Autônomo LGBTQIA+ enfrenta desafios econômicos e sociais na busca por inclusão
Foto: Adam Winger/Unsplash
política

Fora da PEC 6X1: como a precarização atinge trabalhadores LGBTQIA+

PEC 6×1 promete avanços para trabalhadores CLT, mas não abrange autônomos, que enfrentam jornadas longas e falta de proteção social

Noah Aracati, 21 anos, mora em Belém e vive uma multiplicidade de papeis profissionais para garantir sua autonomia financeira. Ele trabalhava vendendo antenas em uma feira quando uma cliente o convidou a mudar para o ramo imobiliário. Hoje, é corretor de imóveis autônomo.

Sua principal atividade profissional garante o pagamento das contas básicas do mês, mas não custeia seu tratamento hormonal, que também não é financiado pelo governo em sua região. “Sou transmasculino e já trabalhei com prostituição para pagar a hormonização, que é cara”, diz. De acordo com dados levantados pela ANTRA, 90% da população de travestis e transexuais utilizam a prostituição como fonte de renda.

“Para complementar o salário, também faço trabalhos como diarista, entregador de comida, modelo, auxiliar de produção audiovisual e professor de perna de pau”, conta Aracati.

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Transsexual e cabeleireira, Kyara Lins de Azevedo, de 47 anos, trabalha desde os 20 como autônoma. Atualmente, ela estuda moda e mantém clientes cativos que atende a domicílio, mas carrega na memória os tempos em que enfrentava jornadas exaustivas nos salões de beleza para garantir o próprio sustento.

“Eu sei que, sendo autônoma, preciso estar sempre um passo à frente, planejando como vou pagar o amanhã.”

As trajetórias de Aracati e Azevedo ilustram uma realidade comum para pessoas LGBTQIA+: a necessidade de recorrer ao trabalho autônomo devido à sobreposição de vulnerabilidades sociais e econômicas que intensificam a marginalização dessa população, afastando-a de direitos trabalhistas importantes. 

Desafio do autônomo

No início de novembro do ano passado, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do 6×1, apresentada pela deputada federal Erika Hilton (Psol-SP), tornou-se uma das principais discussões legislativas do país. O texto propõe alterar a jornada de trabalho mínimo para 5×2 e resgatou uma relação histórica entre os movimentos LGBTQIA+ e dos trabalhadores. 

Apesar do possível avanço, a PEC também expõe uma limitação, como frisa Renan Quinalha, advogado e professor da Unifesp. Essa medida beneficia apenas aqueles inseridos no mercado formal de trabalho — deixando de fora uma parcela significativa da população LGBTQIA+, que ainda enfrenta barreiras estruturais para acessar empregos formais e estáveis.

Segundo Quinalha, a histórica discriminação contra pessoas LGBTQIA+ as empurra para setores mais precarizados, como telemarketing, beleza, arte e cultura. Esses campos, embora acolham a diversidade sexual e de gênero, oferecem remunerações baixas e pouca proteção social.

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Azevedo observa que, para autônomos, é muito difícil garantir duas folgas na semana. “A gente trabalha toda hora, porque precisa garantir que as contas sejam pagas. Se chamarem no domingo, a gente vai. Esse modelo é solitário e desafiador. A palavra ‘autônomo’ é quase sinônimo de estar sozinho no mundo”, desabafa.

De acordo com a advogada Karina Haladjian, a realidade é ainda mais dura para pessoas trans e para aquelas que estão fora dos padrões de gênero. “Mulheres muito masculinas e homens afeminados enfrentam barreiras intransponíveis em uma sociedade culturalmente atrasada como a nossa”, ela avalia.

A profissional costuma receber em seu escritório muitos relatos de violência que dão origens a processos trabalhistas. No entanto, poucos chegam a uma sentença. “É comum que essas pessoas enfrentem situações de assédio moral, discriminação e até demissões arbitrárias”, relata.

Ela observa que a violência institucionalizada afasta essa população da garantia de seus direitos. “Muitos desistem de lutar porque o custo emocional e financeiro de processos judiciais é muito alto”, comenta a advogada trabalhista.

Políticas mais inclusivas

O relatório “Inclusão Econômica e Geração de Renda da População LGBTQIA+ no Brasil”, desenvolvido pelo Fundo Positivo em parceria com o Instituto Matizes entre 2023 e 2024, revelou que apenas 25% dessa população tem emprego formal. Além disso, as iniciativas de inclusão enfrentam desafios devido ao baixo financiamento público, que corresponde a menos de 30% do total.

Outro levantamento exclusivo do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+ e da To.gather, de 2024, analisou 1,5 milhão de trabalhadores em 300 empresas, apontando que apenas 4,5% são LGBTQIA+, sendo 0,38% pessoas trans. Entre as empresas pesquisadas, 61% contratam pessoas trans, mas em muitas, essas representam menos de 1% do quadro funcional.  

Esses dados expõem a marginalização estrutural enfrentada por essa população e reforçam a urgência de políticas públicas e empresariais mais inclusivas.

Para Quinalha, é urgente criar políticas de assistência e renda que protejam os trabalhadores informais. “Há muito talento e potencial que acaba sendo desperdiçado porque as pessoas não encontram oportunidades ou apoio para se desenvolver”, analisa.

Haladjian acredita que soluções efetivas passam, principalmente, pela educação. “Precisamos ensinar respeito desde a infância. Apenas assim poderemos mudar o panorama atual.”

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Um mapeamento desenvolvido por pesquisadores das universidades federais da Paraíba, Sergipe e de São Carlos (SP) e da Universidade de São Paulo, publicado em 2024, identificou 90 ações governamentais para inserção e permanência da população LGBT no trabalho. A maioria concentrada em 2022 e na região Nordeste.

Entre as ações mapeadas, estão:

Cursos de capacitação oferecidos por meio de parcerias entre governos e entidades do terceiro setor, visando qualificar a população LGBT para o mercado de trabalho, principalmente em setores como beleza, moda e artes; 

Feiras de emprego visando conectar pessoas LGBT a vagas em empresas que promovem a diversidade e a inclusão no ambiente corporativo; 

Programas de empreendedorismo, fornecendo incentivo e apoio ao desenvolvimento de negócios próprios por pessoas LGBT; 

Parcerias com o setor privado para que empresas adotem práticas inclusivas, como a contratação de profissionais LGBT e a criação de ambientes seguros e respeitosos; 

Campanhas de sensibilização para educar e conscientizar empregadores e colegas de trabalho sobre os direitos da população LGBT e a importância de combater preconceitos e discriminações no ambiente laboral;

Iniciativas regionais para fortalecer a cultura. No Nordeste do Brasil, por exemplo, houve uma concentração de ações voltadas para a população LGBT, com destaque para atividades que valorizam o artesanato, a culinária e outras produções culturais.

A divisão por região revelou os seguintes resultados:

Apesar de volumosas, os autores avaliam que essas ações estavam predominantemente relacionadas ao trabalho informal, e não é possível garantir que foram efetivas em garantir a inserção ou permanência no emprego. 

Diante desse cenário, Noah Aracati manifesta sua preocupação com o futuro. “Não sei se um dia vou conseguir me aposentar”, diz.

Kyara Azevedo também demonstra preocupação e sugere que o INSS seja reformulado para oferecer mais segurança aos autônomos. “Pago o MEI, mas vejo pessoas demorando meses para receber auxílio-doença. Isso desanima. Precisamos de um sistema mais ágil.”

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