Arte: Tomaz Alencar/Diadorim
cultura

Uma página virada para o Página Viada

Livros com autores, temáticas e protagonistas LGBTI+ enriquecem o debate e a luta do movimento, apesar de existirem pautas mais urgentes, acredita pesquisador

Foi no verão de 2017 que decidi reunir alguns amigos em um bar no Arouche e compartilhar uma ideia: queria promover um clube de leitura só com livros escritos por autores ou que tenham protagonistas LGBTI+. O bloody mary ajudava a formular ideias bonitas de serem pronunciadas, e assim surgiam verdadeiros manifestos de uma esquerda festiva sobre o quanto a representatividade na literatura poderia tornar a cidade mais diversa. O gerente do bar estava na mesa com a gente e topou que os encontros acontecessem ali mesmo, já a partir do próximo mês. Nascia assim o Página Viada.

Literatura LGBTI+ não era bem uma novidade, mas nosso clube de leitura aproveitava um movimento intenso do mercado. Era uma época em que muitas editoras começaram a publicar livros com protagonistas LGBTI+, com uma variedade de temas que compõem esse universo, ou passaram a dar mais destaque para escritores assumidamente gays, lésbicas, bis e trans. Era comum a imprensa especializada usar a expressão “a literatura saiu do armário”, e a gente percebia que esses livros, no mínimo, haviam deixado aquela seção meio escondida e empoeirada que reunia títulos com esse rótulo nas livrarias. Era a sensação de “página virada”, que ajudou a batizar nosso clube de leitura.

A ideia de aproveitar essa oportunidade também despontava a partir de uma experiência pessoal: eu participo de clubes de leitura desde 2014, quando encontrei um cartaz que divulgava o próximo encontro do grupo que se reunia na Biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo. De lá para cá, me tornei verdadeiro entusiasta desse movimento, reconhecendo o quanto as trocas entre os participantes dos clubes de leitura me trouxeram novas perspectivas, novas maneiras de enxergar o mundo. Talvez esse seja um dos maiores interesses que levam pessoas ao redor do planeta a se reunirem em círculo para falar de um mesmo livro: nunca é o mesmo livro. Cada um lê um livro diferente a partir de sua bagagem e trajetória. A experiência individual (e muitas vezes solitária) de um leitor se torna algo maior e coletivo.

De participante, me tornei voluntário na mediação e organização do clube de leitura da biblioteca, e dessa experiência surgiu a ideia de promover o Página Viada. Havia uma sensação meio revolucionária em promover esses encontros, pois eu percebia como as reuniões de um clube de leitura geram empatia entre os participantes e as situações vividas pelos personagens de um livro. Ao mencionar porque determinado personagem despertou sua atenção, o participante também fala de si próprio, abre detalhes profundos de sua vida para uma roda de estranhos, e esse pode ser um movimento importante para reconhecer as próprias formas de expressão de sua identidade, em uma perspectiva coletiva e de respeito à diversidade.

Alguns dos livros debatidos em encontros do Página Viada

Imagem: Reprodução

Além disso, o Página Viada também tinha como objetivo discutir como a representatividade na literatura poderia mudar a ideia sobre o papel que pessoas LGBTI+ ocupam no espaço real. E com isso queríamos mandar um sinal para as editoras: “Hey, tem gente lendo livros com essa temática! Continuem publicando e buscando novos autores”.

E o movimento ganhou uma forma interessante: mais pessoas começaram a se juntar ao grupo, que despertava a atenção de outros frequentadores do bar. As publicações no Facebook atingiam até mesmo pessoas de fora do nosso círculo de amizades. Teve uma vez em que o próprio autor do livro aceitou nosso convite e participou do encontro. Promovemos até uma edição especial do clube em um evento sobre diversidade no Museu do Futebol.

Mesmo assim, o Página Viada durou pouco. Foram doze edições, em pouco mais de um ano. Não foi por falta de livros – o mercado editorial continua até hoje aquecido para publicações desse tema. Também não faltou bloody mary, aperol spritz, gin tônica ou cerveja, dependendo do gosto do freguês. E mesmo isso tendo acontecido há tanto tempo, ainda junto hipóteses para o que pode ter determinado uma vida tão curta para uma ideia que parecia ser promissora.

Primeiro não deixo de assumir minha responsabilidade, fazer um mea-culpa. E também refletir sobre o que faria diferente no Página Viada se iniciasse uma nova série de encontros. Provavelmente promoveria o clube de leitura associado a um espaço público, como biblioteca, centro cultural ou parque, pois talvez o encontro em um bar inibisse as pessoas – mesmo o gerente deixando claro que a gente não precisaria gastar nada se não quiséssemos.

Mas também reconheço que um passo importante para qualquer clube de leitura é estimular a diversidade. Quando fundei o Página Viada, parecia meio óbvio que um encontro de pessoas para falar sobre literatura LGBTI+ iria ter diversidade de sobra, e não investi muito esforço para tal. Mas não foi isso que aconteceu ao longo de um ano de reuniões.

Resumidamente: se um livro tinha um tema gay, atraía gays para o encontro; se era um livro com uma temática lésbica, era a vez das lésbicas comparecerem; infelizmente nenhuma pessoa trans participou dos encontros sobre livros com esses temas, apesar de algumas, provavelmente em situação de rua, passarem pela mesa do bar pedindo algum tipo de ajuda, seja dinheiro, comida ou atenção.

Talvez esse seja, inclusive, o principal ponto para entender que um clube de leitura não tem a capacidade de solucionar problemas mais urgentes que nossa própria comunidade LGBTI+ precisa enfrentar, provocados pela exclusão social, pela desigualdade das condições socioeconômicas, pelos vínculos interrompidos e por tantos outros motivos. Enquanto estávamos conversando sobre apagamento de personagens LGBTI+ na literatura, pessoas em carne e osso estavam sendo apagadas ali, na nossa frente, no centro de São Paulo, e em qualquer outra cidade do país.

Reconheço meus privilégios e entendo que há pautas mais urgentes para discutir do que a representatividade LGBTI+ na literatura. Mesmo assim, sigo acreditando que o clube de leitura é também um espaço de afeto e acolhimento, o que pode ajudar a construir uma sensação de pertencimento e coletividade. Por isso, também reflito sobre o quanto estamos dispostos a nos abrir para situações vividas por personagens com uma carga de angústias diferentes da nossa, enquanto muitas agonias e dores próprias ainda não estão bem resolvidas. De fato, em uma camada mais profunda da nossa própria existência, participar de clubes de leitura também desperta pequenas revoluções internas, e precisamos estar preparados para isso. Reconheço o quanto minhas leituras me fizeram ser a pessoa que sou hoje, e me transformam continuamente em novas pessoas que ainda vão surgir.

Quando esse texto foi publicado, o Página Viada completou exatos três anos sem atividades – e eu ainda não sei se um dia ele voltará a ser realizado. Só sei que a defesa dos direitos da população LGBTI+ se faz ainda mais necessária nos dias de hoje. E se a literatura não despertar em mim uma nova maneira de ver e agir sobre o mundo, em busca de uma sociedade mais justa, igualitária e diversa, de nada a leitura terá valido.

Publicidade

Publicidade
Heitor Botan

Atua com pesquisa e desenvolvimento em educação. É voluntário na mediação do clube de prosa da Biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo (SP).

leia+