianças e adolescentes LGBTQIA+, promovendo censura, exclusão e silenciamento
Na casa de Lucas*, de 11 anos, tudo mudou depois de um corte de cabelo. Não era só estética — era identidade. Depois de muita insistência, a mãe o levou ao salão. Na volta, ele disse que se sentia mais leve, mais ele mesmo. Dias depois, passou a brincar mais na rua e conversar com mais gente.
A mãe conta que, até aquele momento, não havia entendido o quanto aquilo era importante para o filho. Só percebeu quando disse que ele poderia cortar o cabelo como quisesse quando fosse adulto — e ouviu dele a resposta: “Quanto tempo falta para eu ser feliz?”.
Lucas é uma criança trans. E, como muitas outras, se vê no centro de uma disputa política travestida de “proteção”. Propostas de lei que restringem debates sobre gênero nas escolas, vetam o uso do nome social ou dificultam o acesso ao processo transexualizador tramitam em diferentes esferas legislativas do país, afetando diretamente sua vida cotidiana e seus direitos mais básicos.
Segundo dados da Observatória, o monitor de projetos de lei LGBTQIA+ da Diadorim, entre 1º de janeiro de 2019 e 31 de outubro de 2024, foram apresentados 109 projetos de lei nas esferas estadual e federal com impacto direto sobre crianças e adolescentes LGBTQIA+.
Nas assembleias legislativas estaduais, foram registrados:
Na Câmara dos Deputados, o cenário é este:
No Senado tramitam atualmente:
Na Marcha Trans de São Paulo, em 2024, famílias pedem respeito à diversidade.
Foto: André Nery/Diadorim“Esses projetos tentam criar uma falsa dicotomia entre proteção da infância e promoção da diversidade, mas ignoram que a própria proteção implica respeito à identidade e à autonomia de crianças e adolescentes”, explica o advogado Marcel Jeronymo, especialista em direitos LGBTQIA+.
Para Regiani Abreu, presidente da ONG Mães pela Diversidade, há um aumento expressivo nas denúncias de bullying, censura escolar e impedimentos no acesso à saúde. “Projetos assim atingem diretamente o coração das nossas famílias. Tentam restringir o acesso à saúde, à educação inclusiva, à proteção legal. A vida das nossas crianças está em risco”, alerta.
Os discursos conservadores, mobilizados por parlamentares, se espalham rapidamente nas redes sociais, usando hashtags e palavras de ordem para atacar qualquer iniciativa de inclusão.
“Há uma ideia de que proteger a infância é impedir que crianças conheçam a diversidade. Quando, na verdade, proteger deveria ser garantir que todas possam viver com dignidade — inclusive as crianças trans”, afirma a advogada Bruna Andrade, CEO da plataforma Bicha da Justiça.
Para ela, esses discursos alimentam retrocessos concretos. “A resolução recente do Conselho Federal de Medicina, que proíbe o bloqueio hormonal antes dos 18 anos, é um exemplo claro de como o discurso conservador tem impacto direto na vida dessas crianças.”
Além da saúde, o ambiente escolar se tornou um dos principais campos de disputa. A psicóloga Sofia Favero, doutora em Psicologia e especialista em infâncias LGBTQIA+, observa os efeitos cotidianos da exclusão: “Há escolas que simplesmente param de se referir a crianças trans. Professoras e professores que, por medo ou resistência, evitam chamá-las por qualquer pronome. Isso também é uma forma de apagamento, que gera sofrimento e solidão”.
“Proteger deveria ser garantir que todas possam viver com dignidade — inclusive as crianças trans.”Bruna Andrade, CEO da plataforma Bicha da Justiça
Ela destaca que crianças que buscam usar uniformes ou banheiros compatíveis com sua identidade de gênero enfrentam burocracias e exigências arbitrárias. “É como se, para cada passo em direção à afirmação, fosse exigido que provassem um sofrimento anterior. Como se precisassem sofrer para serem escutadas”, afirma.
No consultório, Favero acompanha os impactos diretos da negação de direitos. “A recusa em reconhecer a identidade dessas crianças afeta profundamente sua saúde mental. Elas sentem que não têm valor, que não são vistas. E o sofrimento vem com força.”
Ela alerta que muitos profissionais de saúde, influenciados por discursos conservadores, atuam a partir de noções patologizantes. “Existe uma obsessão em determinar quem é ‘de verdade’, como se fosse possível antecipar o futuro de uma criança com base em categorias adultas. Mas a transição é um processo vivo. Crianças não são ex-cis nem ex-trans. Elas estão em movimento — e os adultos precisam estar com elas, transicionando junto.”
Para o advogado Marcel Jeronymo, propostas que censuram debates sobre gênero nas escolas ou dificultam o acesso ao processo transexualizador são “flagrantemente inconstitucionais”. Elas violam:
“O que esses projetos propõem não é proteção, é silenciamento. Transformam diversidade em ameaça e crianças LGBTQIA+ em alvos políticos”, pontua Jeronymo.
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entrarEle lembra que essas propostas ignoram a autonomia progressiva, reconhecida tanto na legislação brasileira quanto em documentos internacionais, como as recomendações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que garante o direito à identidade de gênero desde a infância.
Bruna Andrade reforça: “Não existe proteção que exclui. Esses projetos ferem diretamente o direito à identidade. Já há decisões do STF reconhecendo isso, mas seguimos dependendo do Judiciário para garantir direitos mínimos.”
Para ela, o cenário reflete uma grave omissão legislativa. “O Congresso tem transformado os direitos da população LGBTQIA+ em moeda de troca política. As principais conquistas vieram de ações judiciais, não de políticas públicas estruturadas.”
Jeronymo concorda e aponta que a resposta do sistema de justiça tem sido ambígua. “O STF cumpre um papel relevante, mas há resistência e morosidade nas instâncias locais. Precisamos fortalecer a formação de magistrados, além de ampliar a atuação de defensorias e promotorias especializadas.”
Ele defende ações como o controle de constitucionalidade de leis discriminatórias e o fortalecimento da sociedade civil para garantir proteção às infâncias LGBTQIA+.
Crianças trans na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo.
Foto: Rovena Rosa/Agência BrasilDiante dos retrocessos, coletivos como Mães pela Diversidade, Mães pela Resistência e Minha Criança Trans exercem um papel fundamental. Eles atuam no suporte direto às famílias, na formação de profissionais da saúde e da educação e na incidência política.
“O coletivo fortalece a criança e a família. Quando há escuta, há espaço para experimentar, errar, pensar junto. Esses grupos ajudam a construir uma gramática possível para o cuidado com a diversidade. Permitem que a criança exista sem precisar justificar quem é”, resume Sofia Favero.
Regiani Abreu, das Mães pela Diversidade, explica que o grupo realiza rodas de conversa, encontros com escolas e empresas, formações e articulações com lideranças políticas. “Nossa mobilização vai da escuta à ação. Estamos em audiências públicas, redigimos cartas ao Ministério da Saúde, acionamos o Ministério Público e acompanhamos cada proposta legislativa que ameaça nossas famílias.”
Para ela, a rede responde aos ataques com aquilo que tem de mais potente: amor em movimento. “Levamos nossas histórias para o debate público porque nossos filhos existem, resistem e merecem viver com dignidade. Diante de cada ataque, nossa rede se levanta com mais união, coragem e organização.”
A reportagem entrou em contato com a Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, para solicitar posicionamento sobre os projetos legislativos mencionados, os impactos nas infâncias LGBTQIA+ e possíveis ações da pasta para mitigar os danos. Não houve retorno até a publicação deste texto.
*Nome alterado para preservar a identidade da criança.