Indígenas enfrentam LGBTfobia e lutam pela vida nos territórios
Foto: Juliana Pesqueira/Proteja Amazônia/Apib
direitos humanos

Indígenas enfrentam LGBTfobia e lutam pela vida nos territórios

Após alta de 53% na taxa de suicídios entre indígenas, governo fez oitiva com jovens LGBTQIA+

Na aldeia Tajassu Ygua, em Douradina, no Mato Grosso do Sul, o jovem ativista indígena Gualoy Kaiowá, 20, enfrenta o luto por ter perdido dois amigos próximos recentemente. Ambos cometeram o suicídio. Eles enfrentavam preconceito dentro do território por serem LGBTQIA+. 

Um deles trabalhava na área de saúde, oferecendo apoio a pessoas que sofriam discriminação e outros tipos de violência, e já havia sofrido ameaças na aldeia. O outro amigo não havia se assumido publicamente para a família e a comunidade, por receio de sofrer represálias. “Foi algo muito difícil. Ele chegou a compartilhar isso com um amigo antes de tirar a própria vida”, diz Gualoy.

O ativista acredita que a falta de apoio psicológico e a pressão da comunidade contribuíram para esse desfecho. “É muito duro ver isso acontecer e não ter recursos suficientes para ajudar”, desabafa.

A tragédia ilustra uma crise alarmante: o suicídio entre indígenas brasileiros cresceu 53% de 2022 para 2023, com 180 casos registrados, segundo o Conselho Indigenista Missionário, ligado à CNBB (Confederação Nacional do Bispos do Brasil). A maioria das vítimas tem de 20 a 59 anos.

O Amazonas lidera entre os estados com as maiores taxas de suicídio de indígenas, com 66 registros, seguido do Mato Grosso do Sul, com 37, e de Roraima, com 19.

Rafaela Palmeira, psicóloga do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Alto Rio Solimões, acompanha de perto a situação no Amazonas, estado que lidera o ranking. Segundo ela, o problema é agravado por uma série de fatores complexos, que incluem a pressão territorial, o racismo estrutural, a violência física e psicológica.

“São questões que vão desde a destruição do território, pela presença do garimpo e do narcotráfico, até a violência direta, o preconceito racial e a falta de acesso a políticas públicas. Esses elementos impactam fortemente a saúde mental”, afirma.

“A questão da orientação sexual e identidade de gênero, que muitas vezes não é amplamente discutida dentro das comunidades indígenas, também tem um peso significativo”, diz a psicóloga. Ela explica que a invisibilidade dificulta o acompanhamento desses casos e produz subnotificação. “Muitos suicídios ou tentativas de suicídio não chegam a ser registrados como casos relacionados à LGBTfobia”, fala.

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Indígena e trans 

Lilith Cairú, 26, cineasta e militante indígena de Roraima, é mulher trans e membro da etnia Wapichana. Ela tinha sete anos quando foi viver com o braço cristão de sua família, composto pelo pai biológico e sua madrasta, mas em 2021 foi aceita na comunidade indígena urbana Kapoi, em Boa Vista.

“Meu processo de autodescoberta foi leve para mim, mas difícil quando precisei compartilhar com os outros. A minha família adotiva me ajudou, mas não foi fácil, principalmente por questões culturais e religiosas que ainda dificultam o entendimento sobre pessoas LGBTQIA+ na minha comunidade”, relata.

Para Lilith, ser uma pessoa LGBTQIA+ indígena é carregar dois estigmas. “Ser indígena no meu estado é ser vista como selvagem, sem dignidade. A sociedade nos marginaliza de tal forma que, muitas vezes, nem nos reconhece como indígenas. Por ser LGBTQIA+, essa invisibilidade se agrava, já que em Roraima as discussões sobre direitos LGBTQIA+ são associadas a uma agenda política conservadora.”

“Em algumas aldeias, já temos espaço para diálogos que ajudam a reduzir o preconceito. Mas ainda falta muito, como a implementação de serviços psicológicos que possam apoiar quem está sofrendo”, afirma. “Há muitas pessoas LGBTs vivendo em condições precárias e vulneráveis. Seria importante ter um local de acolhimento para essas pessoas como eu, e ter acesso mais rápido a ajuda psicológica.”

Aos 22 anos, Lilith passou por um serviço que acolhia LGBTs indígenas em situação de vulnerabilidade – a Casa Tibiras, administrada pela Conafer (Confederação Nacional dos Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares do Brasil). “Fiquei lá por menos de 6 meses, mas essa ajuda mudou minha vida. Pena que o espaço fechou”, diz. 

O projeto foi inaugurado em 2020 e fechou no mesmo ano. A Conafer não quis comentar os motivos do encerramento das atividades. 

Lilith Cairú na Casa Tibiras

Foto: Acervo pessoal

Ações para acolhimento e prevenção

O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) tenta enfrentar a crise de suicídio entre indígenas, incluindo a população LGBTQIA+, com o programa Bem Viver+, lançado em 2023 e que já investiu R$ 1,6 milhão em ações de acolhimento e prevenção à violência. 

Em Mato Grosso do Sul, oficinas de escuta ativa foram realizadas recentemente em aldeias Guarani-Kaiowá para identificar as principais demandas de jovens LGBTQIA+ indígenas.

As oficinas também buscaram envolver lideranças comunitárias e rezadeiras para fortalecer redes de apoio local. Segundo o Ministério, estão sendo desenvolvidas cartilhas educativas que incluem poemas, músicas e relatos criados pelos próprios jovens, com o objetivo de refletir vivências e expressões culturais específicas.

O programa prevê ainda a criação de comitês de monitoramento para avaliar o impacto das ações e garantir que as respostas às comunidades sejam eficazes e respeitem a autodeterminação dos povos indígenas. Embora o diagnóstico detalhado das aldeias já esteja pronto, o MDHC informou que não divulgará o material devido à sensibilidade das informações.

A próxima etapa do Bem Viver+ é expandir as ações para estados como Bahia e Pará, mantendo as oficinas de escuta ativa e ampliando as redes de acolhimento.

Gualoy Kaiowá, que participou das atividades do programa federal em Mato Grosso do Sul, avalia a ação como um passo importante.

Ainda assim, cobra do MDHC um trabalho contínuo, com ações constantes e eficazes. “Estamos levando essa visão de união para que possamos nos reunir de forma coletiva e lutar pelos nossos direitos”, afirma, citando o termo Guarani “teko jodhyá”, que significa “viver juntos em harmonia”.

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